Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Quase não há limites quando está em causa o interesse público", copyright Jornal de Notícias, 27/1/02

"Jerónimo Araújo, do Porto, leu no domingo passado, neste jornal, que a Inspecção-Geral das Actividades Económicas está activa e particularmente vigilante do estado dos alimentos postos à venda para consumo público, bem como das condições de salubridade em que alguns desses produtos são confeccionados. Tanto assim que a notícia dava conta da detenção, no Norte, de três pessoas, e da instauração de dois processos-crime e de 15 processos de contra-ordenações.

Ficaram apaziguadas pelo JN algumas dúvidas que o leitor arrastava há algum tempo, temeroso de que os inspectores, em número mais do que insuficiente para as necessidades nacionais, usassem todo o pouco tempo de que dispõem na perseguição aos CDs e às cassetes piratas, e na apreensão de vestuário contrafeito _ minimizando os cuidados com a salubridade do que comemos e bebemos, atentando, muitas vezes, contra a saúde.

Mas, se dissipou receios que o acompanhavam há bastante, substituiu-os por inquietações não menos graves, que têm a ver com justiça e com equidade. É que a notícia identificava claramente uma das confeitarias e o seu proprietário, mas dos restantes 16 processos pouco revelava, limitando-se a dizer que o outro processo-crime tinha a ver com uma fábrica de pastelaria de Bragança, onde os fiscais detectaram matérias-primas impróprias para consumo, oriundas de um armazém em Mirandela (foram detidos os proprietários da fábrica e do armazém). Sem nomes dos estabelecimentos nem dos responsáveis por eles. Quanto às contravenções, disse-se que cinco foram detectadas no Porto, duas em Vila Real, cinco em Viana do Castelo e três em Braga. Apenas isso.

Jerónimo Araújo estranhou a diferença de tratamento dos casos. Recusa a hipótese de que se tenham posto ?todos os pontos nos ?is?? sobre a confeitaria de Gaia, só porque ela é de ao pé da porta. É uma opção acertada na medida em que, como jornal nacional que é, o JN não tem vizinhos _ ou, melhor dizendo, tem-nos em todo o lado. Também repudia qualquer ligação entre as omissões das identificações e interesses publicitários já que, como afirmou ao Provedor, ?o vosso jornal é de uma seriedade acima de toda a suspeita?. E, no meio das suas interrogações, o leitor do Porto levanta mais uma: a de que esta não foi a primeira vez em que se ocultou, no Jornal de Notícias a identificação de estabelecimentos apanhados em flagrante com produtos impróprios para consumo.

?Acho que devia escarrapachar-se os nomes desses estabelecimentos, para defesa dos incautos ignorantes da má qualidade dos produtos que eles vendem. Penso que não está em causa a presunção da inocência a que o senhor Provedor se tem referido. Aqui há flagrante, as mercadorias são apreendidas porque estão podres, os responsáveis foram detidos…? _ considera Jerónimo Araújo.

O jornalista autor da notícia esclarece o porquê das omissões: por mais tentativas que tenha feito, não logrou obter os outros elementos necessários para completar a informação:

?No texto em causa, procurei proceder em conformidade com as normas legais e deontológicas e de acordo com as boas regras da nossa profissão, esforçando-me por fazer valer o princípio da presunção da inocência e por garantir a audição das partes com interesse no caso?.

?A omissão, na notícia, das referências _ comerciais e outras _ da pastelaria de Bragança e do armazém de Mirandela deve-se, simplesmente, ao facto de as várias fontes a que o JN recorreu não terem fornecido tais elementos?.

Dispensando-me de mais comentários às observações do leitor relativamente às razões da omissão, limito-me a considerar, se me permite, que a competência, a isenção e a honestidade dos jornalistas não se afere por eventuais erros ou omissões.?

E o editor de ?Sociedade?, Domingos Andrade, reforça:

?O jornalista procurou, por todos os meios, obter os elementos referentes à pastelaria de Bragança e ao armazém de Mirandela, apenas o tendo conseguido relativamente à pastelaria de Vila Nova de Gaia.

