Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Com 114 anos vividos já se ultrapassaram fantasmas e complexos", copyright Jornal de Notícias, 1/6/02

"Coincide a publicação desta página com o dia em que o ?Jornal de Notícias?, completando 114 anos, entra no 115? de publicação. Há muito, portanto, que se enterraram fantasmas e que se venceram, pela afirmação, todos os complexos.

Um dia da vida de um jornal são mil vidas, mil anseios, desesperos, vãs glórias e mil impulsos que empurram o mundo, inexoravelmente, para mil destinos. 114 anos são (sei lá bem!) uns 40 milhões de notícias. A passar. E, debaixo delas, incapazes de pôr cabeça de fora, todos os fantasmas possíveis: aqueles em que não acreditamos e todos os outros que sempre tentam impôr-nos. Soterrados ficam, também, todos os complexos que alguns psicanalistas de esquina tentam redescobrir por estranhas conveniências.

A constatação dos efeitos da poeira do tempo é, porém, incompatível com a arrogância ? para a qual a introspecção é vacina. E essa postura reflexiva é, frequentemente, robustecida pelas observações alheias que, algumas vezes, permitem perspectivas de análise às quais não chegaríamos facilmente.

Um exemplo é a celeridade das reacções provocadas pela manchete da edição de anteontem, 31 de Maio.

Ao jeito de alerta, afirmava-se: ?Máfias do Leste ganham terreno?. E, dos dois pós-títulos, um deles (aparentemente o que deu origem ao trabalho das páginas 2 e 3) aludia ao primeiro passo concreto, dado na véspera, em Roma, para a criação de um corpo europeu de polícia de fronteiras. O outro, no dizer de Jaime Ribeiro Coelho, de Coimbra, seria ?(…) do mais puro e infundado alarmismo, demagogicamente trabalhado a partir de declarações de uma senhora polícia, que cita factos concretos mas vagos de 1999, e que a partir daí faz (ou lhas atribuem?) conjecturas e extrapolações, aparentemente sem qualquer fundamento?.

Jaime Ribeiro Coelho afirma-se menos preocupado com a notícia, propriamente dita, do que com o título da ?Primeira? e com as suas consequências, que teme que possam integrar uma onda de xenofobia, de que a extrema-direita venha a aproveitar-se habilmente.
?(…)Uma notícia como esta é um mau serviço prestado à Democracia. Vale por escancarar as portas aos grupúsculos nazis, que hibernavam um pouco por todo o mundo e que, de repente, mostraram os dentes na Europa toda (…) Não tarda que tenhamos milícias contra os ucranianos e contra outros cidadãos do Leste, que têm mostrado aos portugueses o que é competência no trabalho e, acima de tudo, vontade de trabalhar?.

Rute Carvalho, de Rio Maior, também reagiu desfavoravelmente à manchete. Em sua opinião, ?(…) a notícia é muito pouco ou nada, e eu até entendo que a fonte tenha querido proteger-se, só não percebo é como de tão pouco se faz um tão grande estardalhaço. Penso que é insensato, e só lamento que, num jornal como o vosso, não tenha havido alguém com maturidade suficiente para alertar para as possíveis consequências de um título assim. Nem ao menos o sr. Provedor?(…)?

Rute Carvalho convive de perto com a realidade dos trabalhadores do Leste. O marido é empresário agrícola e emprega alguns cidadãos de países da ex-União Soviética. Segundo garante, nunca sentiram, nem ela nem o marido, quaisquer reflexos da influência das mafias ?de que tanta gente agora anda a falar?. E teme que venha a gerar-se, ?por força da manipulação da opinião pública, um movimento que leve à debandada de tão excelentes trabalhadores?.

Vejamos: do bloco que deu corpo ao ?Em foco? de anteontem, a notícia contestada é construída sobre declarações de uma fonte identificada pelo nome de Maria Alice e que é nada menos do que subdirectora da Direcção Central de Combate ao Banditismo (Polícia Judiciária). O cargo é, desde logo, uma garantia de idoneidade. Ou deveria sê-lo. E as palavras da investigadora são o que são, valem o que valem ? no pressuposto que a própria leitora Rute Carvalho admitiu das limitações diversas que a fonte poderia enfrentar (desde o mecanismo jurídico do segredo de justiça, à discreção que o regulamento interno da PJ impõe).

Lida a notícia, constata-se que, em boa verdade, a manchete não tem por suporte factos concretos, ainda que se baseie em palavras proferidas. Mas, por vezes, essas declarações não passaram de conjecturas, como quando a investigadora prevê: ? Quando começar a faltar emprego, os mafiosos não vão conseguir arranjar locais para colocarem os imigrantes e cobrar o imposto de protecção. Nessa altura, é mais que certo que se irão virar para outros alvos?. É uma opinião respeitável. Mas não passa de uma opinião. Da mesma forma que, por enquanto, não passam de suspeitas as circunstâncias que envolvem ?muitos acidentes de trabalho e atropelamentos que não são normais?. Anomalia não é sinónimo de crime. Podem vir a coincidir as duas noções, na altura em que cheguem a termo as investigações que a PJ estará a efectuar. Até lá, de facto e na opinião do Provedor (que não faz qualquer leitura prévia dos textos a publicar no JN, porque essa não é sua atribuição), não existe suporte para o alarmismo que a manchete pode induzir.

Os jornalistas (repito-o) têm obrigação de, prosseguindo embora os seus objectivos de criar títulos apelativos, cuidar das possíveis interpretações que esse mesmo título possa motivar, pesando as consequências dessas mesmas interpretações.

O fim legítimo de prender a atenção dos leitores, de cativá-los para a compra do jornal não justificam, como meio, a falta de objectividade e de rigor.

As preocupações do leitor de Coimbra com as possíveis consequências de aproveitamento político, pela extrema-direita, de uma onda de xenofobia que ela própria alimentaria, partindo deste tipo de títulos ou de notícias levou o Provedor a trazer aos leitores dados para reflexão. São elementos bem concretos, consequências do autêntico pânico que conseguiu unir, em França, em torno de Jacques Chirac, todo o espectro partidário da França ? da direita democrática à extrema-esquerda.

A ameaça representada pela ida de Jean-Marie Le Pen à segunda volta das ?presidenciais? levou, de uma forma muito mais visível nos telejornais, a que os ?media? franceses se inibissem, entre 21 de Abril e 11 de Maio (período que mediou entre os resultados da 1? volta e a realização da 2? volta das eleições) de dar notícias envolvendo a insegurança ? justamente o tema que deu a Le Pen os resultados que abalaram a França, a mesma França que nele votou tão massivamente.

Hoje, são os próprios jornalistas gauleses que se interrogam sobre a legitimidade da autocensura, quaisquer que sejam os propósitos dessas restrições da informação.
O direito de informar coexiste, em plano de absoluta igualdade, com o dever de informar. Por isso mesmo não devem (não podem) escamotear-se notícias. Os jornalistas têm como uma das suas obrigações elementares a preocupação da objectividade, da verdade, sem recurso ao sensacionalismo manipulador de que alguns telejornais são um exemplo flagrante. Chama-se a esse fenómeno, justamente, a ?tabloidização? da informação televisiva.

A verdade não pode esconder-se ? beneficie quem beneficiar. Mas a verdade de corpo inteiro, sem artifícios.

Porque, muitas vezes, meia verdade é bem pior do que uma mentira inteira."