Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Eugênio Bucci

ÔNIBUS 174

“Santa TV, olhai por nós”, copyright Jornal do Brasil, 12/12/02

“O documentário Ônibus 174, que entrou recentemente em circuito comercial, já foi elogiado por muitos motivos diferentes. E justos. Destaco, entre tantos outros, os méritos jornalísticos do longa-metragem (mais de duas horas!) do diretor José Padilha. Não são méritos jornalísticos quaisquer. São méritos que alcançam uma dimensão estética tão grandiosa que chega a ser assustadora.

Ao narrar o seqüestro do ônibus urbano 174, no Rio de Janeiro, que aconteceu no dia 12 de junho de 2000, o filme consegue ser meticuloso na reconstituição de um episódio particular e preciso no diagnóstico geral. Nisso reside boa parte de sua grandeza – informativa e estética. Detalhe por detalhe, ele reconstitui a tarde em que uns poucos passageiros foram transformados em reféns pelo assaltante Sandro do Nascimento. O perfil do personagem central é apresentado de modo engenhoso. Passagens de sua biografia vão se encadeando com os lances do seqüestro. Lentamente, as coisas parecem ter uma lógica.

O menino pobre que, aos 6 anos, viu a mãe morrer esfaqueada, que fugiu de casa para virar habitante da rua e que, anos depois, milagrosamente, sobreviveu ao massacre da Candelária, torna-se um adolescente a mais, um como tantos outros a perambular de presídio em presídio, numa carreira desgraçada feita de crimes menores, tormentos, vícios. O incrível é que o documentário vai demonstrando que sua trajetória pessoal, que não teria rumo nenhum, não teria conclusão nenhuma, tem sim um grande sentido narrativo: a fatalidade do final espetacular. Sim, espetacular. O ônibus rendido e paralisado por Sandro logo é cercado pelas câmeras de TV, todas ao vivo e, claro, pelos policiais. É um superespetáculo. A partir daí, sua tragédia acontecerá diante dos holofotes, dos microfones, para deleite do grande, imenso e pouco respeitável público. Ali está o sentido de sua vida: a tragédia. ?Tá pensando que isso aqui é filme de ação??, ele grita da janela. Ele que – o filme mostra – sonhava com a fama. Ali se consumou o sentido maior de sua vida sem sentido. Diante das câmeras, no instante em que tenta se entregar, ele mata uma refém que não queria matar. Nos minutos seguintes, morre asfixiado nas mãos de dois policiais. A tragédia, escrita pelo acaso e pelo caos, passa na tela como se fosse uma obra-prima de ficção. Há nela uma história muito mais ampla que o episódio particular.

Por aí é que entra o diagnóstico geral que o documentário desvela: a polícia é um aparato definido pela falta de equipamento, pela falta de empenho, pela falta de preparo e pela falta de coração. A polícia é parte da estrutura social baseada na miséria e na violência: ela não é um antídoto contra tudo isso, mas um fator de perpetuação disso tudo. Ônibus 174 acerta no particular (no episódio que narra) e no geral: é uma reportagem devastadora e incontestável. A tragédia de um Sandro anônimo, de milhões de seres invisíveis como ele, revela-se a tragédia do Brasil inteiro.

Seres invisíveis. Não é por acaso que falo neles. O tema da invisibilidade é, na minha opinião, a melhor virtude do documentário. Entre os entrevistados do filme, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Rio de Janeiro, insiste bastante nesse ponto. Para Soares, os seres que, de tão pobres, acabaram condenados à invisibilidade são pessoas impossibilitadas de despertar qualquer emoção que seja nos cidadãos estabelecidos. Segundo ele, a nossa sociedade aprendeu a conviver com as multidões de invisíveis, como as crianças de rua, como se todos fossem um dado da natureza, um fenômeno normal do cotidiano. A sociedade simplesmente foi deixando de vê-los. Os seres invisíveis não dispõem de nada que lhes permita causar reações nos cidadãos que têm casa, que têm dentes, que têm documento. Para eles, a arma é muitas vezes o único acesso à visibilidade, pois a arma lhes ajuda a despertar no outro uma emoção: o medo.

À luz da tese de Luiz Eduardo Soares, que acaba se convertendo num pilar ideológico do documentário, Sandro nada mais é que um ser invisível tentando alcançar um lugar passível de ser olhado. Munido de um revólver, ele procura anunciar que é alguém. Mais ainda: procura proclamar que é alguém para as câmeras de TV, isto é, para o mundo.

