Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Falta padrão à cobertura dos pequenos

EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ

Monitor de Mídia (*)

Os primeiros 10 dias de conflito no Iraque demonstram nas páginas dos jornais que as empresas de comunicação ainda não investiram suficientemente para ter um perfil em coberturas de fôlego como esta. Não há um padrão nítido do que é importante informar. Não há um entendimento pleno do real interesse do leitor local em consumir estas informações.

Com isso, os pequenos jornais ? como é o caso dos três diários mais lidos em Santa Catarina ? reproduzem um jornalismo que não tem a cara do seu leitorado, que se distancia da realidade regional e que pouco ou nada acrescenta do que mostra a TV e a internet. Assim, o jornalismo oferecido fica a reboque das agências internacionais, a apuração das informações torna-se praticamente impossível e o relato se mostra duro, tacanho. Correspondentes são espécimes raros, analistas não são convidados a escrever e a opinar sobre os movimentos no front e mesmo matérias com a repercussão local são deixadas de lado.

É evidente que não se pode exigir que os jornais daqui ? que juntos diariamente não somam 100 mil exemplares ? ofereçam uma cobertura como a dos grandes jornais. Entretanto, uma análise de onze edições (de 16 a 27/3) aponta para alguns deslizes que podem muito bem ser contornados com criatividade e nitidez de critérios de edição.

Cobertura abrangente, mas sem assinaturas

A Notícia passou a destinar mais espaço ao conflito a partir de 18/3, dois dias antes da invasão. O diário de Joinville dedica duas páginas em média por edição à cobertura, e a partir da sexta-feira, 21, modifica o layout das páginas da editoria Mundo, adotando selo especial para o assunto e calhas laterais, por onde escorrem pequenas notas informativas. A imensa maioria ? ou senão a totalidade ? dos textos vêm de agências de notícias, preferencialmente da Agence France Presse. A exceção ocorre em 23 de março, quando textos da Associated Press entram nas páginas do jornal catarinense.

De um modo geral, a cobertura oferecida pelo AN é abrangente, aprofundada e com uma nítida preocupação de trazer todos os principais fatos que circundam o confronto no Iraque. As fotos também vêm das agências noticiosas internacionais (AFP) e dão a carga dramática que ilustra o acontecimento. Entretanto, se as páginas de A Notícia são bem editadas, falta a elas personalidade, assinatura, originalidade. Isto é: todos os textos têm um perfil seco nas narrativas, diretos nos relatos e frios na descrição dos fatos. Não há textos assinados. Não há vestígios de repórteres. O jornal também não conta com correspondentes especiais, enviados para Bagdá e arredores. O leitor recebe as informações que se mostram quase protocolares, burocráticas, rígidas. Uma única exceção foi detectada em 24 de março ? "Vida continua, apesar das bombas em Bagdá" ?, texto que faz uma descrição menos objetivista da realidade iraquiana, mas que permanece sem assinatura do repórter. Neste caso em particular, valia a menção ao autor, já que se trata de uma visão de testemunho, de um relato particular daquele momento.

No mais, as matérias têm um tom majoritariamente declaratório, um problema do ponto de vista jornalístico, já que versão não é fato. Isso permite que cada edição abrigue um tiroteio de números errados, de previsões não verificáveis e de factóides.

Percebe-se, no entanto, uma certa descarga emotiva nas capas do jornal. Desde o ultimato de Bush ? no dia 18 ? as primeiras páginas trazem manchetes sobre a guerra e em letras garrafais, maiúsculas do começo ao fim. Fotos são abertas em cores, ocupando de quatro a seis colunas, preenchendo a primeira dobra do jornal de fora a fora. Nas 11 edições analisadas por este Monitor (de 17 a 27 de março), em nove foram estampadas fotos sobre o conflito.

Embora esteja equilibrada e cuidados, a cobertura de A Notícia cometeu duas mancadas na primeira semana de guerra: no dia 16, nas páginas B6 e B7, há matérias sobre os países vizinhos do Iraque que apontam os problemas já enfrentados, mas o leitor não encontra informações sobre as possíveis conseqüências da guerra para a região. Outro escorregão: no dia 21, o jornal publica dois textos com as mesmas informações: "UE afirma não ter consenso" (A16) e "Líderes da UE discutem crise, ?mas sem consenso?" (A18).

Só RBS marca posição nos editoriais

O cenário mundial desperta o pipocar das diferentes opiniões, e como já afirmava John Stuart Mill, "se toda a humanidade, com exceção de uma pessoa, tivesse uma dada opinião, apenas essa pessoa tivesse opinião contrária, a humanidade não teria mais razão em silenciá-la do que ela à humanidade". Neste contexto ao redor do mundo as posições anti-guerra expressam-se sob diferentes formas: antes do conflito começar no Iraque, The New York Times trouxe em editorial que não desejava a guerra; artistas como Tim Robbins e Barbara Streisand, Sheryl Crow, Lou Reed, Martin Sheen e Susan Sarandon se manifestaram contra o conflito ? sofrendo represálias, inclusive ? e a MTV norte-americana chegou a recusar comerciais sobre a guerra. Por aqui, a MTV brasileira destoou e se colocou declaradamente contrária à intervenção norte-americana, proclamando isso em diversos programas da sua grade.

