Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Feira do Livro e cobertura autocentrada

RBS NA BERLINDA

Ulisses Nenê (*)

Há cerca de 20 anos, quando ainda cursava Jornalismo na PUC, em Porto Alegre, fiz um trabalho de redação que mereceu nota 10 a respeito da Feira do Livro. Ao circular pelas barracas e filas de autógrafos, entrevistei o jovem autor e também estudante de Jornalismo Milton Rauber, promissor poeta que lançava sua primeira obra e que acabou sendo o centro da minha matéria. Ele denunciou uma faceta que eu ainda não havia percebido na feira. Disse ele, em resumo, que se trata de um evento de cartas marcadas, onde de antemão já se sabe quais serão os livros e os autores mais vendidos, devido à promoção da mídia e ao trabalho de marketing em torno de algumas figurinhas carimbadas do mercado editorial, tornando assim ainda muito mais difícil a luta por um lugar ao sol de quem começa na literatura.

Esta lembrança me vem à memória a cada ano, reforçada pela divulgação que a RBS faz da feira. Este ano, por exemplo, analisando a cobertura da Zero Hora em sua primeira semana e comparando com os anos anteriores, chego logo a três conclusões:

1) A cobertura não mudou em nada, a ênfase continua sendo em figuras já muito conhecidas;

2) A maioria trabalha na própria RBS;

3) O pessoal da academia de Estocolmo deve estar comendo mosca, pois temos na esquina da Ipiranga com a Erico Verissimo, sede da RBS, um fenômeno de produção e qualidade literária sem parâmetros no mundo, a julgar pelo volume de publicações de colaboradores da RBS ? e adjacentes ?, destacados com generosos espaços nas quatro páginas diárias dedicadas pelo jornal à feira. Como ainda não veio um Nobel de Literatura para cá?

Senão, vejamos: logo no primeiro dia do encarte Feira do Livro, na ZH de 2 de novembro, sábado, ganha uma coluna de alto abaixo na página de David Coimbra ? o cronista da feira ? o colunista e editorialista de Zero Hora Liberato Vieira da Cunha. Com direito a foto, muito confete e, claro, a indicação aos leitores de seu último livro, o Tratado das Tentações. Difícil algum leitor em dúvida nas compras resistir à tentação de adquirir o livro após a convincente apresentação de David. Bem, no domingo, dia 3, o que temos? Na capa de Zero Hora, com chamada em destaque, e na capa do caderno Donna, com foto de página inteira, ela, a cronista preferida de nove em cada 10 patricinhas e socialites, a rainha dos institutos de beleza e academias de ginástica, fala de seu novo romance ? romance livro, bem-entendido. Se não adivinhou ainda quem é, você não existe! Pois, não bastasse ter sua própria coluna em Zero Hora, o que por si só já promove mais que qualquer campanha de marketing, Martha Medeiros ainda recebe a generosidade das duas páginas centrais do caderno para falar de sua vida e do livro. Claro, é pura coincidência que a entrevista, ilustrada por fotos familiares, aconteça exatamente no período da feira.

O apresentador da RBS TV Sérgio Stock, por sua vez, ganhou a contracapa inteira do caderno TV+Show, para divulgar o lançamento do seu livro de dicas para falar em público, Fale sem medo, com direito a foto de quase meia página.

Na segunda-feira foi a vez de Túlio Milman, jornalista e apresentador da RBS TV e TV Com, e de Heitor Kramer, poderoso diretor de relações com o mercado da RBS, brindarem os leitores com seu saber. No alto da página central do encarte, com foto e o selo destacando "Autógrafos hoje, às 19h", o jornal noticia que os dois estão lançando Vença com a mídia. ZH explica: "O livro surgiu quando Tulio percebeu que as pessoas desperdiçavam oportunidades para comunicar suas idéias. Na obra, mostra que qualquer pessoa pode tirar proveito da mídia." Disto os dois sabem muito bem, não há dúvida. Ao lado do comentário, em duas colunas, 52 autores dividem espremidos o espaço que anuncia as demais seções de autógrafos do dia.

