Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Fabulações sobre a TV digital

TECNOLOGIA E CONHECIMENTO

Muniz Sodré (*)

Há um razoável consenso entre os especialistas europeus quanto às possibilidades democratizantes da televisão digital. A passagem da tecnologia analógica à digital, diz-se, tornaria possível estender a toda a população de um país o acesso à internet e, assim, além da mera distribuição cultural, ampliar o contato dos cidadãos com os serviços públicos. São afins a esta posição as declarações do ministro das Comunicações Miro Teixeira, repercutidas pela imprensa, no sentido de que a nova e promissora tecnologia poderá acabar com a "exclusão digital", já que promoveria o acesso à internet para todos os brasileiros, sem o custo de um serviço adicional.

Embora ainda não se tenham tomado todas as decisões técnicas necessárias à implementação desse sistema no Brasil, parece que já se faz urgente alguma reflexão sobre o assunto.

A primeira coisa a se observar é a circulação acrítica da expressão "exclusão digital" tanto nas falas de autoridades governamentais quanto nos discursos de imprensa. Acrítica ou ingênua, sim, porque, isolado enquanto proposição, o digitalismo apenas reforça o engano do determinismo tecnológico. Segundo este, a pura e simples manipulação da inovação tecnológica seria capaz de produzir um avanço num campo específico do conhecimento. É o mesmo engano que leva à crença de que "inclusão digital" é atulhar de computadores as escolas e os lares.

Uma outra versão desse modo de pensar concretizou-se no programa "educacional" do governo passado, lançado pelo Ministério da Educação em 1996, que consistia em distribuir às escolas fundamentais de todo o país um kit composto de aparelhos de televisão e videocassete, receptor de satélite, antena parabólica e uma caixa de fitas. Previam-se igualmente duas horas diárias de programação (vídeos e filmes educativos) dirigida à sala de aula e uma hora aos professores, com o acompanhamento de uma revista.

A maioria desses equipamentos terminaria tristemente empacotada nos fundos de prédios escolares, nos cafundós do interior (como pudemos encontrá-los certa vez num estado nordestino) sem qualquer perspectiva de uso. Alegres mesmo ficaram os atravessadores de toda essa tralha, secundados pelos ideólogos do produtivismo tecnicista, pautados pro projetos de organismos internacionais, como o Banco Mundial.

Velho estereótipo

Outro caso semelhante é o Programa Sociedade da Informação (Socinfo), lançado no final de 2000, com vistas à "utilização de tecnologias de informação e comunicação que permitam a inclusão social de todos os brasileiros na internet". As belas palavras geralmente referem-se a nada mais do que um simulacro cibernético, ou seja, a mera adequação de alguns a um cenário tecnológico.

O fato é que qualquer programa público com o propósito de "inclusão" tecnológica em matéria educacional não pode passar ao largo da redefinição de um certo número de condições imprescindíveis a uma verdadeira transformação cultural. Uma delas é a reestruturação dos currículos escolares, para torná-los compatíveis com as novas exigências de conhecimento trazidas pelas tecnologias emergentes. Outra, a adequação do professor a tais currículos e à ambiência tecnológica, o que implica investimentos sérios em formação e reciclagem. A verdadeira questão da inclusão social no âmbito das novas tecnologias passa pela escolarização responsável, isto é, pela revalorização do professor.

Sem isso, fica-se condenado a repetir, no plano da mutação digital por que passa a sociedade contemporânea, o velho estereótipo do "índio quer apito".

(*) Jornalista, escritor, professor-titular da UFRJ