Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Eugênio Bucci

EUA EM GUERRA

"A CNN e o imaterialismo histórico", copyright Jornal do Brasil, 4/10/01

"Vejo na internet a foto de um homem beijando um pôster de Bin Laden, num ato público que acontecia no Paquistão. Sites, jornais e revistas trazem suas ofertas de centenas de fotografias da nova guerra que se arma. Estou cercado. Não posso ver mais nada além disso. Não existe nada além disso. As explosões do World Trade Center não cessam, os escombros, os bombeiros perdidos, aquela gente que escorre pelas fronteiras do Afeganistão, as pupilas xiitas que fitam a câmera por uma fresta no tecido puído. Os estilhaços do terror são fotos digitais em forma de chuva ácida. Na tela do computador, no papel e, sobretudo, ainda e sempre, na televisão. A História acontece por imagens – e seu palco é a CNN.

Eu me lembro de cada capítulo dessa História. Um chinesinho magro vai pra lá e vem pra cá, no meio da grande avenida, impedindo o tanque de guerra de seguir seu percurso. Parece que dança uma catira matogrossense em câmera lenta com o blindado. O flagrante estilizado do indivíduo contra a máquina do Estado militarizado (um êxtase da imagética neoliberal) foi o que ficou da revolta da praça da Paz Celestial. E do muro de Berlim desautorizado, caído, o que ficou foram as bandeiras tremulando no meio da noite, entre garrafas de champagne e sorrisos juvenis. Riscos verdes de mísseis no céu das arábias sintetizam até hoje a guerra Irã-Iraque. As telas de videogames que os caças americanos carregam no painel são o signo da Guerra do Golfo. Profusão das imagens. Os mutilados da Bósnia. Os bebês esquálidos da Etiópia. A miséria humana acontece como visualidade e joga chumbo dentro dos olhos da gente. Sinto sono. As cenas de horror me atordoam como cantigas de ninar.

A imagem não &eacueacute; apenas o critério da notícia: é agora o critério da História. O suporte do documento histórico já não é físico: é meramente digital – e emocionante, feito mensagem publicitária. A História não acabou, apenas foi engolida pela campanha da Benetton. Camisas ensangüentadas – cuecas para vender. A imagem eletrônica elevada à condição de documento histórico não tem original nem tem idade. Não pode ter sua autenticidade comprovada pelo carbono 14. O bit revoga o átomo (não bem nos termos que Nicholas Negroponte supunha) e inaugura o imaterialismo histórico. Imaterialismo histórico.

O bit pulveriza todos os campos do conhecimento. Os astrônomos estudam suas estrelas duplas e seus buracos negros operando programas de computador. Seus astros são inacessíveis aos telescópios antigos. Os mapeadores do genoma humano trabalham com programadores de softwares. Os historiadores se contentam em escrever legendas para as imagens. Para as reportagens da CNN. Num de seus anúncios autopromocionais, já faz quase dez anos, a CNN interpelava o telespectador: ?Onde é que você vai estar a próxima vez que a História acontecer?? Eu respondia mentalmente: ?Vou estar assistindo à televisão! Vou estar assistindo à televisão!?

Vou estar vendo o que vai estar passando na CNN. Eu vou estar gerúndio enquanto a TV vai estar estando gerundiando. Os curiosos se perguntam de onde vem essa mania de falar tudo no gerúndio: vou estar chegando, avisando, pagando, eles vão estar bombardeando. Ora, o gerúndio é o estar anglicizando e americanizando o nosso estar falando mas, acima disso, é o estar updatizando a percepção de tempo histórico. O gerúndio é o nosso tempo histórico assim como a ubiqüidade é o nosso espaço histórico. Aqui-agora. O tempo retido em permanência – o World Trade Center não para mais de estar desabando enquanto Bush não para mais de estar preparando o contra-ataque. A CNN vai estar sendo, agora e doravante, o habitáculo do imaterialismo histórico. Vai estar sendo o nó central do espaço público mundial. As coisas não acontecem em Pequim, Berlim ou Nuporanga, mas estão acontecendo na tela da CNN.

