Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Eugênio Bucci

TV / BAIXO NÍVEL

“?Sinto muito, eu faço TV?”, copyright Folha de S. Paulo, 8/09/02

“Agora é assim: os profissionais de TV pedem desculpas pela TV que fazem. E no entanto fazem. Na semana passada, foi a vez de Alessandra Negrini, em entrevista para o TV Folha. A repórter, Carla Meneghini, perguntou se a atriz fora surpreendida com o grau de violência que a novela ?Desejos de Mulher? acabou assumindo. Eis a resposta da atriz: ?Eu não me surpreendo com nada da TV, há violência demais. ?Desejos? é passível de crítica, sim, mas é o que o público queria ver. O autor foi atrás de ibope. A audiência só subiu quando a novela ficou mais violenta. Então a culpa é da novela ou da sociedade??

O diálogo que se seguiu merece ser relido:

?Você permitiu que seu filho, de cinco anos, visse a novela??, indagou a entrevistadora.

?Meu filho não assiste televisão.?

?Por quê??

?Porque nós não vemos TV lá em casa.?

?Nem um pouco??

?Nada. Não temos hábito e não sentimos falta. Às vezes, vemos algum documentário do Discovery, os únicos programas que valem a pena. Temos coisas mais interessantes e úteis para fazer, como ler ou conversar. Mas reconheço o valor da TV e acho importante lutar pela qualidade da programação, que está muito ruim.?

São palavras dela. Agora, sigamos adiante.

Alessandra Negrini é uma atriz de liquefazer retinas. A sua atuação como a Engraçadinha de Nelson Rodrigues, na série lançada em 1995 e reprisada em 2002, é uma glória da espécie. A sua risada soa como um rito ancestral, as suas coxas amolecem e retesam a respiração da gente, o suor de morte lhe percorre a testa e ilha seus olhos intangíveis. Alessandra justifica sozinha a invenção do televisor. Só por ela, ela e mais ninguém, tudo de bom e de ruim teria valido a pena. E, no entanto, ela quase nos pede desculpas por fazer TV.

Não é a única, por certo. Há outros que entoam lamentos iguais. Eu me lembro de muitos, mas cito aqui apenas mais um. Lima Duarte, numa entrevista ao jornal ?Agora São Paulo?, de 21 de abril (reportagem de Fábio Eduardo Murakawa, página A-13.): ?Eu, particularmente, não suporto, não aguento assistir. E é assim que eu não vejo TV. Como profissional, eu vou lá e tento fazer o melhor possível.?

Vivemos, de fato, um período desconcertante. Vários profissionais da TV não suportam ver (e não deixam que seus filhos vejam) os programas que ajudam a pôr no ar. Creio que este é um dos grandes sintomas do mal-estar ético que acomete a televisão brasileira: ela, em grande parte, é realizada por pessoas que não a recomendam para os seus. Não digo que seja esse exatamente o caso de Alessandra e de Lima Duarte, mas há por aí muita gente que desempenha uma função diante das câmeras (ou atrás delas) da qual não se orgulha. Pior, gente que desempenha uma função da qual se envergonha. E, depois, se desculpa. Mais ou menos como o policial que alega, condoído: ?Eu apenas cumpria ordens?. Ou como o sujeito que trabalha na campanha de um político sabidamente corrupto, editando para ele programas irresistíveis, que farão sucesso no horário eleitoral gratuito, e que não vota no candidato que lhe paga. E que considera esse candidato um parasita do dinheiro público. E que abomina as mentiras eleitorais que veicula para ludibriar o eleitor. Esse sujeito se justifica toda noite, diante do espelho: ?Faço isso apenas pelo dinheiro?. Como se tivesse o direito de mercadejar com a confiança do público.

Um dos mais graves problemas da televisão no Brasil é que seus realizadores fingem para si mesmos que não têm compromisso moral com o resultado de seu trabalho. No fundo, todos acreditam que é justo ou bom oferecer aos filhos dos outros o que se recusa para os próprios filhos. E lá vamos nós, belos, febris e inimputáveis, como as coxas de Alessandra Negrini.”

