Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Fernando Henrique Cardoso

(*)

“…MÍDIA É VITAL. A relação com os meios de comunicação é vital. Quem não for capaz de se haver com os meios de comunicação não será mais capaz de ter desempenho político. Tudo passa a ter um valor simbólico e de representação. Queiramos ou não queiramos, é assim. A nossa sociedade depende desses instrumentos, que não são do contato face-a-face, que não são sequer dos setores organizados da sociedade, que são multitudinários.

E não estou me referindo ao outro problema, da inclusão dos que estão excluídos. Não, não. Entre os já incluídos existem modos de relacionamento com a vida política que não passam pelos canais partidários e que são essenciais na vida pública. E os partidos, muitas vezes, não têm a necessária sensibilidade para entender essa mudança de base da sociedade contemporânea. E têm muitas vezes a ilusão de que basta ter acesso àquelas maquininhas de televisão para conseguir o que desejam. E aquela maquininha é terrível. Assim como ela pode, de repente, fazer com que se consiga o que se deseja, ela pode liquidar, na hora também, dependendo de fatores que não são racionais. Não é o que é dito. Às vezes, é o que não foi dito. Às vezes, é o ‘como foi dito’ . Às vezes, é um longo silêncio. Às vezes, é uma dúvida momentânea.

Tudo isso pode ser fatal na política de hoje. Nós temos pouca experiência, pouco treinamento, pouca capacidade de refletir sobre isso. E esse ‘nós’ não somos nós, os que exercemos funções públicas, que somos políticos, mas também os que manipulam, no bom sentido, esse instrumento, que é a mídia. Os próprios que movem a mídia também não sabem o poder que têm ou, às vezes, se sabem, não trazem consigo a responsabilidade do poder que têm. É como se não tivessem poder, como se fossem neutros. E não são neutros. Nada é neutro nesse mundo político.

Essa questão tem que ser pensada, não para ser regulamentada em termos de limitação, de censura, mas em termos de consciência. E acho que os partidos têm que entrar nessa discussão, porque eles são a parte organizada do processo político; devem, nessa discussão aberta com a opinião pública e com os formadores de opinião pública, que muitas vezes se arrogam o poder absoluto de serem juízes, sem que o povo os haja legitimado para isso.

Então é complicado, porque eles não têm a legitimidade do voto, mas têm outra legitimidade, que também deve ser considerada no processo. E é preciso que haja uma regulamentação nesta matéria. É preciso que haja uma discussão sobre o que pode e o que não pode. Não basta regular o que pode e o que não pode do setor formalmente político, porque, crescentemente, o setor não formalmente político tem mais peso decisório do que o setor formalmente político.

E isso tem que ser posto na discussão, não – repito – em função de um acontecimento aqui, outro acontecimento ali, de uma vontade de coibir aqui ou de avançar ali, mas em termos mais amplos de uma reflexão sobre isso. Quer dizer, esse é o miolo da questão da vida política nas sociedades contemporâneas e da democracia nas sociedades contemporâneas, que não dispensa os partidos, não dispensa a representação político-partidária, os Congressos, mas não se resume a eles. E essas novas formas de interação não são ainda, digamos, partícipes de forma aberta do jogo. Aparecem como se não fossem partícipes do jogo. E são partícipes do jogo.

Então, acho que é preciso avançar nessa matéria. E por isso falei dos institutos dos partidos, da formação dos conceitos que vão orientar a sociedade, que não podem mais ser baseados só nisso. Esse outro conjunto imenso de participes, digamos assim, não-oficializados ainda no jogo, têm que ser ouvidos, são parte, têm que haver alguma forma de participação e socialização das decisões e dos valores em termos desse amplo espectro de participantes da sociedade contemporânea.

Dito isso, eu me desculpo. Faz tempo que não escrevo mais discurso. Não dá tempo. E, como eu não gosto de ler o que os outros escrevem, eu falo. E falo às vezes demais, às vezes de menos, mas tendo um gostinho: proponho as questões e vou-me embora. Que tenham sorte em resolvê-las. Muito obrigado.”

