Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Eugênio Bucci


ELEIÇÕES 2002

“Oráculos eleitorais”, copyright Jornal do Brasil, 29/08/02

“A sacada é da jornalista Renata Lo Prete, da Folha de S. Paulo. Na segunda-feira, ela publicou um artigo em seu jornal anotando um dado sutil, mas revelador: as ?quális? se tornaram o oráculo da campanha presidencial. Candidatos, marqueteiros, assessores e cabos eleitorais, todos citam as ?quális? para embasar seus argumentos. Renata tem toda a razão, o quadro é patético. Eu, de minha parte, só retomo o assunto para comentar mais esse sintoma da submissão da política às técnicas, aos trejeitos e às afetações do marketing. Mais e mais, a política vai sendo regida pelas leis do mercado de consumo.

As ?quális?, no jargão dos pesquisadores, são as pesquisas qualitativas. E o que são pesquisas qualitativas? Começando pelo óbvio: são aquelas que não são quantitativas. O resultado de uma ?quáli?, por exemplo, jamais se expressará em porcentagens, como ?tantos votam nesse candidato, tantos naquele e outros tantos estão indecisos?. Isso é objeto das ?quântis?, como se diz em pesquisês. As ?quális? sondam impressões, opiniões, ansiedades, medos. Nada quantificável, portanto.

O método mais adotado para as ?quális? é o dos grupos de discussão. Numa sala, reúnem-se pessoas representativas de um determinado perfil (por exemplo: mulheres de 25 a 35 anos, solteiras, habitantes do Recife, classe A, que votam no candidato ?X?). Uma vez acomodadas em torno de uma mesa, elas são motivadas por um moderador a emitirem opiniões sobre determinados temas. Podem, antes ou durante a sessão, ser expostas a um comercial de TV, a um produto qualquer, a uma revista. Depois, são estimuladas a falar do que acharam. Quase sempre, a sala tem um espelho falso. Do lado de lá do espelho, pesquisadores e clientes (os que encomendaram a pesquisa) acompanham os debates e mandam suas recomendações, por meio de bilhetinhos, para o moderador: ?pergunte isso, insista naquilo?.

Os defensores dessa nova forma de religiosidade mercadológica acreditam que as ?quális? são capazes de revelar tendências profundas no estado de ânimo dos consumidores. Em seu livro Casos e coisas (sic), o publicitário Duda Mendonça, ex-marqueteiro de Maluf e atual marqueteiro de Lula, diz que não dá um passo sem consultar as ?quális?. Os seus concorrentes também não vivem sem um bom suprimento de ?quális?. A mania acabou contagiando candidatos. Para quase todos, a ?quáli? é de fato o oráculo da nova era. Ela dá voz àquele que é a encarnação da própria ideologia da indústria cultural: sua excelência, o consumidor-eleitor.

O consumidor comum atinge, assim, o estatuto de deus grego. O oráculo, o santuário da Grécia clássica, no qual os deuses, por meio de sacerdotes ou sacerdotisas, davam respostas às consultas dos mortais, acabou descambando nesse templo descartável chamado ?quáli?. Na Grécia, os oráculos eram caprichosos, deixavam mensagens muitas vezes difíceis de interpretar. Desafiavam a inteligência e a intuição de quem os consultava. Foi o oráculo quem disse a Sócrates que ele era o mais sábio dos gregos. Coisa de que Sócrates logo duvidou, pois se sabia ignorante. Só ao longo do tempo foi se dando conta de que sua sabedoria estava justamente nisso, em não ignorar a própria ignorância. Só assim compreendeu a revelação dos deuses.

Agora, as ?quális? são adoradas como fontes de veredictos inequívocos e de facílima aplicação. Autorizam alianças, indicam o modelo de terno mais apropriado, estabelecem a duração da musiquinha no horário eleitoral gratuito. A dúvida socrática já não cabe no oráculo das ?quális?. E em lugar algum. Como a televisão é o oráculo das massas – é dela que o telespectador obtém suas respostas existenciais, respostas sem mistérios, é bom saber, que não são mais que ordens de consumo e que apequenam o espírito (a TV é o oráculo sem espírito) -, o oráculo de quem vive de fazer televisão só poderia mesmo ser o tal ?feed back? da platéia, o retorno do público, esses humores primitivos que são aferidos nas ?quális?. Bobagens vão (pela TV), bobagens voltam (pelas ?quális?). O triste é saber que agora, além de valer de bússola para os profissionais que projetam embalagens de sabão em pó, as ?quális? também estão valendo de estrela-guia para a política. Muito triste. Onde as ?quális? são tomadas como revelação da verdade, a intuição sai de cena, a grandeza sai de cena. A política se converte num joguinho de consultar o eleitor mais ou menos como se consulta o bebedor de refrigerantes sobre a cor ideal da beberagem. Ou sobre o tamanho da borbulha.

Não importa se as diatribes dos pesquisadores e dos marqueteiros são eficazes ou não. Eu, para mim, penso que a eficácia dessa propagandice eleitoreira tem um limite intransponível. Ela não pode mais que a vivência material dos eleitores, não fala mais alto que a participação direta que eles têm nos movimentos sociais. Mas isso não vem ao caso. O que importa, aqui, é apenas lamentar o estreitamento violentíssimo da cultura política, que acabou reduzida a um ramo secundário da cultura de mercado. É por isso que noções próprias da cidadania, como a de legitimidade, acabam sendo substituídas por noções de consumo, como a de popularidade. Um governante já não precisa ser legítimo. Basta que seja popular. Como uma marca de tênis ou um jogador de futebol. É nesse quadro que as ?quális?, veja se pode, são cultuadas como se fossem oráculos.

Tanta tecnologia, tantos efeitos especiais, tanta exuberância publicitária – e tanto vazio.”

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“A cidade imaginária”, copyright Folha de S. Paulo, 1/09/02

“Não, A cidade imaginária não é uma cidade que não existe. Não é aquela que alguém diz que traz na imaginação, a cidade ideal, a cidade dos sonhos, a cidade projetada. Nada disso, por favor. A expressão cidade imaginária, ao menos aqui neste artigo, vem designar a metrópole recoberta de elementos do imaginário: cores, formas, figuras, automóveis, multidões se precipitando nas faixas de pedestres na hora do rush, outdoors de imagens fixas e, agora, outdoors que são televisores mastodônticos escancarados para a avenida que escorre. A televisão gigante brota da parede cega do arranha-céu e põe suas personagens luminosas a se mexer. As paredes urbanas adquirem luz própria, movimento próprio, vida própria. Na avenida Paulista, esses monitores do tamanho de outdoors anunciam mensagens exóticas. Anunciam candidatos a deputado. Na avenida 23 de Maio também. O candidato sorri para o congestionamento. O candidato ainda balança a cabeça. O horário eleitoral irrompe feito pústula pelas brechas do concreto armado. Está preso ali. E, não obstante, ele se move.

O motorista avança para o cruzamento, o rádio ligado numa emissora que repete ?o motorista não encontra dificuldade?, e se distrai vendo o candidato com ar de moça na janela. O motorista bate no carro da frente. O candidato tem um olhar de pura confiança. O carro da frente finge que não é com ele. A batida é de leve. Nenhum automóvel anda, embora a voz no rádio garanta que ?o trânsito flui bem?. O trânsito, aliás, trava. Só o candidato na empena do prédio é capaz de caminhar com resoluta liberdade. A televisão e suas figuras metafísicas cercam a cidade por todos os lados. Cercam a cidade porque cercam o olhar, cada lance fugidio do olhar. Cada objeto é um signo à caça de um par de olhos. Os restaurantes dispostos nas calçadas são os outdoors de si mesmos. Os viadutos fazem publicidade do prefeito. Os edifícios e suas varandas empilhadas, e seus perfis espelhados, e seus heliportos empinados. Os edifícios são anúncios do mercado imobiliário. O traçado das ruas, a moça alta na esquina que veste aquela grife. A imagem publicitária é total. Tapa cada fragmento de horizonte. E se move.

Nas antigas animações de Walt Disney, era comum aquela tirada de metalinguagem pela qual surgia na tela a mão do desenhista segurando um pincel e, desse pincel, respingavam manchas de tinta na página em branco. Na sequência seguinte, as manchas se tornavam independentes e saíam saltitando pela página. Eram bonequinhos, personagens de cartoon ou simplesmente formas abstratas. Que ganhavam vida. Pois é mais ou menos isso o que se passa com a cidade. Camadas sobre camadas de tinta, de formatos, de pistas recapeadas, de placas com nomes de rua, de lápides eternas e sempre atualizadas nas vielas dos cemitérios, de imensos televisores nos cruzamentos, como aquele da Rebouças com a Brasil. A cidade é uma sucessão de imagens que se depositam umas sobre as outras, como colônias de fungo. O imaginário dita o espaço. E se move.

Em ?Blade Runner?, imensas telas planas passeavam pelo céu da noite, como se penduradas num dirigível, fazendo da televisão uma entidade tão onipresente quanto a Lua. Mas ?Blade Runner? é de 1982 e, à luz fria dos nossos tempos, parece uma ficção anacrônica. A televisão onipresente é hoje um dado corriqueiro. Ela está nas cozinhas, nos banheiros, nos táxis, nas salas dos ministros e nas guaritas dos guardas-noturnos instaladas nas calçadas. Está nas farmácias, nos elevadores, nas margens das avenidas, nas moradias dos sem-teto improvisadas sob os pontilhões. ?Eppur si muove?.

Mesmo assim, o sujeito contemporâneo olha para a frente e pensa ver a realidade. Que coisa. Que coisa imaginária. Ele só vê a cidade. Imaginária.”

 

“Quanto mais vemos, menos sabemos”, copyright Jornal do Brasil, 27/08/02

“Em The More you Watch the Less You Know (Quanto mais você vê, menos você sabe), o produtor de TV e cineasta independente norte-americano Danny Schechter sustenta que uma cobertura de TV mais ampla não implica necessariamente uma cobertura de TV melhor. Pelo contrário, diz Schechter, é na disseminação de uma grande quantidade de informações que muitas vezes se perde a objetividade, que está na essência do bom jornalismo.

O produtor cita um texto de Brecht de 1927. ?Espero que inventem alguma coisa melhor ainda que o radio (…). As futuras gerações vão se impressionar ao ver como o planeta Terra é capaz de falar para todos – e ao mesmo tempo perceber que o planeta Terra não tem nada a dizer?.

Brecht não viveu para ver a TV por satélite – e muito menos o horário eleitoral brasileiro. Ficaria igualmente impressionado com um e outro.

Na televisão, a grande maioria dos candidatos ao Congresso brinda o espectador com um extraordinário show circense todos os dias, dando uma boa prévia do que será nos próximos anos o plenário onde se decidem os rumos do país.

Os postulantes ao Executivo, por sua vez, usam o tempo, pelo qual tanto lutaram, para as acusações das quais todos nós estamos tão cansados – e para soluções narrativas menos originais ainda. Pessoalmente, ofereço meu voto para o primeiro candidato que não usar câmera lenta, closes de crianças e pôr-do-sol avermelhado em seus videoclipes.

Essa baixaria estética é mais ofensiva para o espectador do que chamá-lo explicitamente de burro, como um dos candidatos preferiu fazer.

Usando um tempo ganho de graça na TV sem ter o que dizer, é isto que todos os candidatos estão dizendo: já que você é suficientemente estúpido para que eu tente seduzi-lo com o olhar pedinte de uma criança em contraponto a criancinhas bem nutridas correndo em slow motion, então por quê não votar logo em mim e esperar para ver se fica com alguma migalha do meu governo?

O problema talvez resida no fato de que o discurso dos candidatos na televisão não esteja sendo muito diferente do próprio discurso vigente na televisão. Não são apenas os candidatos que apelam para nauseabundos clichês estéticos – e de maneira alguma são eles os únicos a ocupar o tempo das emissoras e as freqüências públicas sem ter nada o que dizer.

É bastante revelador o fato de que os programas eleitorais estejam em larga escala reproduzindo os modelos narrativos da própria televisão, criando programas à imagem de programas de TV que já existem – e até fórmulas interpretativas consagradas na dramaturgia, no humorismo e, o que é pior, no jornalismo de televisão.

Vê-se então que não são apenas os programas eleitorais que estão muito ruins. É sua inspiração também. Conheci uma moça que um dia se deixou retratar por um caricaturista de rua. Vendo o resultado, reclamou: ?Mas o meu nariz ficou muito feio!? Só diante do silêncio geral entendeu que o problema não estava no caricaturista.”

“Debate com detectores de mentira”, copyright O Estado de S. Paulo, 31/08/02

“É excelente a idéia de Silvio Santos utilizar, no debate entre os candidatos a presidente da República, que mediará no próximo dia 15, modernos polígrafos – os chamados ?detectores de mentira? -, que mostrarão numa parte da tela, durante a fala de cada candidato, as oscilações nos gráficos, indicando aos telespectadores se este está ou não dizendo a verdade. Esses novos aparelhos – cujos importadores provavelmente serão os patrocinadores do debate – já atingem um alto porcentual (82%) de acerto (o que, em termos políticos, pode ser considerado ótimo).

Parece que ainda não foi decidido o modelo a ser utilizado. Pode ser um equipamento mais complexo, que usa cadeias de eletrodos ou formação de imagens térmicas, no qual aos polígrafos tradicionais foi acoplado um novo software, de análises da voz, do rubor facial, do tamanho da pupila e até das ondas cerebrais, ?em busca de indicativos de impostura?, ou uma versão mais simples, como o portátil Handy Truster, da 911Tech Co., fabricado na Coréia do Sul. Esse aparelho é televisualmente interessante porque, quando detecta uma verdade, faz surgir uma maçã na tela e, quando detecta mentiras, mostra um verme.