A imagem de Sandro, berrando para as objetivas com o rosto para fora da janela do ônibus lembra um afogado que procura pôr a boca para fora d?água em busca de ar. Sandro busca a visibilidade como quem busca o ar, como quem busca a vida. Por isso, aliás, ele sonhava com a fama. Somente a fama, por mais breve que fosse, poderia pacificá-lo. Para a velha senhora que lhe cedeu um cômodo para morar, aquela a quem ele tratava como mãe adotiva, prometera que ficaria famoso e que daria jeito na vida. O pobre sobrevivente da Candelária queria apenas ser visto, queria ser visível, queria ser olhado pelos semelhantes e, se possível, pela entidade que olha por nós, que é a mídia. Eles, os invisíveis, sabem intuitivamente que a mídia é menos importante para ser vista e muito mais importante para nos ver. Ser visto pelas câmeras de TV equivale a ganhar o direito à existência. A elas, à TV e à mídia, a sociedade implora, todos os dias: olhai por nós. Agora e (ou) na hora de nossa morte.

Sandro, quando morreu asfixiado, estava deitado no fundo de um camburão. Longe dos holofotes. Morreu entregue de volta à escuridão da qual jamais deveria ter se atrevido a fugir.”

***

“Adestrados para o show”, copyright Folha de S. Paulo, 15/12/02

“Uma das cenas mais perturbadoras do documentário ?Ônibus 174?, em exibição em alguns cinemas de São Paulo, é o momento em que uma das reféns escreve, com um batom, no pára-brisa do circular: ?Ele vai matar geral?. ?Ele?, claro, é o assaltante Sandro, de 21 anos, que, no dia 12 de junho de 2000, manteve por várias horas alguns reféns dentro do ônibus 174, no Rio de Janeiro. Cercado por policiais e pelas câmeras de TV, que transmitiam tudo ao vivo, ele exigia armas, dinheiro e um meio de fuga. Ou era isso, ou ele mataria as pessoas que mantinha em seu poder.

O desfecho, como todos nos lembramos, foi trágico. No instante em que descia para a rua, protegendo-se atrás de uma refém que lhe servia de escudo, Sandro foi surpreendido por um policial que se aproximou tentando alvejá-lo na cabeça com uma submetralhadora. Esquivou-se e safou-se do tiro. Em resposta, disparou seu revólver contra o escudo humano. A moça morreu. Capturado, Sandro morreria nos minutos seguintes, asfixiado por policiais dentro de uma viatura.

Parece idiossincrático dizer que, num longa-metragem que retrata um episódio tão violento da vida brasileira, a cena mais perturbadora seja a imagem de uma jovem escrevendo com batom no pára-brisa. Parece idiossincrático, mas é a verdade. A cena perturba porque revela um incrível sangue frio da vítima, a refém-escriba. Ela tem a presença de espírito necessária para escrever a mensagem de modo invertido, desenhando as letras da direita para a esquerda, de modo que os policiais e os repórteres que estão do outro lado do vidro, fora do ônibus, possam ler as palavras normalmente, da esquerda para direita.

Sua calma, que parece inacreditável, é explicável. Ela sabe que escreve para as câmeras, para a platéia, e o que perturba é exatamente isso: mesmo as vítimas mais pressionadas, vivendo tensões tão extremadas, conseguem manter intacta a sua noção de cena, a noção de que é preciso saber se comunicar com as câmeras. Aquela refém pensou no conforto do telespectador. Ela sabia, instintivamente, que o sequestro transcorria como um grande show de televisão, ao vivo, e que sua sorte dependeria de seu desempenho.

Depois, várias outras mensagens se sucederiam, nos vidros laterais do coletivo, sempre em batom. O recurso do batom vira a mídia principal do criminoso. Lá pelas tantas, a escriba se atrapalha ao fazer um ?s? invertido, mas logo o corrige, rabiscando por cima. Ela demonstra grande fluência e boa produtividade, o que vai lhe render uma certa simpatia da parte de Sandro. (A propósito: não será ela a escolhida para a tarefa de escudo humano; ao final, ela terá sobrevivido.)

Todos ali estavam conscientes do espetáculo. Isso se manifestou em outras passagens, que ?Ônibus 174? registra muito bem. A certa altura, todos simulam, cúmplices entre si, a execução de uma refém. O criminoso força a vítima a se deitar no chão do veículo, afastando-a do campo de visão do público. A platéia sabe que ela está ali no chão, mas não a vê. Sandro comanda a cena com gestos largos, enfáticos, como se fosse o protagonista de uma peça de mímica. Em seguida, com sua intensidade gestual característica, dispara um tiro em direção à refém deitada. Imediatamente, todos gritam e choram, representando um quase estado de choque coletivo. O propósito, ficará claro logo depois, é blefar e, assim, pressionar os policiais. Mas blefar, sempre, na linguagem da TV.

A linguagem possível para o assaltante e seus reféns se comunicarem com as autoridades acaba sendo a linguagem banal dos shows de TV. É como se, fora do grande ?reality show? que é o mundo retratado pelas câmeras, já não houvesse mais esperança de comunicação. É como se a vida ou a morte de cada um dependesse de seu talento diante das câmeras, de seu adestramento para entrar em cena.”

 

SIMPSONS NO RIO

“Carioca da gema”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 7/12/02

“É tudo verdade, meu caro Matt Goening. Não se impressione com esse papo de que você e sua valorosa equipe estão denegrindo a imagem da cidade com a viagem dos Simpsons ao Rio (Feitiço de Lisa, domingo, dia 8, 20h30, na Fox). Orson Welles também andou por aqui filmando o ?É tudo verdade?. Fracassou. Deveria ser um documentário, mas era tudo mentira. Quis dar um sentido heróico aos batuqueiros da Praça 11, aos jangadeiros cearenses. Acabou com os primeiros, matou os segundos. Tudo papo furado, sociologia de culpa barata. Política da má vizinhança. Não somos heróis coisa nenhuma. Fracos, bêbados, desocupados, bandidos, sexualidade cômica, eis o perfil da cariocada que vocês mostram nos Simpson. Sabem de uma coisa? É por aí. Não dá para generalizar, claro, mas quem fez a pesquisa sabe das coisas. Vocês fizeram, meus caros, um desenho animado e a princípio deveria ser tudo mentira. Mas não. Tudo verdade. Qualquer pessoa que more na rua Maria Angélica, por exemplo, no Jardim Botânico, e eu morei anos lá, sabe que os macacos invadem os apartamentos atrás de bananas. Não têm nada de graçola. São perigosos em bando – e eu já tive uma vizinha atacada por eles na cozinha. Vocês colocaram no filme uns macacos correndo atrás de um pobre menino. As autoridades chiaram. Deixa pra lá. Eles não sabem da missa a metade. Todos da Silva. Ignorantes da selva.

Como é que você soube dessas coisas, meu caro Matt? A Lisa aparece no avião lendo um falso guia de viagem, que parece ter sido chupado do Lonely Planet. Recomenda, por exemplo, que só se beba água mineral. Eu diria que nem essas, porque também estão cheias de coliformes fecais. Ferva sempre. Mas, em geral, Matt, você está informadíssimo sobre a trapalhada que é isso aqui. O Rio é uma cidade cercada de cronistas por todos os lados, mas esta semana você é o mais arguto deles. Está tudo lá no Feitiço de Lisa. Motorista de táxi pirata, quem já não pegou? Você colocou o nosso Hommer sendo seqüestrado por um e, vou te contar, pegou leve. Há motoristas que não só seqüestram, mas estupram e até matam. A barra é pesada, mas, como você bem reparou, tem muita diversão também. Não sei de onde você tirou aquela idéia de que se vai a qualquer canto da cidade engatado em enormes filas de gente dançando a conga. Deve ter sido da visão de algum trenzinho em baile de carnaval. O que me impressiona é a cariocada nunca ter pensado num troço desses. Faz sentido, é prático, e mais uma oportunidade de rolar uma sacanagenzinha tão ao nosso gosto. O Hommer gruda numa dessas congas, segura o cara da frente pela linha abaixo da cintura, sente uma certa consistência glútea e diz, empolgado, cantando: ?Minha mão está na bunda de um cara e esse cara deve malhar.?