Terça-feira, na mesma posição onde estavam no dia anterior Tulio e Kramer, ela ? de novo! de novo! ?, Martha Medeiros, foto jovial e sorridente, anunciando seu primeiro romance, aquele mesmo apresentado na edição de domingo, para dar, digamos assim, uma "forcinha" na sessão de autógrafos da nossa autora. Ah, e do lado, a seção Hoje na Praça, com reprodução das capas dos livros, anuncia mais dois produtos saídos da mesma fonte inesgotável de talentos da Ipiranga com Erico Veríssimo:

RBS: Da voz-do-poste à multimídia, onde o jornalista Lauro Schirmer, de longa carreira na empresa, "recupera a história da maior rede de comunicação do Sul do país", diz o resumo. E também, olha aí de novo, o Tratado das tentações, do Liberato.

Pouca gente interessante

Atenção que não estou relatando a badalação toda, desde dias antes do início da feira, nas emissoras de rádio e TV da RBS em torno destes autores. Vai aí, mais até do que no jornal, um formidável empurrão nas vendas de qualquer obra citada num destes veículos ? Gaúcha, RBS TV, TV Com ? pelo seu formidável alcance.

Dia seguinte, quarta-feira, na mesma seção, que parece ter sido privatizada pelo pessoal da empresa, está lá "o cozinheiro mais popular da TV gaúcha e best-seller no ano passado", o tal de Anonymus Gourmet, premiado com as mesmas duas colunas, foto, e a orientação em selo do horário de lançamento de sua nova e saborosa obra Comer bem, sem culpa, em co-autoria com o médico Fernando Lucchese, amigo da casa, e o chargista Iotti. Convenientemente, o próprio Anonymus recomenda: "É muito bom ver na TV como se faz. Mas a técnica se aprende com o livro."

Completando o espaço abaixo na página, surge a lista dos mais vendidos até aquele dia. Ganha uma receita de doce do citado aí acima quem adivinhar quem lidera a lista: claro, Martha Medeiros. E em segundo? Claro, o Anonymus.

Bem, na quinta-feira as coisas mudaram, porque assim também já era demais. Chega de página interna, vamos ocupar logo a capa. Pois é, na capa do caderno Feira do Livro está o trio capitaneado pelo simpático, carismático Anonymus Gourmet, em foto de três colunas, na qual cada um, num rasgo de criatividade do jornal, entrevista o seu colega autor.

Tlim tlim, faz a caixa registradora da L&PM, editora do livro, sem culpa.

Eis que chega a sexta-feira, véspera do fim-de-semana, quando todos os leitores e pretendentes a leitores de Porto Alegre ? e arredores ? desafiam as leis da física e conseguem ocupar, ao mesmo tempo, o exíguo espaço da feira, na Praça da Alfândega. Não pense que só por isso o pessoal da RBS ia repetir a dose, que eles não são disso. Não mesmo. Em vez de ocuparem a página 3, agora eles ocupam a página 2. Lá está, como entrevistado do dia, faceirão na foto de uma coluna, o cronista da feira, David Coimbra, agora divulgando seu próprio livro Crônica da selvageria Ocidental que, coincidência, autografa naquele dia.

"Vicejam pelo livro maridos infiéis, devoradoras de homens, zagueiros subornáveis e centroavantes impiedosos", propagandeia Ticiano Osório, numa resenha rapidinha. Na contracapa, em sua página, David dá mais uma forcinha a Martha Medeiros, afinal, ela precisa. E tem tão pouca gente interessante na feira, não é mesmo?

Denúncia de Halimi

E, vejam só, logo abaixo da entrevista do David, completando a página, o que vem agora? Vocês não vão acreditar: ele, o Anonymus Gourmet, de novo. E ele quer ser anônimo! Caso não tenham notado, ele e Martha Medeiros ganharam espaço três dias, somente na primeira semana: antes da sessão de autógrafos, no dia e depois. Dr. Luchese, avisa a eles que assim dá indigestão, pô! Num efeito sinérgico que turbina as vendas, o serviço de alto-falantes ainda divulga regularmente os mais vendidos na feira. Rádios e TVs, idem.