“A qualidade da TV não é prioridade”, copyright O Estado de S. Paulo, 8/09/02

“De tempos em tempos, o governo lembra-se de que TV é uma concessão pública e chama as emissoras para um puxão de orelhas. Esse movimento tem se repetido há décadas e com o mesmo resultado, ou seja, deixa-se tudo como está, até o assunto ser retomado por alguma autoridade que acaba de chegar.

Veículo forte e por isso extremamente cortejado por quem precisa de visibilidade, a TV é tão onipresente na vida brasileira (95% dos domicílios brasileiros são equipados com geladeira e 96% têm televisão) que sua missão (determinada na Constituição) passa despercebida até pelos que pleiteiam a Presidência.

Tanto é verdade que nenhum dos candidatos presentes ao debate de segunda-feira na Rede Record notou o comunicado em que a emissora afirma estar atendendo à solicitação do Ministério da Justiça de se comportar e exige que o poder constituído obrigue suas concorrentes a fazer o mesmo.

O alarde da Record – que condena ?imagens apelativas de corpos seminus nos programas de auditório?, ?temas abusivos em novelas de grande audiência? e ?casos de aberração? – tem poucas chances de sensibilizar a sociedade.

Mesmo porque a TV nem sequer foi cogitada pelos que estão, em tese, repensando o Brasil. Ela não é prioridade do programa de governo de nenhum dos presidenciáveis com chances de chegar ao Palácio do Planalto. Quem quiser comprovar basta dar uma passeada pelos planos de governo expostos na internet e em outros materiais de campanha dos candidatos.

A despeito da indiferença generalizada, o comunicado da Record faz algum sentido. Tirando fora o ?marketing? de assumir-se como a emissora ?mais família? de todas e de cometer seus pecados – exibir à tarde o festival de horrores chamado Cidade Alerta não é exatamente obedecer a normas de classificação de programas por horário e faixa etária -, a Record põe na roda a qualidade da TV consumida cotidianamente pelo brasileiro.

A TV brasileira nunca foi uma BBC, mas a despencada dos últimos tempos é algo incomparável. Cenas sensuais e corpos seminus são o de menos. A falta de conteúdo, a exploração do bizarro e da miséria humana (a título de entretenimento ou jornalismo) resumem a vocação de inúmeros programas.

Emissoras de pouca audiência – Rede TV! e Bandeirantes, por exemplo – descambaram feio. João Kléber e Márcia Goldschmidt – donos de shows vespertinos – ultrapassaram Ratinho no mau gosto, explorando a desgraça de pobres coitados. Programas ?policialescos? como Repórter Cidadão e Brasil Urgente perderam qualquer bom senso na batalha por ibope.

Esses exemplos são os extremos da má qualidade, mas eles não estão sós. Existe muita coisa ruim na TV aberta que, em primeira instância, é formada por concessões públicas que teriam de valorizar a cultura nacional, estimular a formação da cidadania e defender a língua portuguesa, como reza o artigo 221 da Constituição.

Então, a chiadeira da Record faz sentido, especialmente se conseguir chamar a atenção dos candidatos à Presidência.”

 

TV / CLASSIFICAÇÃO

“Governo vai criar comitê para classificar TV”, copyright Folha de S. Paulo, 5/09/02

“Já está pronta no Ministério da Justiça uma minuta de portaria que cria um comitê consultivo para a classificação de programas de TV. O secretário de Justiça, Antonio Freitas Jr., diz que o conselho poderá ser instalado em um mês.

Segundo o secretário, o comitê será formado por juízes e promotores de criança e adolescente, por representantes das TVs, produtores de espetáculos e cinematográficos e por religiosos. Terá a função de opinar em casos em que determinada rede, por exemplo, discorda da classificação etária feita pelos técnicos do ministério.

?Essa será a melhor forma de equilibrar os conflitos em torno da classificação?, diz Freitas Jr.