(*) Íntegra do trecho sobre a mídia no discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso, na solenidade de abertura do Seminário Nacional Projeto Brasil 2020: visões estratégicas para um cenário desejável, em 24/11/98. Fonte: Assessoria da Imprensa da Presidência da República

 

“MÁRIO SOARES – Hoje, tende a dizer-se que tudo se faz para a imagem. Nós, os latinos ou de ascendência latina, não chegamos ainda a esse ponto, felizmente. Mas de qualquer maneira, todos nós somos mais ou menos influenciados por esse tipo de democracia mediática. Essa situação criou uma nova classe que se permite todos os direitos – como se tem visto, por exemplo, no caso da espionagem sobre as vidas das pessoas, nos chamados inquéritos à vida privada das pessoas. Refiro-me a uma comunicação social que é extremamente agressiva, cuja responsabilização é difícil. Por um lado, há os jornalistas e, por outro, os patrões da comunicação social.

Por detrás disso, ainda, existe o público que tem alguns sentimentos de voyeurismo, que são normalmente estimulados, e que se alimenta do escândalo e da fofoca. A televisão e a imprensa brasileira são muito fortes em termos comparativos, tanto na América Latina como na Europa. Por exemplo, uma instituição como a Globo é uma empresa de comunicação social que pode rivalizar com as grandes empresas americanas e que se bate com as européias, mantendo associações com várias televisões e com êxito. Depois, há ainda grupos de comunicação social no Brasil que são verdadeiras instituições como, por exemplo, O Estado de São Paulo…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – O Jornal do Brasil, O Globo…

MÁRIO SOARES – O Jornal do Brasil, a Folha de São Paulo são grandes jornais. Todas essas instituições andam à procura de espaço e à procura de…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Até de poder…

MÁRIO SOARES – Isso interfere muito na política. Diz-se, por exemplo, que o presidente Collor foi eleito porque teve o apoio do dr. Roberto Marinho. Não sei se é exato. É uma afirmação que se faz. Como também se diz que é muito difícil alguém ser presidente da República no Brasil sem ter um grupo de comunicação social atrás de si. Eu gostaria que o Presidente me falasse disto, da comunicação social, da sua nova relação com o poder político. Não é só um problema brasileiro, é internacional. Como é que pensa que o novo poder da comunicação social se articula com a sua reforma do Estado e como é que se articula com o seu projeto relativamente ao futuro do Brasil?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Com o processo de democratização do país, da sociedade, houve uma certa democratização da mídia. Vou dar um exemplo: quando começou a campanha pelas ‘Diretas’ – no governo Figueiredo, em 1984-, a TV Globo não noticiava as concentrações populares. Houve reação da população que começou até a virar os carros da Globo. Até que a emissora colocou no ar as manifestações e isso teve um grande feito em cadeia.

Na época do impeachment do presidente Collor já foi o contrário, os meios de comunicação anteciparam-se muito, foram eles quem, na verdade, mostraram as evidências mais diretas de que havia alguma coisa de errado no governo. Bem, é verdade que na eleição de Collor houve um debate cuja reprodução na Globo dava uma sensação de superioridade do Collor sobre o Lula. Provavelmente, o próprio debate não foi tão negativo para o Lula, embora no segundo debate, ele não se tenha saído realmente bem.

MÁRIO SOARES – Eu vi esse debate e o Collor ganhou absolutamente.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – O que a mídia pode fazer é dar mais ênfase a um processo. Acho que dificilmente hoje a comunicação social pode inventar um candidato, ela pode apenas ajudar. Posso dizer que, quando fui candidato, a posição geral da mídia era no começo de grande simpatia pelo Lula, não dos donos, mas dos repórteres.

Fui entrevistado pela revista Veja e perguntaram como é que eu estava vendo a cobertura da campanha. Respondi: queiram ou não queiram, o Lula é melhor para os meios de comunicação porque o Lula é um espetáculo, é um trabalhador que ascende, e se ele chegar à Presidência será um grande espetáculo. Esse é o lado da sociedade de espetáculo que nós temos um pouco. E os meios de comunicação são levados pelo espetáculo. Mesmo que eles votassem individualmente em mim, do ponto de vista cênico seria muito melhor o espetáculo Lula.

MÁRIO SOARES – Isso é um pouco discutível. O Lula tem algumas dificuldades de expressão e de comunicação das suas idéias…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Eu sei, e acabou perdendo por isso mesmo. Mas, em tese, o entusiasmo era pela idéia de que um operário podia chegar à Presidência do Brasil. Que é uma idéia fascinante. O processo foi mais complicado porque eu não seria completamente incompetente, embora não seja usual um intelectual chegar a presidente… A verdade é que ninguém será mais eleito presidente deste país se não tiver capacidade de expressão na mídia. É praticamente impossível.

MÁRIO SOARES – Exato.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Quando digo mídia, digo televisão e rádio. O rádio prepara a base e a televisão dá o tiro de morte.

