Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Feliz aniversário, apesar de tudo

LENI RIEFENSTAHL, 100 ANOS

Antônio Brasil (*)

A maravilhosa e ao mesmo tempo horrível vida de Leni Riefenstahl, a cineasta favorita de Hitler, completou um século na quinta-feira (22/8). Nem todos comemoram. Muitos ainda se envergonham do seu envolvimento com o nazismo. Mas todos aqueles que admiram o cinema e, em particular, os filmes documentários, jamais conseguiriam ignorar a importância da sua obra. Sua técnica e estética cinematográficas foram revolucionárias nos anos 30 e ainda são referências para a cobertura de grandes eventos para o cinema e até mesmo para a televisão.

Ainda muito jovem e quase inexperiente, a bela Leni Riefenstahl teria seduzido o líder nazista alemão Adolf Hitler e com isso obtido "carta branca" para produzir seus filmes. Ela nega. Foi, entretanto, responsável por produções épicas que ainda incomodam muita gente. Elas retratam de forma reverenciada as grandes reuniões do Partido Nazista em Nuremberg, em 1933, e as Olimpíadas de Berlim, em 1936. Leni teve acesso a recursos quase ilimitados, além da tecnologia de ponta da época e uma equipe que incluía alguns do melhores cinegrafistas do mundo. Todos sob o comando de uma jovem e bela mulher que alguns anos antes deslumbrava os alemães como dançarina e atriz de filmes mudos. A sua genialidade, juventude e, principalmente, "inexperiência" se transformariam numa verdadeira revolução de imagens. A partir dos seus documentários, tanto o cinema como o mundo jamais seriam os mesmos.

Assim como outro jovem, ousado e polêmico cineasta da mesma época, Orson Welles, que produziu Cidadão Kane, Leni estabeleceria novos padrões para a narrativa cinematográfica. Ambos seriam considerados geniais pela crítica e após alguns problemas, muitas acusações e poucas provas seriam condenados ao ostracismo cinematográfico. O sucesso precoce e a genialidade costumam ser vistos com grandes reservas e muita inveja pela crítica cinematográfica.

Apesar de todas as controvérsias, é inegável que os filmes de Leni Riefenstahl inauguraram uma nova forma de se "olhar" o mundo. As grandes celebrações passaram a priorizar a representação com a utilização sistemática de novas técnicas para a captação e edição de imagens. Os exemplos são inúmeros e continuam vivos. A onipresença da câmeras, ângulos e enquadramentos dramáticos ? como as vistas aéreas ou a utilização cada vez maior de imagens aproximadas pelas lentes de telefoto ? são algumas das contribuições que nos foram legadas pela então jovem cineasta alemã. Hoje, essas técnicas de captação de imagens são tão comuns que chegam a ser transparentes para o grande público. Parece que sempre existiram e que ninguém as teriam criado.

Donos do espetáculo

Com a sua nova forma de olhar o mundo, Leni transformaria os documentários políticos em instrumentos de persuasão ainda mais poderosos. Além das técnicas de captação de imagem, ela utilizaria sem nenhum pudor novas técnicas ficcionais na edição de seus filmes sobre a realidade. Um sacrilégio para os documentaristas dogmáticos. O importante era combinar o poder do cinema com os objetivos da política tornando os documentários obras de arte, sim, mas acessíveis ao grande público. Seus filmes foram sucesso de crítica com muitos prêmios internacionais antes da guerra e grande sucesso de público.

Sua nova forma de narrativa cinematográfica aliava a difusão da arte com os objetivos políticos num frenesi de imagens espetaculares, música de efeito especialmente produzida para seus filmes e, a grande ousadia, nenhuma narração. Ao dispensar o texto e a voz do narrador, ela eliminava a "voz de Deus" e priorizava a voz do "chefe", Hitler. Assim como nos modernos videoclipes, Leni experimentava na edição as novas linguagens audiovisuais e obtinha resultados inesperados. Alguns eram bons e outros, ruins. Mas, com certeza, ela estava determinada a surpreender o mundo com o "seu" novo olhar.