?O volume em causa na pastelaria de Vila Nova de Gaia justificava o uso de toda a informação disponível. Além do enriquecimento do trabalho, cumpriu-se o dever de ouvir a outra parte, uma vez que estava identificada.?

Não foi posto explicitamente em causa pelo leitor tudo o que se disse sobre a pastelaria de Gaia, mas sim o que se não disse dos restantes casos. E, até certo ponto, seria legítimo que, em nome de critérios de justiça, pudesse perguntar-se se, ao proteger (porque, voluntária ou involuntariamente protegeram-se!) os restantes 16 arguidos, dois deles também com processos-crime, não foi ferido o princípio da equidade, da igualdade de direitos.

A pergunta seria legítima, mas a resposta conduziria à publicação da notícia. nos mesmos termos em que ela foi editada. De facto, o interesse público ditava que, à falta dos outros elementos, se publicasse, com a maior urgência, aqueles que conseguíramos. Desde que, ética e deontologicamente se tivesse a preocupação de perseguir os elementos que nos faltaram em tempo útil. Em nome da justiça e do serviço público que notícias como esta enquadram.

É este aspecto que o Conselho de Redacção não reforça, no ponto 3 da resposta que endereçou ao Provedor, ainda que ele esteja implícito nas normas deontológicas e profissionais que o n?1 aponta:

?1. Os deveres dos jornalistas perante a sociedade, designadamente em matéria de saúde pública, exigem o escrupuloso respeito pelas normas legais, deontológicas e profissionais.

?2. Uma das condições essenciais para que o jornalista possa satisfazer integralmente os seus deveres _ incluindo o de ouvir as partes com interesse no caso _ é a existência de elementos informativos que conduzam ao conhecimento destas.

?3. Se, como por vezes acontece, o jornalista não dispõe de todos os dados, é lícita a omissão, ainda que se reconheça que a informação é incompleta, uma vez que há elementos essenciais que revestem interesse público.?

Naturalmente que os crimes económicos também pressupõem a presunção da inocência dos arguidos. Falamos de um princípio constitucional e geral que tem que ser olhado menos com olhos técnico-jurídicos e mais pelo prisma do senso-comum, do bom senso. Se fosse seguir-se a letra e não o espírito da norma nem sequer seria, nunca, deduzida acusação, ninguém seria julgado. E apenas se pretende que os vários e sucessivos passos da justiça sejam vistos como provisórios, até que seja proferida uma sentença da qual já não haja recurso possível.

Porém, presunção da inocência nada tem a ver com omissão da identidade — que a lei prevê apenas para casos especiais, tais como aqueles em que estejam envolvidos menores, ou de vítimas de violação ou de outros crimes sexuais.

A presunção da inocência, que é um preceito legal, deve ser entendida pelos jornalistas à luz das normas profissionais, como por exemplo o Código Deontológico. E, acima de tudo, à luz do bom senso, que deve julgar se a identificação de um arguido (não está a falar-se, claro, de figuras públicas) traz mais benefícios ao interesse público do que os danos que eventualmente possa produzir no cidadão em causa e na sua família.

No caso dos crimes económicos, e entre estes os praticados contra a saúde pública, denunciar o seu autor é uma forma de acautelar o interesse público — salvaguardando sempre que o caso vai correr os seus trâmites no tribunal que — esse sim –, há-de apurar as responsabilidades do delito detectado pelas brigadas fiscalizadoras.

Por isso mesmo é que o decreto-lei 28/84, de 20 de Janeiro, verdadeiro código do chamado Direito Penal Secundário, pressupõe, no seu art? 8?, que, na sentença deste tipo de crimes, podem ser aplicadas penas acessórias como, por exemplo, a publicação como publicidade, na imprensa, do extracto dessa mesma sentença.

Não é por sensacionalismo!"