MÁRIO SOARES – E a imprensa escrita?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – A imprensa também, mas tem menos peso para a eleição. Para governar é preciso a imprensa; para ganhar a eleição, não. Mas isso é geral no mundo de hoje. As personalidades que têm capacidade de afirmação eleitoral são personalidades que se ajustam a essa necessidade da presença da mídia.

A televisão é um instrumento perigosíssimo. Aqui, no Brasil, durante a campanha eleitoral, os partidos têm televisão gratuita. Todos têm igualdade, não na produção porque ela é cara, mas na difusão. E os partidos lutam por ter mais tempo de televisão. Eu acho isso um risco enorme porque, quando as pessoas não sabem usar a televisão, a televisão liquida as pessoas. mas tudo isso está mostrando o seguinte: daqui por diante, não há alternativa, a política e os meios de comunicação estão casados.

Até que ponto os donos dos grandes meios de comunicação social vão ter uma influência decisiva? No período normal, o que é que acontece com a mídia brasileira? Deixa de ser partidária. Não há nenhum jornal no Brasil que se identifique com qualquer partido. nenhum!

MÁRIO SOARES – Não são partidários mas têm interesses econômicos muito concretos…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Há interesses econômicos e interesses sociais, mas não pertencem a um partido. Em geral, a mídia assume uma posição crítica porque o leitor quer isso.. Por vezes, eles substituem a inexistência de uma crítica política concreta por uma critica difusa. A informação vem sempre sob a forma de crítica. Posso pegar num jornal e mostrar como a notícia aparece quase sempre de uma forma crítica. É a ‘teoria do deslize’ que, aliás, foi elaborada pela Folha de São Paulo. O que vale é o deslize, o que tem interesse é o deslize, não é o eixo principal, é o que está fora do eixo principal.

Vou dar um exemplo banal que se passou comigo. No dia 7 de setembro, juntamos aqui crianças que tinham ganho um prêmio por terem feito uma frase bonita sobre o país, e crianças que tinham sido tiradas do trabalho forçado nas carvoarias e na cana-de-açúcar. Trata-se de um programa muito forte, com mais de trinta mil crianças que recebem uma bolsa para deixarem de ser forçadas a trabalhar. Se eu disser fofoca sai no dia seguinte. E eu percebi que eles não iam dar nenhuma notícia sobre o evento, porque isso de tirar trinta mil crianças do trabalho não é bombástico. Ainda se fosse algum partido da oposição que estivesse tirando trinta mil crianças… Então, sentei-me no chão para assistir ao espetáculo do ‘Castelo-Rá-tim-bum’ ao lado das crianças. Saiu em todos os jornais a minha fotografia. E não saiu nenhuma notícia sobre o conteúdo da reunião.

MÁRIO SOARES – Em Portugal passa-se mesmo…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Tancredo Neves usava gravata e, quando queria aparecer nos jornais, chupava a gravata. Era garantia de fotografia…

MÁRIO SOARES – (Risos)

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Eu fui à parada de 7 de setembro, com o Jorge Sampaio. Fato importantíssimo: os presidentes de Portugal e do Brasil. A parada foi bonita. O Jorge estava emocionado. Sabe o que saiu? Quando terminou o desfile havia muito povo na rua e eu deixei a segurança de lado e fui para o meio da gente. Foi só fotografia… Saí no meio do povo. Se não fizesse isso, não sairia nada.

MÁRIO SOARES – Infelizmente, é assim.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Nada. O Collor era um mestre nisso, o Jânio também. Eu levei muito tempo a entender que para certa imprensa só interessa o insólito…

MÁRIO SOARES – Exatamente.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – O insólito é o que sai, mas não sou muito dado a isso,

MÁRIO SOARES – Há outro aspecto do problema dos meios de comunicação social que hoje é de uma grande gravidade: o recurso excessivo à violência, às imagens de violência…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Certamente. Crime, violência, corrupção…

MÁRIO SOARES – …e recorrem também ao sexo, de uma maneira exagerada…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Também.

MÁRIO SOARES – …e deseducam as crianças. Hoje pode dizer-se que as crianças vêem programas que não deviam ver e que não podem entender. É altamente deseducativo. Ainda que também aprendam e amadureçam mais depressa.