O programa ficou muito engraçado. Você brinca, meu caro Matt, com a sensualidade do carioca, a mania de cultuar o corpo, essa coisa de estar sempre parecendo ávido por uma grande suruba. Não descobriu nada de novo – é assim mesmo. Há séculos. Pelo menos entre os que acreditam na lenda da carioquice. Um bando de gente malhando o corpo para que esteja em condições de malhar o corpo alheio. Na boa. Sem censura. Pensa-se muito maquilo e, você carinhosamente, curtindo com a nossa cara como só os bons amigos podem fazer, mostra essa pândega pansexual. ?Essa música de batuque tira as inibições da gente?, fraqueja Margie no carnaval revirando os olhinhos para os bofes. Já no avião, o comandante e o co-piloto formam um casal gay. E o primeiro, com voz fresquíssima, anuncia ao microfone: ?Senhores passageiros, no Rio a temperatura está quente, quente, muito quente, com 100% de possibilidade de paixão.? Os machões da cidade não vão gostar muito, porque vocês, meu caro Matt e equipe, realçaram muito um clima de cuecão de couro. Do seqüestrador ao guarda-vidas na praia, todos que aparecem em cena, são gays, ou um instantinho machos e noutro instantinho gay. Até as notas do real, por serem rosa e roxo, são consideradas dinheiro de boiola. Mas, sei lá, você deve ter alguma razão para desconfiar desses ambientes de muita afirmação macha. Aquelas sunguinhas que a gente usa na praia, e você botou no Hommer, são realmente esquisitas. Valeu o toque. O Hommer, a propósito, parece em casa. Ele perde o carnaval porque está seqüestrado na floresta amazônica, mas quando sua mulher vê aquela confusão nas ruas, lamenta por ele: ?Hommer ia gostar dessa ambigüidade sexual.?

Achei, sério, O feitiço de Lisa, carinhoso com o Rio. Somos aquilo mesmo. Um bando de caras desempregados sem ter o que fazer, sentados na calçada vendo a turistada passar. Gostei muito da cena em que uma mulher entretem os Simpsons apenas o tempo necessário para que os filhos dela roubem os turistas pelas costas. É isso aí, Matt. Não existe ingênuos do lado debaixo do Equador. Uma loura quase desnuda, a grande fada madrinha das crianças brasileiras, cruza o filme diversas vezes com pompons nos mamilos (o nome do programa é Telemelões) enquanto suas assistentes de palco esfregam-se nas pilastras do cenário. Meu caro, Matt, só o olho estrangeiro para se espantar com isso. Perfeito. No Rio as louras da televisão ensinam as primeiras letras e as primeiras posições, na mesma aula, sem cortes para o comercial. Estranhíssimo, pornográfico, mas aqui todo mundo acha muito natural. Você fez quase um filme verdade sobre o Rio. As pitadas de nonsense, aqui e ali, são para não perder a marca Simpson. De resto, repito, tudo verdade, ou muito próximo de ser. ?É a terra dos contrários, onde o ladrão corre atrás da polícia?, define Hommer. Na mosca. Tudo acaba em futebol, como os Simpson viram na recepção do hotel, onde os bellboys fazem as malas de bolas. Já houve prefeito que pintou a favela de cores alegres para dar boa impressão aos turistas. Tá tudo no teu filme, Matt, e não sou eu, cansado de ver essas coisas acontecerem na minha frente, que vou me fazer de freira. A propósito. Genial quando o Hommer se dependura no cangote de uma e tenta voar pela favela atrás do menino que fugiu do Orfanato dos Anjos Imundos, localizado na rua Papaia.

Quando o desenho estreou nos Estados Unidos, um secretário de Turismo do Rio pensou em processar você, Matt, e toda sua equipe por estarem prejudicando a imagem da cidade. Não leve à mal. Apenas mais uma das nossas bobagens. Eu acho até que você poderia fazer como o policial que recebe a Margie na delegacia quando a coitada foi lá reclamar que tinham-lhe seqüestrado o marido. Diga ao secretário o mesmo que o policial disse para a Margie: ?Acho que você está a fim de mim.? O Feitiço de Lisa debocha dos cariocas, claro, mas no mesmo tom inteligente e por dentro que a turma dos Simpsons usa para esculachar com os americanos. Quem mora por aqui sabe que essas criancinhas nos sinais não são mendigas coisa nenhuma. E você, Matt, meteu bem isso na história. Os Simpsons vêm ao Rio para procurar um certo menino abandonado, Ronaldo. Só que o garoto ficou riquíssimo com as esmolas e uma participação no programa da Xux…, ops, da vedete loura. É Ronaldo quem paga, dentro do bondinho do Pão de Açúcar, o resgate exigido por Hommer, numa cena hilária em que rola até uma Síndrome de Estocolmo. Hommer se apaixona pelos seqüestradores. E vice-versa. ?Quem diz não para essa carinha linda?, diz um bandido muito gente boa olhando uma foto do Simpson pai.