De qualquer forma, esses modernos dispositivos não mais exigem a colocação de fios ou sensores nas pessoas – o que seria constrangedor para os candidatos. São discretíssimos e só perceptíveis por seus resultados postos na tela. Claro que sua utilização dependerá da anuência expressa de cada debatedor – e, certamente, nenhum deles se recusará a usá-lo.

Sem dúvida, essa será uma forma original de pôr a tecnologia a serviço da verdade no espaço público-político, já que a Justiça Eleitoral brasileira tem hesitado em permitir que a população, de outra forma, dela se beneficie, quando a proíbe de rever a expressão direta de pensamentos, de gestos e de comportamentos de políticos, anteriormente registrados. É difícil aceitar que a exibição na televisão do que disse uma pessoa pública, livremente, perante as próprias câmeras seja censurada como se constituísse ofensa a ela mesma!

Alguns podem achar que mentiras ditas por pessoas públicas, a respeito de assuntos pessoais sem maior relevância, são práticas naturais, que não prejudicam ninguém. Aí está o grande engano. A sabedoria popular mostra, num velho provérbio, a capacidade de potencialização humana tanto para virtudes quanto defeitos: ?Cesteiro que faz um cesto faz um cento, tendo cipó e tempo.? Quem tem facilidade de proferir pequenas mentiras, havendo necessidade e tempo, nada o impedirá de assacar as petas mais cabeludas. É o caso dos candidatos que, dos pequenos ?enganos? em relação à própria biografia, podem passar para as promessas de campanha mais enganosas. Se os eleitores puderem captar, por antecipação, indícios ?técnicos? do potencial de produção de patranhas, lorotas e engodos desses candidatos, com certeza seus votos serão mais precavidos e conscientes.

O melhor dos planos, a proposta mais generosa, a argumentação mais inteligente se desfaz quando se percebe que quem os produziu tem o hábito de faltar com a verdade, mesmo nas coisas mais simples da vida. E, infelizmente, muitas carreiras políticas de pessoas dotadas de grande carisma, e de poder de articulação verbal estonteante – considerando o padrão médio de informação e cultura de uma população como a brasileira, que não tem condições de checar tudo o que lhe é despejado com deliberada rapidez locucional -, foram estruturadas e se tornaram bem-sucedidas graças ao engodo, à embromação. Agora, quem se habituou a faltar com a verdade adquire um hábito do qual não se consegue desvencilhar, mesmo deixando de precisar dele.

Os antigos já conheciam essa terrível característica de alguns seres humanos, tanto que de muitas maneiras tentaram detectá-las, cientificamente.

Segundo matéria de Ariana Eunjung Cha, do jornal The Washington Post (reproduzida domingo no Estado), ?há séculos que a humanidade busca um indicador físico que desmascare um mentiroso. Os romanos estudavam as vísceras dos suspeitos de ser mentirosos. Na China, enfiava-se arroz na boca do entrevistado para verificar sua secura, pois se acreditava que, quanto mais seca a boca, maior a probabilidade de que a pessoa estivesse mentindo.

Outras culturas experimentaram várias poções químicas ou ?soros da verdade?.?

É claro que hoje os equipamentos de detecção de mentira são bem mais civilizados e confiáveis, abastecendo um próspero mercado, seja das seguradoras, dos departamentos de compras das empresas – para detectar vendedores fraudulentos -, seja nos escritórios de advocacia, promotorias públicas, nas investigações policiais, conjugais – casos de suspeita de infidelidade – e inúmeros outros campos. Então, por que não usar essa tecnologia disponível para uma ação de máximo interesse público, qual seja, o de tranqüilizar a Nação quanto ao fato de seu futuro dirigente dizer a verdade?

Com o uso do equipamento se saberá a reação dos candidatos, por exemplo, em relação a fatos de sua vida passada – como viveu, com quem andou, em que acreditou, onde estudou – e a idéias e sentimentos reais que possuam – o que sentem, por exemplo, pelos antigos inimigos aos quais se aliaram, se há ou não repulsa interna pela coalizão partidária a que foram obrigados a se submeter, se têm ou não preconceito contra algum tipo de minoria social, se respeitarão ou não os contratos e a poupança do povo, etc., etc., etc.

Quando o candidato der sua resposta, ao ser indagado sobre alguns desses assuntos, uma parte da tela estará mostrando ao telespectador a verdade de sua alma. Não será uma tremenda contribuição para o aperfeiçoamento das instituições democráticas do País – além de ser um remédio alternativo para o rígido sistema censório imposto por nossa Justiça Eleitoral?

P.S.: Bem entendido, não disse que Silvio Santos teve essa idéia. Eu é que a tive e a coloco como sugestão ao criativo apresentador – ou a quaisquer outros organizadores de debates políticos – pelas razões expostas. Espero que os candidatos não tenham receio de aderir. (Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor e produtor cultural E-mail: mauro.chaves@attglobal.net)”