Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Eugênio Bucci

JORNALISMO & PROPAGANDA

"A independência impossível", copyright Jornal do Brasil, 22/08/02

"Nos jornais, a gente quase não nota. Mas em programas de televisão, como nas transmissões de jogos de futebol, ou nas revistas de amenidades, como Caras, a gente nota até quando quer fingir que não nota: as fronteiras entre o que é jornalismo e o que é propaganda se dissolveram a um tal ponto que as duas coisas parecem uma coisa só. Na página colorida, surge a atriz da novela sob um guarda-sol decorado com o logotipo da cerveja. Diante da TV, acompanhando a partida de futebol, o telespectador é bombardeado pelos anúncios das placas, das camisetas dos atletas, da fala dos locutores. O mesmo se nota em programas de rádio e sites noticiosos da Internet.

Já nos acostumamos a situações assim. Já nem ligamos. Alguns até se perguntam: as notícias – a atriz em fotos solares, o jogo e suas caneladas – estão lá porque interessam ao público ou porque convêm aos anunciantes? Perguntam-se distraidamente e logo esquecem. Atrizes e futebolistas, segundo o ingênuo senso comum, não são assuntos sérios. As primeiras são assalariadas da indústria do entretenimento – são pagas para aparecer. Os segundos brilham em certames patrocinados pelos anunciantes; ganham para fazer divulgação de bugigangas, o que exige deles, entre muitas outras habilidades, aquela de chutar a bola com um mínimo de pontaria.

Nos jornais de maior tradição, no entanto, a gente quase não vê essa bagunça. Eles não se ocupam, prioritariamente, de atrizes e futebolistas. Dão conta de fatos vistos como nobres, relevantes e, provavelmente por isso, mantêm clara a distinção entre espaços publicitários e espaços editoriais. Assim também fazem as revistas mais sóbrias. Ao menos por enquanto. Os diários tradicionais e as revistas influentes existem hoje como ilhas da altivez jornalística. Existem, talvez, como reservas ecológicas do ideal do jornalismo. Digo reserva ecológica porque, às vezes, fica no ar um pressentimento de que o jornalismo é um gênero ameaçado de extinção. Tanto que mesmo aí, nos jornais e nas revistas sóbrias, é bom a gente não procurar muito não. Senão acaba achando.

Exemplo? Um anúncio que faz referência explícita ao conteúdo de uma reportagem publicada na mesma edição. O leitor atento vai indagar: ?Mas como pode? Então o anunciante tomou conhecimento da reportagem antes de mim?? Pois é. Onde foi parar a hierarquia que punha o direito à informação do leitor acima do interesse do anunciante? A dúvida é inevitável: será que o anunciante comprou aquela página de publicidade porque conheceu antes e aprovou o conteúdo editorial? Ora, mas essa não era uma publicação independente?

São temas controversos, é claro. Alguém pode dizer que uma revista e um jornal podem revelar, numa situação específica, o conteúdo de uma reportagem específica a um anunciante específico e nem por isso perdem sua independência em geral. Pode ser. De todo modo, é bom não ficar procurando muito. É bom se dar por satisfeito. É o que nos resta. Para além dos diários e das revistas de mais tradição, o que temos é um oceano de publicações indeterminadas, perdidas entre a função pública de informar e o comércio privado de entreter, nas quais não dá para saber se a mensagem está a serviço do leitor-cidadão ou da feira de futilidades. E essas publicações parecem ser a maioria, a sufocante maioria.

Até mesmo o Jornal Nacional, que vem passando por uma profunda e admirável renovação, buscando o equilíbrio, o apartidarismo e a qualidade jornalística, aceita prestar-se ao papel subalterno de promover programas de entretenimento fazendo de conta que eles são notícia de primeira grandeza. O mesmo apresentador que entrevista com correção os candidatos à presidência da República anuncia o que vai acontecer no Big brother logo a seguir. Como se ?noticiar? o Big brother não constituísse uma forma abusiva de reduzir o jornalismo à condição de propagandista de circo. O telespectador, mesmo sem se dar conta, irrita-se.

