Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

"Faz tempo que deixei de ler jornais"

MÍDIA & CREDIBILIDADE

Alberto Dines

Não é a primeira vez que um intelectual deste porte e desta seriedade faz tão devastadora avaliação da imprensa. O poeta José Paulo Paes, pouco antes de morrer, disse exatamente a mesma coisa. Mas o educador, psicanalista e escritor Rubem Alves vez ou outra escreve sobre a mídia. Observador rigoroso, certamente acredita que faz sentido criticar ? ajuda a mudar, reparar, construir.

Seu artigo na Folha (domingo, 2/9, pág. 3, veja Aspas abaixo), embora sereno e irônico, não dá esperanças, não tem jeito ? o jornalismo impresso no Brasil está tornando o país mais estúpido. O professor concentra a sua atenção (tanto no título como no texto) nos jornais diários, mas o mote foi providenciado pela entrevista da "comunicadora" Adriane Galisteu nas Páginas Amarelas de Veja e por um artigo de Arnaldo Jabor. Jornais e revistas completam-se e se igualam: a qualidade de um segmento força a qualidade do outro.

O antológico texto certamente ficou um bom tempo na gaveta do editor de opinião, aguardando sua vez. Mas não perdeu a atualidade. Ao contrário, com a recente pesquisa sobre a credibilidade dos jornais e os recentíssimos episódios circenses protagonizados pelos Abravanel, a pergunta do articulista ganha tamanha força que converte-se em resposta. Afirmação. Sim, a leitura dos jornais e revistas está tornando a sociedade brasileira mais estúpida.

 

ASPAS

?A leitura dos jornais nos torna estúpidos??, copyright Folha de S.Paulo, 2/9/01

"O nome não me era estranho. Eu já o vira de relance em algum jornal ou revista. Mas não me interessei. Aquele nome, para mim, não passava de um bolso vazio. Eu não tinha a menor idéia do que havia dentro dele. Sou seletivo em minhas leituras. Leio gastronomicamente. Diante de jornais e revistas eu me comporto da mesma forma como diante de uma mesa de bufê: provo, rejeito muito, escolho poucas coisas. Concordo com Zaratustra: ?Mastigar e digerir tudo, essa é uma maneira suína.?

Aquele bolso devia estar cheio de coisas dignas de serem comidas, caso contrário não teria sido oferecido como banquete nas páginas amarelas de ?Veja?. Mas eu não comi. Aí um amigo me enviou por e-mail cópia de uma crônica do Arnaldo Jabor, a propósito do dito nome. Crônica que li e de que gostei: sou amante de pimentas e jilós.

Senti-me parecido com o Mr. Gardner, do filme ?Muito Além do Jardim?, com Peter Sellers. Mr. Gardner jamais lia jornais e revistas. Fui então até minha secretária e lhe perguntei, envergonhado, temeroso de que ela tivesse visto o dito filme e me identificasse com o Mr. Gardner. ?Natália, quem é Adriane Galisteu?? Esse era o nome do bolso vazio. Ela deu uma risadinha e me explicou.

À medida em que ela explicava, as coisas que eu havia lido começavam a fazer sentido e eu me lembrei de uma história que minha mãe contava: uma princesinha linda que, quando falava, de sua boca saltavam rãs, sapos, minhocas, cobras e lagartos… Terminada a explicação, fiquei feliz por não ter lido. Lembrei-me de Schopenhauer: ?No que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante. Essa arte consiste em nem sequer folhear o que ocupa o grande público. Para ler o bom, uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta e o tempo e a energia escassos… Muitos eruditos leram até ficar estúpidos.? Existirá possibilidade de que a leitura dos jornais nos torne estúpidos?

O que está em jogo não é a dita senhora, que pode pensar o que lhe for possível pensar. O que está em jogo é o papel da imprensa. Qual a filosofia que a move ao selecionar comida como essa para ser servida ao povo?

A resposta é a tradicional: ?A missão da imprensa é informar.? Pensa-se que, ao informar, a imprensa educa. Falso. Há milhares de coisas acontecendo e seria impossível informar tudo. É preciso escolher. As escolhas que a imprensa faz revelam o que ela pensa do gosto gastronômico dos seus leitores. Jornais são refeições, bufês de notícias selecionadas segundo um gosto preciso. Se o filósofo alemão Ludwig Feuerbach estava certo ao afirmar que ?somos o que comemos?, será forçoso concluir que, ao servir refeições de notícias ao povo, os jornais realizam uma magia perversa com seus leitores: depois de comer eles serão iguais àquilo que leram.

Faz tempo que parei de ler jornais. Leio, sim, movido pelo espírito apressado da leitura dinâmica; apressadamente, deslizando meus olhos pelas manchetes para saber não o que está acontecendo, mas para ficar a par do menu de conversas estabelecido pelos jornais. Muita coisa importante e deliciosa acontece sem virar notícia, por não combinar com o gosto gastronômico dos leitores. Se não fizer isso, ficarei excluído das rodas de conversa, por falta de informações. Parei de ler os jornais não por não gostar de ler, mas precisamente porque gosto de ler.

As notícias dos jornais são incompatíveis com meus hábitos gastronômicos: leio bovinamente, vagarosamente, como quem pasta… ruminando. O prazer da leitura, para mim, está não naquilo que leio, mas naquilo que faço com aquilo que leio. Ler, só ler, é parar de pensar. É pensar os pensamentos de outros. E quem fica o tempo todo pensando o pensamento de outros acaba desaprendendo a pensar seus próprios pensamentos: outra lição de Schopenhauer.

Pensar não é ter as informações. Pensar é o que se faz com as informações. É dançar com o pensamento, apoiando os pés no texto lido: é isso que me dá prazer. Suspeito que a leitura meticulosa e detalhada das informações tenha, frequentemente, a função psicológica de tornar desnecessário o pensamento. Quem não sabe dançar corre sempre o perigo de escorregar e cair… Assim, ao se entupir de notícias como o comilão grosseiro que se entope de comida, o leitor se livra do trabalho de pensar.

A maioria das notícias dos jornais, eu não sei o que fazer com elas por não entendê-las. Penso: se eu não entendo a notícia que leio, o que acontecerá com o ?povão?? Outras notícias só fazem explicitar o que já se sabe. Detalhes, cada vez mais minuciosos, das tramóias políticas e econômicas de um Maluf, de um Jader, nada acrescentam ao já sabido. Esse gosto pelo detalhe escabroso deriva da pornografia, que extrai os seus prazeres da contemplação dos detalhes sórdidos, que são sempre os mesmos.

A dita reportagem sobre a tal senhora e as notícias sobre Jader e Maluf atendem às mesmas preferências gastronômicas. Será que as notícias são selecionadas para dar prazer aos gostos suínos da alma? E os suplementos culturais? Deveriam se chamar suplementos para os eruditos. É preciso ter doutorado para os entender. Não é comida para pessoas comuns. Pessoas do povão nem mesmo os abrem.

Ao final de sua crônica, o Arnaldo Jabor dá um grito: ?Os órgãos de imprensa devem ter um papel transformador na sociedade…? De acordo. Dizendo do meu jeito: os órgãos de imprensa têm de contribuir para a educação do povo. Mas educar não é informar. Educar é ensinar a pensar. Os jornais ensinam a pensar? Repito a pergunta: Será que a leitura dos jornais nos torna estúpidos?


[Rubem Alves, 67, educador, psicanalista e escritor, é professor emérito da Unicamp e autor de, entre outros, ?A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir? (Papirus). <www.rubemalves.com.br>]

    
    
                     

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