O Feitiço de Lisa pode ser considerado um retrato amável de uma cidade em que a Polícia Militar sai no braço com a Guarda Municipal e o prefeito, na falta do que fazer, arbitra que o Rei Momo agora será magro. Eu confesso que não conheço nenhum orfanato de solteironas lésbicas, como aparece no desenho, mas, sei lá, ultimamente tenho saído pouco de casa. É possível. Em nome dos cariocas, meu bom Matt e equipe, agradeço não terem ido mais fundo na nossa miséria. Isso aqui é uma esculhambação total, bicho solto para tudo que é lado, todo mundo dançando algum tipo de rumba pelas ruas e com o olho sempre esperto para não ser pego por um táxi pirata. Para enfrentar essas paradas, a galera investe nos tambores, que levam ao sexo e ao bom humor. Obrigado, principalmente, Matt, por ter acabado o filme de um jeito redondo, sem amargor. Ficou o melhor da nossa cara. O Bart é engolido por uma cobra amazônica. Mas lá de dentro ele grita para a família do lado de fora: ?Não fiquem tristes, é carnaval?. E põe-se a dançar rumba na barriga da jibóia. Você captou o espírito da coisa carioca, meu caro Matt. O bicho pegou. É traficante, bala perdida, desemprego, inflação, dispnéia e suores noturnos. A única coisa a fazer é dançar rumba na barriga da jibóia.”

 

MENINA VENENO

“Pouco veneno e muita mediocridade”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 14/12/02

“O homem comum, esse sujeito chatérrimo que anda em moda nos documentários, na publicidade e no telejornalismo, falando pelo cotovelo sensaborias sobre todos os assuntos, o homem comum encontrou sua versão fêmea no Menina Veneno, da MTV (quarta-feira, 22 horas). Nada contra. É Natal e, como fizeram muito bem a Simone e a Ana Maria Braga, vamos dar as mãos. Que se casem, que sejam felizes e criem os filhos gordinhos. Mas por favor desocupem minha televisão com suas opiniões pautadas pelo senso comum e os piores ginásios.

Gosto de Londres. Tem o speakers? corner aos domingos no Hyde Park. O tal sujeito comum, o John Smith lá deles, leva um caixote para aquele canto do parque, sobe em cima e abre o verbo contra a rainha, a favor do sexo com animais ou a necessidade urgente de se pôr menos óleo no fish and fries. No Brasil, o João da Silva está colocando o caixote dentro das nossas salas em dezenas de programas de televisão. Podia ser interessante se fosse feita uma seleção dos que têm a algo a dizer. Um deles, com méritos, acabou instalado na mesa de jacarandá do Palácio do Planalto. Os outros devem continuar passando óleo de peroba na mesa. Não é cruel. É a vida.

O predicado para estrelar um programa desses é apenas ter um passado anônimo. Os profissionais foram demitidos. Contratam-se amadores. Pagamento: 15 minutos de fama. O que sai da boca dessas pessoas, quase todas honestas, quase todas com os impostos e o desodorante em dia, é pura perda de tempo. Menina Veneno é exemplo disso. Fala-se de traição, ciúme, sexo e afins. A mesma pauta de antes, só que nos anos 80 o verbo era o que saía da boquinha ainda não botocada de Marta Suplicy. A inteligência, ao contrário do remédio, não é genérica. Quem quiser lembrar de Glauber Rocha em Terra em Transe fique à vontade. No filme, alguém passa a palavra ao representante do povão mas, logo em seguida, arrependido, tapa a boca do sujeito com a mão.

Não quero saber, por mais que isso me desacredite para um ministério PT ainda dando sopa, o que essa pessoa tão comum e patética como nós todos, ainda mais em um programa de 60 minutos de duração, acha da relação entre os sexos ou da possibilidade de vida em Marte. É tudo muito previsível. Repetem hoje o que eles viram um outro homem pateta ou outra menina veneno repetindo no programa da semana passada. Desse jeito o mundo gira, a Lusitana roda e a humanidade não sai do lugar.