Independente da natureza deste acontecimento, o expressar de opiniões pelos jornais ocorre principalmente através dos editoriais, que manifestam as posições políticas das empresas jornalísticas. No contexto catarinense, o Jornal de Santa Catarina e o Diário Catarinense assumiram seu repúdio à guerra, como pode ser percebido no editorial de 16/03 ("Uma nova ordem mundial"): "Homens e mulheres de boa vontade, que representam a parcela mais expressiva da Humanidade, não podem e nem devem conformar-se com a opção pela barbárie, quando ainda não se esgotaram todas as alternativas civilizadas". Esta postura, tomada desde o período que antecede a guerra, permanece ao longo dos dias seguintes. Um exemplo é o editorial de 19/03 ("A primeira baixa"): "Confirma-se mais uma vez, que a civilização ainda não atingiu um estágio em que prevalecem os interesses gerais e a racionalidade" (…) "a comunidade humana olha, impotente e desarmada a concretização de seus piores temores".

Enquanto os jornais do Grupo RBS deixam transparecer suas posições, o concorrente A Notícia permaneceu de certa forma indiferente ao assunto, destinando o espaço opinativo a outros assuntos. No período de 16 a 25 de março, percebeu-se que em apenas uma ocasião o jornal marcou posição, tratando do assunto: "A barbárie da guerra", de 21 de março. O tom é resignado e nada comprometedor: "Já que houve falha na luta pela paz, que pelo menos a guerra se encerre rápido e com o menor número possível de vítimas. É a esperança que resta ao mundo". Mais parece que AN não quer se envolver tanto com o conflito, que este é distante da realidade local e que os 10 mil quilômetros que nos separam dos bombardeios nada acrescentam aos nossos dias.

Um diferencial importante

A imprensa catarinense, a exemplo de outras fora do eixo Rio-São Paulo, ainda padece de uma certa falta de personalidade na cobertura de fatos internacionais. Geralmente, os acontecimentos são tratados de forma muito distanciada com pouca ou nenhuma correlação local. O contexto se dilui, antecedentes não são mencionados e o leitor se perde num emaranhado de dados que pouco lhe afetam diretamente.

Tentando contrariar uma tendência como essa, o Diário Catarinense vem tentando imprimir uma marca nas páginas que dedica à invasão ao Iraque. Contando com um correspondente internacional ? Oziris Marins ?, o jornal corre atrás dos fatos, mesmo estando bem longe de Bagdá. O repórter está em Amã, capital da Jordânia, e ainda não conseguiu chegar ao olho dos bombardeios. Mesmo assim ? e tendo que produzir reportagens para os veículos de rádio, TV, internet e impressos do Grupo RBS ? o jornalista envia notícias diariamente desde 16 de março. No início, seus relatos eram bem vagos, mas depois, a densidade do trabalho foi crescendo, chegando, inclusive, a entrevistar o ministro de Relações Exteriores da Jordânia, vizinha ao conflito.

As dificuldades, percebe-se, são muitas: encontrar quem possa falar sobre os ataques, comparar versões, descartar informes parciais. Tudo em tempo hábil, com um fuso seis horas adiantado, poucos recursos ? afinal, manter um correspondente a 10 mil km de distância não é nada barato ? e muito trabalho.

O DC vem dando cinco páginas em média por edição, começando na página 4 e se estendendo pelo início do jornal. A guerra alterou a rotina da redação, alargou alguns fechamentos, empurrou algumas editorias ao longo do jornal. Um padrão gráfico foi criado para a cobertura e adotado a partir do dia 19. Sob a expressão "Conflito no Golfo", o selo traz foto de Saddam Hussein ao lado de uma mira e frases, de todos os lados, desde Bush, Hussein, soldados etc.

Ainda no esforço de dar a guerra com um olhar brasileiro, o DC conta com o jornalista Marcelo Rech (da Agência RBS), que produz textos mais interpretativos, análises do conflito. Com a experiência de quem cobriu a Guerra do Golfo em 1991, Rech faz correlações com o passado, oscilando entre a crítica ("Beirando a demência política, George Bush já demonstrou que não está preocupado com relações públicas") e a análise das estratégias ("…os arquitetos da propaganda do Pentágono ansiavam desesperadamente pelas cenas de civis iraquianos confraternizando com tropas norte-americanos", o que não aconteceu). Os quatro artigos veiculados de 16 a 27 de março são: "Contos da carochinha no Iraque" (dia 19), "Cirurgia com martelo" (21), "A batalha dos desertores" (22), "O inimigo fogo amigo" (26). A presença dele e do correspondente dão à cobertura do DC um diferencial importante, fundamental para quem quer acompanhar a guerra com profundidade e sensibilidade de quem está perto do fogo cerrado. Diferente da frieza encontrada no competente concorrente A Notícia.

Mentiras de guerra

1? de abril é o Dia da Mentira. Para celebrar a data, nada melhor do que rever as primeiras mentiras desta segunda Guerra do Golfo. A primeira foi a cena que antecedeu o pronunciamento do presidente George W. Bush na noite da deflagração do ataque: penteado diante da câmera, deixava um risinho escorrer do canto da boca, quando falava com assessores. Quando terminou de ensaiar o discurso, a luzinha da câmera acendeu e Bush trancou a cara, fazendo um ar grave. Silêncio no estúdio, a guerra estava começando.

Outras mentiras: os jornais deram que o vice de Saddam estaria morto, os oficiais previram que os bombardeios não durariam cinco semanas, a imagem de Saddam na TV podia ser um sósia, pilotos americanos caíram no rio Tigre, cidadãos iraquianos teriam se rebelado contra o próprio exército em Basra, soldados haviam encontrado uma fábrica de armas químicas. Os desmentidos se deram nos dias seguintes: Saddam e sua cúpula ainda estão vivos, iraquianos ainda não lincharam seus inimigos e a justificativa para a invasão ainda não apareceu.

(*) Projeto de acompanhamento sistemático dos jornais catarinenses. A iniciativa é de alunos e professores do curso de Comunicação Social ? Jornalismo da Univali (SC). No ar desde 2001, o projeto tem coordenação do professor Rogério Christofoletti.