As fronteiras nacionais estão sendo pisoteadas pela voracidade do novo espaço transnacional, cujo centro é a CNN (interlocutora preferencial dos comandantes americanos). As antigas fronteiras nacionais lembram as ruínas de Cabul sob os pés descalços dos garotos afegãos. A constituição de uma opinião pública mundializada, mediada por figuras e não mais por palavras, uma opinião pública cibernética e analfabeta atropela os chefes dos Estados periféricos. FHC é atropelado pelo Afeganistão online. O tempo real, como o chamam, é de fato o tempo irreal, é a ilusão de que estamos todos (e cada um de nós) em todos os lugares ao mesmo tempo. Juntos. A CNN instaura o vínculo direto entre a cúpula do império americano e a massa global, entre Bush e o Zé ninguém da selva boliviana. É o bonapartismo internacionalista ou o internacionalismo bonapartista. É a explosão dos Estados nacionais de cima para baixo, transe a que o povaréu assiste e se sente pertencente: olha para cima e vê os aviões de guerra (como já são até mesmo os de carreira).

A CNN desafia a todos continuamente: ?Onde é que você vai estar?? Eu estarei estando contemplando a sebastiãossalgadização do mundo. As faces cavadas dos migrantes esfomeados que depois vão se transformar num livro de luxo, desses que ficam em mesas de centro para distrair as visitas antes do jantar. Os olhos em alta definição da adolescente apátrida fazendo propaganda da Nikkon. Eu estarei dissolvido no imaterialismo histórico – ou a-histórico – a sentir sono, desejo e medo, no coro polifônico e babélico do tal Ocidente que se acredita o mundo inteiro. Estarei votando em Bush com meu silêncio telespectral. Estarei invadindo as plantações de papoula do Afeganistão. Em aliança com Saddam. Estarei ouvindo os correspondentes de guerra com seus coletes expedicionários cheios de bolsos. Eu os estarei ouvindo como ouvia as canções de Pink Floyd (a letra a gente sabe de cor mas não entende uma palavra). Pela CNN, os donos do mundo se vão articulando como num monstruoso reality show da notícia, da guerra e da política internacional – e eu estarei seguindo tudo, de olhos embatumados. A História imaterialista estará acontecendo para meu deleite – e para a perpetuação da minha impotência."

 

"?Mídia precisa recuperar objetividade?", copyright Folha de S. Paulo, 7/10/01

"Mesmo tendo chorado ao noticiar o assassinato de John Kennedy e quase perdido a fala ao narrar, com emoção, a chegada de Neil Armstrong à Lua, o veterano Walther Cronkite, que completa 85 anos em novembro, acha que ?já está mais do que na hora? de os jornalistas norte-americanos recuperarem sua objetividade na cobertura dos atentados terroristas do último dia 11.

Segundo ele, embora a emoção seja inevitável em alguns momentos, a fase atual exige frieza e independência. ?Os que se dizem patriotas devem entender que esse sentimento não implica necessariamente elogiar todas as decisões oficiais. Também pode ser expresso com divergência.?

Cronkite soube dos atentados do último dia 11 quando voltava ao hotel de uma palestra sobre objetividade jornalística que fizera em Florença, na Itália. Demorou seis dias para voltar a Nova York. Ele falou à Folha por telefone de seu escritório na cidade.

Folha – O sr. foi duramente criticado por se opor à maioria das propostas do pacote do governo dos EUA para conter o terrorismo. Pesquisas mostram um apoio maciço a medidas de segurança, mesmo que elas afetem liberdades civis…

Walther Cronkite – Todas as ações de órgãos governamentais, incluindo os policiais e os militares, são influenciadas por interesses localizados. Autoridades querem fortalecer seus instrumentos de poder específicos e, em tempos como esse, vêem uma boa oportunidade para agir. Faz parte da natureza humana. Autoridades divulgam apenas fatos e circunstâncias que beneficiam seus pleitos. Isso ocorre não só nos EUA como no resto do mundo. Numa democracia, temos que vigiar o poder de forma permanente.

Folha – Mas o sr. não concorda que o combate ao terrorismo requer instrumentos de investigação mais rígidos e modernos?

Cronkite – Reconheço que teremos que enfrentar restrições, como documentos de identificação obrigatórios e a checagem de bolsas e malas em prédios públicos e privados. No entanto, sugestões como a da prisão de imigrantes por tempo indeterminado, uma idéia que, felizmente, está sendo rejeitada pelo Congresso, é uma aberração típica desse momento.

Folha – Qual é a maneira mais democrática de instituir restrições?

Cronkite – Se o momento é extraordinário, precisamos lidar com o assunto de forma extraordinária. Seria fundamental que o pacote fosse submetido a um conselho externo, talvez formado por jornalistas, historiadores ou juizes da Suprema Corte.