E assim multiplicam-se os cifrões destes fabulosos autores. Para vocês terem uma idéia, durante a campanha eleitoral, um quadradinho de nada num canto inferior de página da Zero ou do Correio saía por algo em torno de R$ 5 mil. Imaginem o que eles estão ganhando em publicidade gratuita com toda esta divulgação.

Sábado e domingo não li Zero Hora, mas acho que os exemplos já são suficientes. Para quem quiser comprovar que não se trata de implicância minha, mas de assunto muito sério, recomendo o livro Os novos cães de guarda, de Serge Halimi, Editora Vozes, no qual ele disseca as mazelas da grande mídia francesa, especialmente os desvios de conduta dos tais "formadores de opinião" ou "comunicadores" ? como nós conhecemos muito bem aqui. São incríveis as semelhanças com nossa situação ? e um tanto desanimadoras, pois mostram que mesmo na França este é um problema difícil de enfrentar. Bem, um dos capítulos fala exatamente da autopromoção como uma das práticas mais comuns de uma turma de comunicadores cujas prioridades são sustentar o pensamento único neoliberal e trocar favores entre si, promovendo seus próprios livros, enaltecendo seu próprio trabalho, protegendo-se mutuamente em seus empregos etc. etc.

Na descrição de Serge Halimi, o jornalista fulano recomenda o livro do colega sicrano, que elogia a obra do beltrano, e este rasga elogios ao que escreveu o fulano, fechando o círculo. Isto é considerado tão grave em certos jornais americanos que uma medida drástica foi tomada: "Nos Estados Unidos, alguns jornais cotidianos ?proíbem formalmente? ao chefe de redação confiar a crítica de um livro a quem conheça o autor, ou a quem tenha escrito uma obra cuja resenha tenha sito feita pelo autor, ou a quem ?mantenha vínculos estreitos com uma pessoa citada, várias vezes, no livro em questão?"?, cita o autor. Ele ainda denuncia:

"Quarenta mediocratas (no máximo) detêm o poder de vida ou de morte sobre quarenta mil autores (…). Em relação ao trabalho de todos esses profissionais, eles constituem o crivo obrigatório que separa o acontecimento do não-acontecimento, o ser do nada, o útil do absurdo."

Torcida pelo equilíbrio

É sempre útil lembrar o nosso Código de Ética do Jornalista Profissional, que condena a utilização da função de jornalista para usufruir benefício próprio, como diz o artigo 13?: "O jornalista deve evitar divulgação de fatos com interesse de favorecimento pessoal ou vantagens econômicas."

Por fim, uma historinha: um certo aprendiz de comunicador do grupo RBS lançou um livro na feira, anos atrás, mas seu nome não aparecia entre os mais vendidos. Inconformado, "denunciou" o caso numa entrevista irada a seu guru na Rádio Gaúcha, insinuando que estaria havendo boicote dos organizadores contra ele. Vejam a que ponto chegamos.

Não há de minha parte qualquer desapreço pessoal ou sequer qualquer julgamento quanto aos méritos dos autores e das obras aqui citadas, o que está em discussão, no caso, é uma questão ética a ser enfrentada, pois há na cobertura da feira a maciça indução dos leitores à compra de determinadas obras, que não são necessariamente as melhores, e uma flagrante injustiça com aqueles autores e autoras que não dispõem de espaço idêntico na disputa pela preferência e pelos reais dos freqüentadores da Feira do Livro.

Na verdade, o problema não é apenas da RBS, que é citada aqui por ser o caso mais evidente no momento e por ser a Zero Hora o maior jornal do RS. Isto é muito comum na mídia brasileira ? assim como no citado caso da França ?, na qual certos grupos de jornalistas e críticos determinam sem muita transparência o que a maioria deve ler, ouvir ou assistir, muitas vezes em benefício próprio ou de seu círculo de amizades. Na Feira do Livro, porém, isto se exacerbou, a um ponto que se tornou insuportável.

Mas ainda resta uma semana, esperemos que a cobertura seja mais equilibrada nestes dias. E também nas próximas feiras, se não for pedir muito.

(*) Jornalista