Deve conhecer, com certeza, um livro de Karl Popper, o último livro que escreveu, e que é exatamente sobre isso. Cito de cor o que ele diz: ‘Se nós não controlamos a televisão e os media em geral, a televisão e os media vão controlar a democracia e destruí-la. Mas, para controlarmos a televisão, nós também podemos pôr em causa a própria democracia…’ E é o próprio Karl Popper o autor da famosa Sociedade Aberta, que chega a preconizar o regresso à censura. Isto é realmente muito perturbador. O que pensa o Presidente disto?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Apesar desses riscos que Popper menciona e que nós todos reconhecemos, eu não creio que a solução possa ser a censura…

MÁRIO SOARES – Eu também não. Obviamente. Tivemos uma experiência muito dura, durante as ditaduras, que nos imuniza contra todo tipo de censura…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Aqui, nós procuramos em certos casos – sobretudo no que diz respeito a programas para crianças – buscar uma forma de censura indicativa, do tipo não é recomendável para tal idade.

MÁRIO SOARES – Mas ninguém liga a isso!

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Ninguém liga. Mas o Ministério da Justiça está preparando, com a associação das empresas de comunicação social, algo para aumentar a sua responsabilidade social. Eu acho que é esse o caminho…

MÁRIO SOARES – Um código deontológico…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Isso. É verdade que a violência está virando uma obsessão e que também há uma espécie de reprodução de maus comportamentos. Eu vou dar um exemplo retirado da política. Eu diria que , no Congresso, a imensa maioria dos deputados é gente normal e correta. Mas há uma minoria, reduzida, que não o é. Esta minoria aparece muito mais do que a maioria e, muitas vezes, gosta de dar a impressão de que tudo está podre. Não é verdadeiro. Mas é reproduzido pela mídia como de fosse verdadeiro.

MÁRIO SOARES – E depois é difícil de destrinçar.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – E depois é difícil. Os meios de comunicação bons são os que separam o trigo do joio – atacam o joio, criticam o errado, mas também ressaltam o bom. Aqui há uma espécie de acanhamento para reconhecer o que é bom. Uma voracidade para apresentar as coisas catastróficas. Por exemplo, há uma crise financeira na Tailândia, e os meios de comunicação começam imediatamente a buscar sinais de que o Brasil também vai entrar em crise. Se algum estrangeiro, que não sabe nada do Brasil, declara que o mercado brasileiro é a próxima vítima isso dá logo manchete. Porque é o deslize.

MÁRIO SOARES – É uma situação que pode pôr em causa a democracia.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Eu acho que sim e pode pôr em causa a legitimidade do poder…

MÁRIO SOARES – A campanha que se faz contra a classe política, por exemplo, é outro exemplo da mesma real…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – É isso. Por exemplo, pode ter a certeza que nunca houve tanto trabalho como na atual legislatura. O parlamento trabalhou muito. Mas continua saindo, de vez em quando, aquela famosa fotografia do plenário vazio, como devesse estar sempre cheio, como se as questões se resolvessem pela presença de todo mundo, permanentemente, no Congresso. Contudo, passa para a opinião pública uma má idéia. A opinião pública considera o parlamento uma das instituições mais desacreditadas do Brasil, não é? Embora não só por isso.

MÁRIO SOARES – Sim, na União Européia temos o mesmo problema. Creio que é universal…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – É uma coisa curiosa, essa voracidade contra algumas instituições que são fundamentas para a democracia. Se elas viessem a ser liquidadas, a imprensa seria a primeira vítima e protestaria imediatamente.

Mas acho que, pelo menos entre nós, os donos já não têm o controle dos editoriais e, em certos casos, nos quais têm muito interesse…

MÁRIO SOARES – Por quê? Há comitês de jornalistas?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Hoje, vivacidade do jornalista é muito grande e a defesa da integridade do profissional é também muito grande. Houve uma certa democratização, não necessariamente no bom sentido, às vezes no mau, no sentido de uma certa irresponsabilidade. Mas, por outro lado, também o fato de você poder distorcer a favor do dono ou a favor daquele que é amigo do dono, é hoje muito mais difícil.

Eu tenho relações pessoais com quase todos os donos dos meios de comunicação no Brasil. Tenho relações pessoais com uma grande quantidade de jornalistas, desde os mais importantes aos menos conhecidos. Isso não altera em quase nada a avaliação que eles fazem de mim ou do governo. Quase nada!

O que me preocupa mais é a falta de fidedignidade do noticiário que leva a uma distorção. Há dias, veio aqui o pessoal de um jornal, gente toda amiga minha. Disse-lhes que o jornal desse dia estava uma maravilha porque reproduzia n íntegra o que eu tinha dito. Mas outra notícia sobre o que eu tinha dito não tinha nada a ver com o que eu dissera. No mesmo jornal!