Mas a sua verdadeira importância não se restringe somente a uma nova forma de olhar o mundo pelo cinema, mas, principalmente, de como e para quem produzir os próprios eventos que representam o mundo. A partir de seus filmes, essas nossas celebrações culturais e políticas passariam a ser produzidas prioritariamente para o público externo, tendo como veículo o cinema ou a TV. Os rígidos rituais dos grandes comícios políticos ou dos megaeventos esportivos não seriam nunca mais sagrados ou intocáveis. Tudo seria permitido para satisfazer os menores caprichos ou desejos dos novos donos do espetáculo: os diretores de cinema, de TV ou os recém-incorporados marqueteiros políticos.

O importante é a mensagem ser transmitida ao "grande público". Essa mensagem se transforma em linguagem estética pelo poder das imagens. Elas se bastam. O conteúdo dessas mesmas mensagens assume definitivamente um plano secundário. Ninguém deveria ouvir ou prestar muita atenção às palavras. A prioridade passa a estar voltada para o próprio conteúdo de sedução das imagens. As experimentações de Leni Riefenstahl, quem diria, acabaram ditando as normas do novo cinema e da novíssima TV. Muita forma, pouco conteúdo.

Despolitização perversa

Num mundo que já estava caminhando a passos largos para uma globalização "inevitável" a ferro e fogo, as câmeras de Leni Riefenstahl se transformavam em verdadeiros "panzers" que passavam por cima de tudo e todos. Posições de câmeras que nunca haviam sido imaginadas, pois seriam consideradas "sacrilégios" contra os protagonistas do espetáculo, passaram rapidamente a ditar o ritual. Assim como hoje, a história naquela época tinha pressa de mudar o mundo.

Ao completar 100 anos ? muito menos do que o mil anos prometido pelo nazismo mas muito mais do que conseguiu viver o seu "padrinho" ? Leni Riefenstahl comemora seu aniversário com boas e más notícias. Foi matéria de primeira página no New York Times, após tantos anos assiste ao lançamento de um novo documentário, dessa vez sobre os "inofensivos" peixes do fundo do mar, e já está negociando para ter sua vida retratada por Hollywood em filme a ser estrelado, produzido e dirigido pela igualmente polêmica atriz e diretora americana Jodie Foster.

Leni, contudo, não perde a oportunidade de incomodar seus críticos e já promete interferir na produção do filme ao declarar que Jodie Foster, em verdade, não está interessada em suas "memórias", mas em seus "rumores". Quem teve o privilégio de assistir ao documentário sobre a sua vida (The wonderful, horrible life of Leni Riefenstahl, 1993, do diretor alemão Ray Müller) começa a sentir pena da pobre da Jodie Foster. Ela não sabe o que a espera. No documentário, com atitude autoritária, e em seus depoimentos captados pela câmera indiscreta do diretor, Leni disputa o tempo todo o direito de decidir como o filme deveria ser feito. Ao completar um século, a velhinha ainda ruge e não muda. Continua a mesma.

Mas para não fugir à regra, nem tudo são comemorações no aniversário da "deusa imperfeita". Esta semana, o Ministério Público de Frankfurt, Alemanha, país onde reside, já declarou que vai intimá-la pelo "crime" de negação do Holocausto. E não é só isso. Segundo o New York Times, um pesquisador americano, Lutz Kinkel, publica sua recente tese de doutorado na qual apresenta provas ainda mais contundentes e irrefutáveis do "envolvimento" de Leni com o nazismo. A História continua a perseguir Leni Riefenstahl, e mesmo com a proximidade da morte ela parece estar muito preocupada em deixar para as novas gerações a sua versão dos fatos.

Com tanto pecados, acusações e polêmicas, talvez não tenhamos parado para refletir sobre a possibilidade de Leni Riefenstahl ser culpada de um crime ainda maior do que tantos já citados. Com toda a sua genialidade, ao priorizar a estética sobre o conteúdo das mensagens, ela teria contribuído de forma ainda mais perversa para uma despolitização das mensagens e do próprio público. Ao dar primazia à sedução do público pela magia das imagens, ela estaria abrindo caminho para um meio de comunicação muito mais poderoso do que o cinema.

Hoje, a televisão que tudo mostra e nada explica, principalmente durante suas famigeradas transmissões "ao vivo", não sabe e nem percebe mas, provavelmente, tem muito a agradecer ou a culpar a velhinha alemã. De qualquer maneira, após tantos anos, apesar de tudo e com muitas restrições, sejamos educados: "Feliz aniversário, Leni"!

(*) Antônio Brasil é jornalista, coordenador do laboratório de TV, professor de telejornalismo e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ.