Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Foi uma vaca igual a esta", copyright Jornal de Notícias, 6/4/02

"?Uma boa imagem vale por mil palavras?. A máxima vem do Oriente, onde as frases são, frequentemente, pedras de um jogo milenar, filosofal e poético, conotativas quanto baste para assumirem sentidos múltiplos. Entre nós, na civilização das pressas e dos imediatismos, perdeu profundidade, vulgarizou-se. Usam-na, algumas vezes, para justificar o que não tem justificação. Ainda que sirva, também, para justa consagração de alguns instantâneos imortais.

Muitos milhares de palavras vêm sendo gastos com o sorriso de Gioconda, e todos sabemos que muita tinta vai correr, ainda, sobre a enigmática expressão que da Vinci imortalizou em tela. Da mesma forma, não há palavras que reproduzam todas as sensações provocadas pela fotografia da menina vietnamita nua, em fuga do ?napalm? americano; ou que descrevam o misto de sofrimento e de inocência dos olhos verdes da jovem afegã que foi capa da ?National Geographic Magazine?.

Mas nem só as imagens merecedoras de um ?Pulitzer? (o maior galardão do jornalismo mundial) são fundamentais no jornalismo de hoje. A fotografia não é, desde há muito, um adereço do texto, mas o seu complemento. Raramente dispensável.

Há, porém, que ter precauções especiais com as imagens-ícones, meramente indicadoras de um tema, ilustrações de circunstância, usadas tão-somente para manterem a prosa menos densa, para servirem de refúgio para os olhos. Nesse caso é preciso cuidado com as pessoas fixadas na fotografia ? e mais ainda se estamos em face de uma imagem obtida nem no local do acontecimento que se ilustra, muito menos do dia a que a notícia alude.

Aconteceu, mais uma vez, no passado dia 17, com a foto que ilustrou dois assaltos a postos de abastecimento de combustível de Guimarães (?gasolineiras? é palavra que não existe em Português ? ainda por cima feíssima).

A imagem escolhida para ornamentar a notícia nada tinha a ver com os acontecimentos descritos: fora obtida há mais de um ano. Porém, na fotografia era identificável uma pessoa, absolutamente alheia àquele ou a qualquer outro assalto.

O que é grave!

Cumprindo o dever de correcção a que tinham direito primeiro o cidadão cuja imagem foi reproduzida e depois todos os leitores, o ?Jornal de Notícias? esclareceu tudo, dias depois. Mas ficou por explicar o porquê da repetição de um erro primário, tão facilmente evitável. E entendeu o Provedor que, em torno dessa explicação, poderia fazer, uma vez mais, alguma pedagogia temática.

O Conselho de Redacção, sem analisar especificamente o caso, recomenda, no texto que endereçou ao Provedor:

?1. A utilização de fotografias de arquivo reclama uma atitude de verdade para com os leitores, pelo que a sua origem deve ser clara e expressamente indicada, com a menção ?Arquivo JN? logo após a assinatura do seu autor.

?2. O dever de protecção do direito à imagem recomenda redobrado cuidado quando se trate de ilustrar temas de especial melindre, pelo que devem ser escolhidas fotos que inviabilizem ou dificultem a identificação de pessoas estranhas à acção objecto da notícia, ou, em alternativa, utilizadas vendas ou outros processos de descaracterização.

?3. Recomenda-se a adopção, pela Editoria de Fotografia, de procedimentos e técnicas que previnam antecipadamente a ocorrência de incidentes desta natureza, designadamente a introdução automática, no ?file info? de cada imagem, no momento do seu arquivamento, da menção ?Arquivo JN? imediatamente após o nome do autor da mesma (?Foto: Fulano de Tal/Arquivo JN?)?.

Por seu turno, Adelino Meireles, editor de Fotografia, concorda com as recomendações do CR, mas introduz, no caso, alguma análise. Diz o fotojornalista:

?Por norma, uma foto que tenha o elemento humano tem mais força que uma foto vazia. Por isso a maior parte dos fotógrafos tenta, sempre que possível, a presença de alguém. A maior parte das vezes é gente anónima, só para compor a fotografia. É o caso desta fotografia. A cara do senhor estava praticamente irreconhecivel, a matrícula do carro não se via e a legenda em nada dava a entender que aquele senhor tinha alguma coisa com o assalto. No meu entender, a única falta foi não assinar a foto com o nome do autor, seguido da referência a ?Arquivo JN?.

?Tem havido alguns casos em que de facto temos falhado. Há assuntos em que não pode existir a mínima possibilidade de identificação de alguém. E às vezes acontece. Acontece por várias razões: descuido da nossa parte; falta de informação entre secções (por vezes pedem-me a foto e não me explicam as implicações que a mesma pode ter(…)?

Remata Adelino Meireles com uma questão:

?E o problema é simples: o que é espaço público? Onde se podem ou não fotografar pessoas? É uma questão que ainda não está completamente clara nem legislada, e a fronteira do que se pode ou não fotografar é muito pequena.?

Vejamos, pois, segundo o editor fotográfico, as razões por que acontecem estas falhas (que, reconhece, não deviam existir:

O descuido invocado vale por contrição da Secção. Só que não basta o reconhecimento do erro e a sua consciencialização, é preciso tomar medidas efectivas para reduzir o risco desse descuido.

Quanto à falta de sintonia entre o editor fotográfico e os outros editores ? ela é, de facto, um problema cuja solução a Direcção JN não deixará de promover. É, no fundo, paralelo de outro procedimento incorrecto muitas vezes detectável, e que se consubstancia no facto de repórter-fotográfico e redactor, integrando a mesma equipa de reportagem, trabalharem ?de costas voltadas?, tratando um mesmo tema jornalístico por prismas totalmente diferentes. Só que o desentendimento entre os editores pode conduzir a consequências mais graves, do ponto de vista deontológico!

Vejamos, agora, as dúvidas levantadas por Adelino Meireles sobre a definição de espaço público. Ela consta, de facto, da lei. O n? 2 do art? 79? do Código Civil diz-nos, no fundo, que são: 1?, ?os lugares públicos?; 2?, os locais ?onde ocorram factos de interesse público ou factos decorridos publicamente?.

E se a clareza não é absoluta, a verdade é que, em jornalismo (como em quase tudo na vida) há um factor que supera as dúvidas que tal definição possa suscitar.

Falo do bom senso.

Não parece igualmente ao Provedor que o nome do autor seguido da menção ?Arquivo JN? ? como preconizam, quer o CR, quer o editor fotográfico ? resolva todos os problemas que se levantam à utilização de fotos guardadas no Centro de Documentação. Soluciona, quando muito, questões de autoria e de distinção entre imagens contemporâneas dos factos a que o texto alude, e outras que não passam de ilustração intemporal.

(Um parêntese para uma pequena história profissional: Há mais de 30 anos, um jornal do Porto dava notícia de uma vaca que caíra ao Douro. E alguém decidiu ilustrar a notícia com a fotografia de uma vaca. Rezava a legenda da foto: ?Foi uma vaca como esta que ontem caiu às águas do rio?. Desde essa altura, e enquanto na Redacção JN ? pelo menos nessa ? houve jornalistas com a memória da insólita ilustração, as fotografias de arquivo eram sempre chamadas ?uma vaca como esta?.)

O aparte jocoso não ilude (nem pretende fazê-lo) a gravidade de algumas situações dolorosas motivadas pelo uso de imagens de arquivo com pessoas identificáveis que não sejam figuras públicas. E, porque seria cruel utilizar um dos casos que, a seu tempo, fizeram sangrar sensibilidades, o Provedor recorre, como exemplo, à ficção…

Na véspera da entrada da Primavera, já tarde, um editor-chefe executivo decide que a 1? página do dia seguinte tenha uma bonita fotografia, alegórica da estação que chega. O tema não estava na agenda, o editor fotográfico não se lembrou da chegada da Primavera e já não tem nem tempo nem luz para ir captar uma imagem fresca. Decide-se, então, pelo recurso a uma fotografia de arquivo.

No dia seguinte, na capa do jornal, uma menina de tenros anos, linda, colhe, num prado, uma singela flor campestre. É uma simples alegoria, aparentemente inofensiva… Agora pense-se como hipótese (não é, infelizmente, difícil) que a criança, filha única e enlevo de um casal, falecera 15 dias antes. Conseguiremos imaginar a dor daqueles pais, o choque provocado pela publicação da fotografia?

O nome do autor e a menção ?Arquivo JN? não conseguiam, sequer, ultrapassar a barreira das lágrimas."