Na semana passada, o Ministério da Justiça advertiu todas as redes de TV por terem exibido durante a tarde e início da noite filmes classificados como inadequados para exibição antes das 21h. As advertências foram encaminhadas ao Ministério Público.

De acordo com o ministério, a Globo cometeu dois ?excessos? (um deles ao exibir ?Titanic? às 13h30), mesmo número da Record. O SBT teve quatro exibições inadequadas e a Rede TV!, cinco.

O secretário diz ainda que não houve nenhum acordo com a Record pelo cumprimento de classificações, ao contrário de comunicado em que a emissora pede o mesmo tratamento às rivais. ?Não é nossa competência ser gestor da qualidade na TV, porque isso é limítrofe da censura.?”

 

SEM-TV

“Exilados da aldeia global”, copyright Folha de S. Paulo, 9/09/02

“Existe vida sem televisão. Mesmo numa época em que é cultuada na maioria das casas -pelo último censo do IBGE, há televisores em cerca de 87% (38.906.707) dos domicílios brasileiros-, a TV não tem vez em muitos lares, seja por motivos religiosos, ideológicos ou financeiros. A cineasta Suzana Amaral, diretora do premiado ?A Hora da Estrela? (1985) e que recentemente lançou ?A Espera de uma Vida?, tem aversão à televisão. ?Não suporto ficar parada em frente a alguma coisa que não estimule minha imaginação?, diz. Suzana mora sozinha. Quando os filhos aparecem para uma visita e ligam o aparelho, ela se isola no quarto atrás de um livro: ?Se ainda fosse uma televisão que desse alguma contribuição pelo menos estética ou social…?. ?Não assisto por achar os programas horrorosos?, diz o escritor João Ubaldo Ribeiro, que teve duas obras -?O Sorriso do Lagarto? e o conto ?O Santo que Não Acreditava em Deus?-, adaptadas para a TV. Habituado a dormir cedo, ele lê ou trabalha na parte da noite em que a família se reúne na frente da televisão. ?Encontro em festas algumas estrelas famosas e, como não as reconheço, elas ficam ofendidas?, diz. ?A melhor coisa que existe na TV é o botão de desligar?, concorda o cartunista Jaguar, que nunca teve televisão; prefere a leitura. ?A televisão até seria interessante se eles não decidissem que as pessoas que assistem são um bando de retardados?, afirma. O auxiliar de hotelaria Josualdo Souza Santana, morador de Caraíva, no litoral sul da Bahia, não tem televisão há sete anos. ?A questão da gente é desligar do mundo. A TV só dá notícia ruim?, diz. A cidadezinha não tem luz elétrica e, segundo Josualdo, das 300 famílias que moram ali, apenas cinco possuem televisores, alimentados por gerador.

Overdose

O último censor do regime militar, Coriolano Fagundes, passou 35 anos vendo cinema e televisão por conta de seu ofício. ?Eu via por obrigação profissional e acabei tendo uma overdose?, conta o aposentado.

Fagundes virou pastor evangélico. Agora , gasta seu tempo ouvindo música clássica ou evangélica e lendo a Bíblia. ?A TV é um fator de desagregação da família. Hipnotiza as pessoas e ninguém se comunica. As novelas passam mensagens torpes?, censura o ex-censor. Laura Bacelar, editora do selo GLS, também não assiste: ?Sou lésbica e acho os programas insuportavelmente heterossexuais?. Ela gasta suas noites fazendo cursos ou, no máximo, assistindo a um filme no videocassete. ?Tenho uma conversa mais inteligente com a minha pizza?, critica. ?A TV é diabólica?, radicaliza o devoto da Assembléia de Deus Jorge Reis. Aposentado, ele mora com a esposa, duas filhas e dois netos, e, há 23 anos, não possui televisão. ?Aqui ninguém assiste. Quem quiser, tem de assistir em outro lugar?, impõe o religioso. Na casa dele, todos dormem antes das 22h, e o lazer é a música ou o diálogo. ?No ritmo em que a TV se encontra, está como ?Sodoma e Gomorra?, uma verdadeira baixaria?, afirma Jorge.