Antes, o jovem decorava que a soma do quadrado dos catetos era igual ao quadrado da hipotenusa. Hoje ele decora um ar de muxoxo, um dar de ombros significando qual o problema?, quando alguém fala das possibilidades de sexo em três. Menina Veneno é assim. O pacto social chegou à abobrinha. São todos medianos em suas convicções revolucionárias já sopradas por alguém anteontem. Ninguém se choca com mais nada. Eu, já que não sou acometido de juventude faz tempo, quedo-me em estupor.

Encheram o estúdio com o homem comum e a menina veneno. Dessa vez não é para ele carregar o cabo da câmera, nem a ela cabe gritar pelos ídolos. São os novos heróis de todas as redes, nas gincanas, nos shows de realidade, nos noticiários. Procura-se um Lula desesperadamente para o horário nobre. São personagens que muitas vezes servem como exemplo de vida, de esforço pessoal pela sobrevivência e devem ser reverenciados com o salário certo no final do mês. Mas quanta platitude e desinteressência. Alguém quer saber mesmo que o ciumento namorado da Fernanda, uma das participantes do último Menina Veneno, proibiu-a de usar unhas vermelhas?

No próximo bloco, anuncia Marina, a apresentadora trintona do Menina, você saberá quando elas se anulam por um namorado. No bloco final, não perca, o que elas deixam de fazer por ciúme quando são trocadas por um jogo de futebol. Eis mais ou menos o que Karine nos disse quarta-feira sobre esses momentosos assuntos? ?Uma vez meu namorado ligou, assim, tipo dizendo se tava tudo bem, aí, e tudo, eu falei falô, só que, sei lá, quando ele desligou eu fui com a galera pra balada, entendeu? Gosto dele, sabe?, mas não quero perder, tipo assim, a balada.?

Esqueceram de dizer na MTV que não há mais veneno. A estação, com suas VJs balançantes, uma delas com um dragão que começa no cóccix e lhe toma as costas até o pescoço, ajudou a transformar tudo numa massa que só preza a alegria de estar na massa. Às novas vacas não é ministrado o orgulho de colocar os cornos acima da manada. O veneno colocado como aposto da menina serviria para antepô-la à menina comum. Não mais. Todas as meninas tatuaram-se, ou meteram-se em piercings, envenenadíssimas. Até as da nossa família, cada uma ao seu jeito, mas louquinhas. Veneno bom é aquele que o Cazuza pedia na veia – o da anti-monotonia. Mas quem tem a dose que nos livrará desse blablabá interminável do pensamento comum?

A imagem típica desse homem glorificado pela televisão politicamente correta é a do ator Pedro Cardoso.Trata-se daquele sujeito que aparece no meio da rua, meio desmiolado, com contas da luz e do gás pulando pelo bolso do paletó. A imagem típica da menina comum é a filha da Xuxa com Je Lo, amadrinhada pela Kelly Key. Depois de anos de repressão, o clichê feminino moderno é esse: botar fogo pelas ventas. No Menina Veneno todas ficam com dez meninos na balada e ouvem Eminem para relaxar. A elas nada impressiona e a tudo topam porque, sei lá, sabe como?, tipo assim e tal. Não percebem que veneno mesmo tem a Sandy, quando vai na contramão e se diz virgem. Pode até não ser. Mas, uma menina com pudor, isso sim é que é veneno.

A cada semana o Menina da MTV põe um tema em debate. Abre-se uma roda e jovens, apresentadas apenas pelo primeiro nome, dão sua opinião, quase sempre ao mesmo tempo, sobre a existência. É a televisão interativa em estado bruto. O pessoal da produção, cansado e sem idéia para buscar novos formadores de opinião, chama o pessoal de casa e pergunta: numa situação de impasse, tendo de escolher entre o namorado e a melhor amiga, com quem você ficaria? Gagueja-se muito. O papo, seja qual for o assunto, não descamba nunca para a inteligência. Semanas atrás era um grupo de garotas que já tinha participado de caleidoscópios sexuais com mais de dois personagens em cena. Acreditem: o programa foi chato.

A menina veneno aprendeu antes da universidade todas as posições do Kama Sutra. Mas não sabe na conversa se põe o advérbio no meio das vírgulas ou deixa o bicho brincar soltão ali entre o verbo e sujeito. O sexo rola louco na cama. O papo do homem comum com a menina veneno na televisão é que não sai nunca do papai e mamãe.”