MÁRIO SOARES – (Risos.)

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Isso é freqüente.

MÁRIO SOARES – Há televisão do Estado?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Só as educativas.

MÁRIO SOARES – E essas não podem rivalizar por cima e servir de exemplo?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Deveriam, e algumas são boas. A TV Cultura de São Paulo é uma boa televisão, tem um bom noticiário. A Nacional é uma das mais críticas ao governo. Porque também existe essa idéia: já que eu trabalho para o governo, então tenho que mostrar que sou independente.

MÁRIO SOARES – Sim, isso em Portugal também existe.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – (Risos.) Mas são detalhes. Na verdade, as TVs dos governos não têm tido possibilidade de competição… Porque as televisões privadas, do ponto de vista técnico, são muito boas – não é só a Globo, não, várias delas são muito boas. E também os jornais…

MÁRIO SOARES – Mas aqui houve um fenômeno interessante, na última campanha eleitoral. Um homem da televisão, o Silvio Santos, apresentou-se como candidato…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Mas não chegou até o fim.

MÁRIO SOARES – Está bem, não chegou, mas foi uma tentativa que realmente se fez pela primeira vez. Não conheço outro país onde isso tenha acontecido.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Ele desistiu porque percebeu que ia prejudicar a televisão dele. Porque isso é outra coisa engraçada, a formação da opinião pública. Acho que precisaríamos de mais conhecimento sobre isto: como é que se forma a opinião pública? Existem mecanismos informais que pesam na opinião pública. Não é? Veja o que aconteceu com a princesa Diana. Foi um caso extraordinário.

MÁRIO SOARES – Sim, sim, extraordinário. É uma questão de natureza sociológica que vai dar, com certeza, motivo a grandes estudos. Passou-se ali um fenômeno muito complicado, que foi aliás muito bem aproveitado pelo primeiro-ministro britânico Tony Blair que, Simultaneamente, o suscitou e o aproveitou. Isso mostra que ele tem uma boa antena para captar o que se passa. Mas, por outro lado, houve também a manifestação de um certo descontentamento do povo inglês com a monarquia.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Mas eu acredito que pode haver um efeito danoso para a democracia, pelo excesso de irresponsabilidade em certas circunstâncias, pelo exagero. Mas também há outro lado: na democracia contemporânea os fatores simbólicos são fundamentais e sem a mídia não há como expressar os símbolos.

E numa sociedade tão fragmentada como é a sociedade contemporânea, em que as classes já não têm cimento, em que mesmo as corporações são fragmentadas, há paradoxalmente a necessidade de uma comunhão. É aquela famosa discussão sociológica de comunidade e sociedade. Em dado momento, precisa a comunhão.

MÁRIO SOARES – Mas a princesa Diana é isso. É uma questão de comunhão que se fez de todas as classes, gente muito variada…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – A mídia cria política virtual. É tudo virtual, antes de as coisas acontecerem já a mídia começa a desenhar o que vai acontecer. É quase como se fosse uma premonição. Mas é uma premonição que, ao mesmo tempo, está criando também as condições para que aconteça.

MÁRIO SOARES – Contribui profundamente para isso.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Então, é uma relação ambígua, entre a vontade difusa da sociedade e a capacidade de captar isso, que a mídia tem. Quando o político ou os partidos são capazes de entender isso…

MÁRIO SOARES – Foi o que fez Tony Blair…

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – É. Isso leva-nos a estar permanentemente atentos – ‘antenados’, como se diz aqui – aos meios de comunicação… Que, na verdade, não é aos meios de comunicação, mas à sociedade , aos pequenos movimentos que podem às vezes, por uma espécie de curto-circuito, desencadear mudanças mais amplas. E, de novo, aí a posição central da Presidência é muito importante, porque você tem acesso aos meios de comunicação. Pode contra – atacar ou pode aproveitar-se de um fenômeno que esteja nascendo.

Não sei como será em Portugal, mas aqui tudo é assim, embora as personalidades mediáticas sejam muito poucas.

MÁRIO SOARES – Os líderes dos partidos não são personalidades mediáticas?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Não creio. Eventualmente, um ou outro, como o presidente do Senado. Ou um ministro como o Sérgio Motta, porque é muito espalhafatoso e competente e a mídia lhe dá um espaço enorme.”

(*) O mundo em português, um diálogo, Capítulo VIII: O outro poder, Editora Paz e Terra, setembro de 1998