Folha – Como o sr. avalia a cobertura dos atentados feita pelas TVs e pelos jornais?

Cronkite – Em geral, fizeram um bom trabalho, com uma abordagem ampla. Nos primeiros dias, houve uma chuva de indignação e de emoção manifestada por jornalistas. Todos expressaram simpatia com as vítimas e um desejo de unir os norte-americanos num período de crise. Houve um show aberto de patriotismo, compreensível no início. Eu mesmo não contive minha emoção ao relatar a morte do presidente Kennedy, em 1963. Felizmente, a imprensa está voltando agora ao seu papel tradicional e necessário de observadora imparcial.

Folha – O sr. acha que a cobertura internacional das TVs norte-americanas retrata de forma fidedigna o que ocorre fora dos EUA?

Cronkite – O problema não é o tipo de cobertura, mas a falta de cobertura. Nos últimos anos, as três grandes TVs abertas nos EUA -ABC, NBC e CBS- cortaram correspondentes e fecharam escritórios internacionais para economizar dinheiro. Fizeram isso com tal violência que, na minha opinião, o público não está obtendo informações suficientes sobre assuntos globais. A população neste país não consegue entender, de forma inteligente, os complexos problemas internacionais.

Folha – O sr. concorda com a afirmação de George W. Bush de que a guerra contra o terrorismo é uma guerra entre o bem e o mal?

Cronkite – É claro que os atos de 11 de setembro são maus. Todos concordam com isso, inclusive os países muçulmanos. No entanto, temo expressões que possam sugerir, mesmo que de forma distante, a existência de um conflito entre civilizações.

Folha – O Pentágono anunciou que vai fazer censura prévia de matérias e fotos enviadas por jornalistas autorizados a acompanhar tropas militares em operações. Além disso, vários editores começam a cogitar a implementação de uma autocensura para não comprometer segredos militares. Como a mídia deve agir nesse momento?

Cronkite – A maior referência para todos os jornalistas da minha geração é o famoso caso do ?New York Times? durante a invasão da Baia dos Porcos (1961), em Cuba. O jornal tinha informação prévia de que a operação ocorreria, mas, de forma relutante, decidiu não publicá-la devido a um pedido pessoal do presidente Kennedy. Mais tarde, o próprio presidente reconheceu que esse pedido ao jornal foi seu maior erro político. Se o Times tivesse publicado a informação, talvez o país pudesse ter evitado esse desastre embaraçoso. Na publicação de informações secretas e sensíveis, deve-se usar o bom senso. Mas o nosso bom senso, e não o do governo.

Folha – Como o sr. avalia o fato de Bush ser hoje o presidente mais popular da história dos EUA?

Cronkite – Esses índices resultam de circunstâncias extraordinárias. Vai começar a declinar, particularmente se entrarmos em operações militares e começarmos a perder pessoas. A oposição à guerra tende a crescer dentro do país. Além disso, o fervor patriótico vai começar a diminuir. As pessoas vão entender que o patriotismo é um sentimento dirigido ao país, não às ações do governo. Patriotismo não implica necessariamente aprovar todas as decisões oficiais. Ele também pode ser expresso com divergência."

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"Jornalista criticou Guerra do Vietnã", copyright Folha de S. Paulo, 7/10/01

"Nascido em 1916, o jornalista Walther Cronkite foi âncora, entre 1962 e 1981, do programa jornalístico mais influente dos EUA, o ?CBS Evening News?. Durante esse período, informou aos norte-americanos a morte de John e Robert Kennedy, narrou a chegada do homem à lua, o atoleiro dos EUA na Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate. Com um estilo quase sempre frio e sereno, desenvolveu uma relação de confiança rara com os telespectadores. Economizava opiniões e, justamente por isso, elas tinham um impacto especial quando eram manifestadas. Sua credibilidade era tanta que recebeu o apelido de ?homem mais confiável da América?, pelo qual é chamado até hoje. Em 1968, depois de Cronkite tê-lo criticado pela Guerra do Vietnã, o presidente Lindon Johnson teria dito: ?Se eu perdi Cronkite, perdi a classe média?. A frase nunca foi confirmada, mas é mais que plausível. Embora forçado a aposentar-se, Cronkite ainda influencia o debate em entrevistas e textos."

    
    
                     
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