O princípio de democracia segundo o qual o jornalismo deveria suprir a função de informar o cidadão e, assim, alimentar o debate público está em crise aberta. Está em crise a idéia de que o jornalismo deve atender incondicionalmente o direito à informação, de que todo cidadão é titular. O modelo de negócio clássico dos grandes jornais, que se estruturava como empresa independente frente aos anunciantes e frente ao Estado, está deixando de ser o modelo hegemônico. No mundo inteiro. O que vem vindo no lugar é um modelo de negócio em que entretenimento e jornalismo convivem dentro dos mesmos conglomerados, gerando uma ética escorregadia e indefinida. A independência jornalística, que era o pilar da ética da imprensa, a condição prévia a partir da qual o repórter se credenciava para buscar a verdade dos fatos, já não é um cânone sagrado. Nem mesmo no plano das idealizações. A independência é um patrimônio, todos se apressam em concordar, mas, cochicham os mais astutos, talvez esteja se tornando cara demais. É preciso buscar outros patrimônios – junto aos anunciantes, quem sabe. Com isso, o valor essencial das publicações, a confiança que os leitores nelas depositavam exatamente porque viam nelas publicações independentes, vai evaporando. E, sem independência e sem credibilidade, que interesse um veículo vai despertar no anunciante?

É possível que algumas publicações, no Brasil e fora do Brasil, estejam vivendo uma aflição curiosa: desdobram-se para vender-se a anunciantes e estes, erguendo as sobrancelhas, já não vêem nelas nenhum valor que mereça ser comprado."

 

ITÁLIA / SILVIO BERLUSCONI

"O imperador do novo circo romano", copyright O Estado de S. Paulo / The Guardian, 24/08/02

"O primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi entrou esta semana no coração de um novo conflito de interesses, à medida que seu governo luta em uma crise de direitos de transmissões de futebol que ameaça deixar os italianos sem seu esporte preferido nos próximos meses. Membros da liga de futebol pediram ao governo que interfira e, agora, Berlusconi encontra-se na familiar posição de ter interesses em cada lado da questão.

Como dono do Milan, ele tem um interesse pessoal vital na saúde financeira do futebol italiano; como líder do parlamento, ele controla a RAI, que está reclamando do alto preço dos direitos de transmissão pedido pela liga; e, como dono do principal canal a cabo do país, Mediaset, ele está na pole position para pegar qualquer direito televisivo descartado pela RAI. Isso para não falar do fato do diretor do Milan, Adriano Galliani, também ser presidente da liga de futebol italiano.

Na posição de primeiro-ministro, Berlusconi foi convocado para mediar a crise. Por meio de seu ministro da economia, ele pode ficar surdo aos apelos da liga por subsídios estatais, mediando a crise dos direitos de transmissão por meio de seus ministros da cultura e da comunicação.

No momento, com o campeonato sendo atrasado em duas semanas, a situação entre a RAI e Galliani parece irreconciliável, uma vez que a emissora insiste em oferecer apenas metade dos US$ 85 milhões pedidos pela liga.

Neste caso, os espectadores do futebol ficarão sem as transmissões dos jogos, a não ser que Berlusconi entre em cena no papel de dono da Mediaset.

Membros da oposição no parlamento italianos criticaram na quarta-feira o não resolvido conflito de interesses que levam Berlusconi a ter um dedo em cada botão que precisaria ser acionado no momento de resolver a crise. Uma lei sobre conflito de interesses, que críticos consideram incrivelmente inadequada, ainda não recebeu aprovação final do parlamento. Franco Bassanini, senador democrata de esquerda, pediu ao governo que não interfira na crise financeira do futebol por causa do triplo papel de Berlusconi. E criticou, também, as intervenções pessoais dos ministros da cultura e da comunicação em uma esfera que pouco pode ser considerada serviço público.

?Voltamos 2 mil anos na história, quando os circos eram organizados pelo imperador??

Marco Rizzo, do partido dos comunistas italianos, denunciou as obscuras operações ligadas às estratosféricas taxas em questão neste conflito de direitos televisivos. ?Tem-se a impressão de que ninguém quer chegar a um acordo?, disse ele. ?Mais uma vez, os interesses envolvem os negócios pessoais de Berlusconi, televisão e posições de poder.? Curzio Maltese, um comentarista do jornal La Reppublica, ressalta ainda que Berlusconi foi diretamente responsável pela inflação dos salários de jogadores, o que, em parte, contribuiu para a atual crise financeira do futebol italiano. ?O que está faltando neste cenário grotesco é um juramento solene do primeiro-ministro de que ele não tem, de fato, nenhum interesse no caso.?

Mas Berlusconi está intensamente interessado na questão. Tendo usado o esporte para promover sua carreira política e consolidado sua imagem de vencedor por meio das vitórias de seu clube, parecer o grande responsável por privar os italianos de seu esporte preferido não está entre suas intenções. Com o euro tornando mais difícil a compra do pão de cada dia, seria, de fato, alarmante se o equivalente moderno do circo romano fosse retirado das telas da TV nas próximas semanas."