Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Evento relevante e cobertura pífia

ECOS DO FÓRUM

Gustavo Barreto (*)

Se eu não fosse extremamente otimista não escolheria jornalismo como área de atuação. Mais: meu otimismo ultrapassa o limite do imaginário. Sou um utópico, na verdade, porque escolhi a faculdade de Jornalismo. Digo isso pois o quadro é péssimo. Em geral, as mentes que produzem textos jornalísticos ? tanto as mais antigas quanto os estudantes ? estão absolutamente dominadas pela ideologia hegemônica, centrada no lucro e no capital.

As resistências são poucas e admiráveis, mas é romântico dizer que elas conseguirão, no curto ou no médio prazo, construir mudanças no país. A sociedade civil está mudando, os líderes políticos são outros, mas o jornalismo ? aqui e lá ? continua medíocre. É verdade que houve alguns avanços, mas estes se perdem em meio ao mar (talvez tsunami seja mais apropriado) de atuações desprezíveis.

Para não dizerem que estou sendo pessimista, exemplifico com um importante evento, o Fórum Social Mundial, que aconteceu em Porto Alegre (RS) no final do mês de janeiro de 2003. Para mim uma peça-chave que serve de exemplo para as demais coberturas dos assuntos mundanos. É preciso lembrar: estamos falando da reunião mais importante do planeta em relação às questões sociais. São resistências que lutam pelos direitos das mulheres, dos negros, dos injustiçados, dos excluídos do circuito do capital. Em suma: lutam por tudo o que é causa humanista. Quem foi, viu.

Mais ainda: como salientou o lingüista e ativista americano Noam Chomsky, o "Fórum não deve ser um evento para os excluídos da sociedade, e sim para a sociedade". Costumo dizer que se todas as pessoas que estiveram presentes nas três edições do Fórum Social Mundial fossem eliminadas, o mundo provavelmente acabaria numa semana. Devemos muito a eles.

Entra, então, a mídia. Mais jornalistas do que na última Copa do Mundo ? 4.800, dizem. Um batalhão a serviço da população. Uma miscelânea de repórteres e editores de todos os cantos. E, no meio disso tudo, a imprensa brasileira. Estamos falando, obviamente, da imprensa de grande alcance. Aquela que vai influenciar a "opinião pública", essa entidade metafísica na qual faltam idéias e sobram sofismas.

"Ah, essa é a coletiva"

Na volta ao Rio, quando me deparei com os jornais dos dias do Fórum, horror. Os assuntos mais comentados foram três. A repercussão foi incrível. O leitor já sabe o primeiro: a torta na cara do Genoíno. Primeira capa de todos os grandes jornais. Foto em destaque e todos os detalhes sobre o caso, com nomes, versões, conseqüências, explicações. Um dossiê completo. No dia seguinte, destaque para a bomba. Medo e pânico em Porto Alegre. Um provável ataque terrorista do Eixo do Mal. No final, areia. A "bomba" era de areia. Isso não impediu o destaque no dia seguinte.

E, por fim, os "peladões". Um grupo de jovens decide protestar contra as regras do Acampamento da Juventude e sai às ruas. Sem roupas. O bastante para chamar a atenção de muitos espaços privilegiados nos veículos de comunicação. Vou sugerir ao Eduardo Galeano que vá sem camisa na próxima… Sem contar a imagem criada por alguns editores, de um Fórum mais para Woodstock do que para encontro sério com propostas e metas. Como se não fosse um pouco dos dois. E como se um pouco dos dois não fosse possível. São os conhecidos estigmas: político é sério, jovem é baderneiro etc.

Pode-se argumentar que muito se falou das conferências também. Contudo, é fácil notar que foram estes três acontecimentos, basicamente, que ficaram na memória da maioria. E não foi à toa. O destaque proposto na diagramação sempre influencia, gostem ou não. É preciso reconhecer que a nossa sociedade é da imagem, não do conteúdo.

De quem é a culpa? Não acho que seja dos jornalistas. As coberturas superficiais e pouco relevantes são uma conseqüência da mediocridade de alguns profissionais. Por definição, desprezíveis. Cobrir uma ameaça de bomba, como eu mesmo pude sentir, é muito mais fácil do que entender novas idéias na luta por um outro mundo. O novo não é tão receptível quanto o "já visto". E até os leitores aceitam melhor a torta: bateu o olho, entendeu.

Um repórter da Globo foi o mais engraçado. Ele comprovou, com todas as letras, a teoria de Pierre Bourdieu, que tantos contestam. Estava ele ? não o reconheci, porém o microfone não deixava dúvidas ? na coletiva de imprensa de Chomsky. Mais perdido que cego em tiroteio. Um olhar curioso em meio a jovens de corpo e alma ? jovens novos e jovens velhos ? interessadíssimos nas palavras do escritor. De repente ele percebe que aquilo era uma coletiva ? é um gênio, o rapaz. Nem pensou e disse: "Ah, essa é a coletiva, vamos embora!"

Muita paciência

O que fez a Globo comparecer ao Fórum foi a pressão da mídia. "Os jornalistas passam a maior parte do tempo lendo outros jornais. E, se alguém fala sobre assunto x, não é aceitável ficar para trás", diria Bourdieu. Basta ver a atenção dada às outras edições do evento, que contaram com um público menor, é verdade, mas com um número expressivo de personalidades mundiais. O descaso com a cobertura produz uma caricatura do que foi o Fórum que quase nada condiz com o que de fato ocorreu. O pior de tudo é que relatos e debates riquíssimos caem no esquecimento. São ignorados e a população fica sem saber por que o mundo não avança mais rápido. Muitos já morreram pela falta de um bom ouvido.

O problema maior é do sistema. Não sou contra ? deixo claro ? a publicação da torta, ou dos "peladões". O problema é o destaque. Além disso, o tempo que se perde cobrindo uma matéria inútil poderia ser mais bem aproveitado. Foi exatamente o que aconteceu no caso da pseudo-bomba no prédio da PUC.

Bourdieu fala, ainda, do "editor em evidência". Eu vou mais longe: muitos repórteres também estão em evidência. Pedi a um amigo que cobria o evento para a TV da minha universidade que me explicasse o porquê de tanto destaque a uma bomba de areia. Argumentei que o autor da brincadeira queria exatamente isso: atenção. Quando perguntei por que sequer cobrir qualquer coisa do acontecido ? exagerando de propósito ? a resposta foi, pelo que senti, a de sempre: "É evidente". Não cobrir tal fato é algo absolutamente inaceitável. Não passa pela cabeça da maioria dos produtores de informação.

Palmas, no entanto, para os editores do Ciranda da Informação <www.ciranda.net>, que fizeram pouco caso do ocorrido e gastaram o escasso tempo noticiando propostas por um mundo melhor. É preciso valorizá-los, e certamente não foram os únicos. Porém, ao que me parece, os que mais têm destaque na imprensa nacional em termos de público não pensam assim. É evidente.

"Quem não tem presença de espírito tem ausência de corpo", ouvi por aí. Aceito o desafio de corpo e alma, mas tenho a noção exata de que o caminho é longo e áspero. Resta-me chamar os problemas de "desafios" e ter paciência. Muita paciência.

(*) Editor do jornal Consciência.Net