Ideologia

O militante anarquista Robson Achiame acha que ?a TV expande a ideologia capitalista no mau sentido, aquele capitalismo selvagem e maluco?. Ele acredita que a televisão tira de muitos o tempo para namorar, ler ou se divertir. ?É tudo conduzido para uma burrificação geral?, discursa. A lavadeira Maria José da Silva, moradora da favela da Maré, no Rio de Janeiro, até gosta de televisão, principalmente do ?Programa do Ratinho? (SBT). Entretanto, há quatro anos, seu barraco foi inundado, e a TV não resistiu. Como não gosta de incomodar a vizinhança, à noite Maria prefere ficar em casa com os três netos. ?Ligo o meu radinho, coloco o cachimbo na boca, e ficamos contando histórias; depois, vamos dormir?, diz. No barraco, todos dormem às sete da noite e acordam às cinco da manhã. Quando sobra um tempo, Maria José aprecia uma novelinha. No rádio. ?A vida é assim: a gente se acostuma com tudo?, diz.

Culpa

?Ficar paralisado na frente da TV gera um constante sentimento de culpa por não estar fazendo nada?, afirma o guitarrista Rafael Bittencourt, do grupo Angra. Além da falta de interesse, ele não assiste por estar constantemente em shows ou gravações: ?Até em países desenvolvidos a TV aberta é muito ruim?.

O ?base jumper? Luiz Tapajós, o Sabiá, é um esportista radical que salta de penhascos e edifícios, já teve um quadro no ?Domingão do Faustão? e, atualmente, é cinegrafista do ESPN Brasil. Mas, apesar de gostar de TV, não assiste por falta de tempo. ?Não me imagino sentado assistindo a uma novela?, diz.

A atriz Cristiane Torloni, que já atuou em 15 novelas e vai protagonizar a trama que substituirá ?Esperança? na Globo, se diz orgulhosa do seu trabalho na teledramaturgia, mas só assiste à televisão homeopaticamente.

Ela reconhece que sua profissão exige que veja TV e acha até que o meio está mais democrático, entretanto não consegue ficar sentada por muito tempo diante do aparelho. ?Quando chego em casa, tenho milhares de outras coisas para fazer: ouvir música, ver os meus bichinhos, tomar um drinque, ligar para os amigos…?, conta a atriz.

?Hoje em dia, é preciso ser muito seletivo com a TV, porque senão você acaba sendo abduzido por ela?, alerta a heroína da próxima novela de Manoel Carlos.

***

“Acadêmicos têm visão crítica”, copyright Folha de S. Paulo, 8/09/02

“No meio acadêmico, a TV tem sido vista de forma cada vez mais crítica. A professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro Raquel Paiva, por exemplo, não assiste e não permite que a filha, de 10 anos, veja novelas.

?Acho necessário apresentar alternativas. Dou muitos livros e ofereço outras formas de informação para tentar retirá-la deste circuito imbecilizante?, afirma.

Para ela, por ser um meio muito facilitador, a televisão faz com que seus espectadores tenham uma relação cada vez menos natural com a escrita.

?Diversos pensadores já puseram em dúvida a necessidade de assistir à TV por considerá-la um veículo que compromete o senso crítico?, diz o professor de teoria da comunicação da UFRJ, Aluízio Trinta: ?A televisão é mais forma do que conteúdo. E, por natureza, é um conteúdo ralo, raso, movediço e sugerido?.

Aluízio cita o teórico francês Pierre Bourdieau: ?Ele pregava que a TV não merece ser considerada um instrumento de representação da realidade, porque ela não é uma janela para o mundo, mas uma janela direcionada; tudo nela é falso e pré-editado?.

O professor diz que uma outra onda de rejeição à TV aconteceu no Brasil durante os governos militares, devido à complacência do meio para com o regime. ?Os militares viram na televisão um porta-voz eficiente. E os intelectuais politizados passaram a encará-la como veículo menor.?”