Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Perguntas numa entrevista nunca são indiscretas…", copyright Jornal de Notícias, 21/7/02

"Com o maior respeito que me merece o jornalismo feito de uma forma correcta e ética, gostaria de colocar algumas questões relativamente à entrevista publicada no passado dia 6 com a sra. ministra da Justiça.

?Na parte final da entrevista, a jornalista pergunta directamente à governante se os centros educativos de S. Bernardino, de Navarro de Paiva e do Padre António de Oliveira vão fechar. Não sei qual seria a sua fonte, mas ao abordar directamente a questão, permitiu que a decisão do Ministério viesse para o público geral e para os funcionários em particular em primeira mão.

?Com isto podem imaginar o choque, a angústia e o desespero que lançaram nos próprios funcionários visados, muitos dos quais com dezenas de anos de serviço e de dedicação, sem perspectivas de colocação, ou até de reacção emocional(…)

?Provavelmente não vos passaria pela cabeça que os dirigentes deste serviço (Instituto de Reinserção Social) não tivessem informado as chefias intermédias e por sua vez todos os funcionários afectados. Mas é mesmo assim: mais preocupados em segurar os lugares e os tachos, viram-se para o seu próprio umbigo, não pensando nos outros e no seu sofrimento – distância e frieza afectiva.

?A comunicação social não pode servir para difundir a imagem dos ministérios e do faz de conta, preocupemo-nos mais com aquilo que se faz efectivamente, apareçam mais nas instituições também para ver o que se faz de bom e não apenas nos momentos de crise ou mais negativos.?

Esta a carta, quase na íntegra, que um técnico superior do atrás referido IRS endereçou ao Provedor, solicitando o anonimato com receio de eventuais represálias — missiva que traz a esta página alguns temas de reflexão, de entre os quais gostaria de sumariar:

1. o papel do jornalista nesta sociedade da informação

2. os cuidados prévios à edição das notícias

3. o maniqueísmo cor-de-rosa versus negro, no jornalismo.

Fazemos, com frequência, juízos à medida dos nossos interesses ou da nossa sensibilidade. E sendo os ?media?, na sua diversidade, a imagem de nós próprios e da sociedade que integramos, lógico é que façamos deles os alvos privilegiados da nossas críticas.Ao ponto de, com frequência, se exorcizarem não os factos, mas os relatos, na comunicação social, desses mesmos acontecimentos. É a síndrome, tão velha como a Humanidade, do bode expiatório. Nas suas mais diversas ?encarnações?.

Por isso se ouve com frequência (tanta quanta a ligeireza com que o dizem), que o aumento do consumo de drogas tem como impulsionadora a profusão de notícias sobre tráfico, consumo e consequências dos estupefacientes. E os argumentos da imitação e da atracção pelo ?fruto proibido? servem, igualmente, para responsabilizar a comunicação social pelas ondas de suicídios ou de fogos florestais.

Aliás, o argumento já justificou, ao longo de quase meio século, a existência de Censura Prévia, em Portugal. Com os coronéis do lápis azul, não havia em Portugal suicídios, prostituição, sexo, desemprego, fome, miséria. Pelo menos nos jornais, nas rádios e na televisão.

Qual o papel do jornalista, perante a realidade factual que o cerca, e os possíveis efeitos das notícias com que pode retratar essa mesma realidade?

O jornalismo evolui na justa proporção do desenvolvimento da comunidade que serve. E, naturalmente, que os media, hoje, têm preocupações diferentes das que enfrentavam há umas décadas, e diversas das que o comboio do tempo já anuncia, tão perto, caleidoscópicas e velocíssimas.

Hoje não tem cabimento a notícia de um suicídio, que é um episódio da intimidade mais funda não apenas do suicida, mas de todos os que lhe são próximos. A menos que as circunstâncias que envolveram a morte tenham um relevante interesse público.

Os suicídios nos estabelecimentos prisionais, por exemplo, podem indiciar deficiências no sistema, da mesma forma que o número anormal de pessoas que, no Alentejo, põem termo à vida, indicia uma crise social que dever ser diagnosticada e tratada com urgência. O jornalista deve ter, naturalmente, sensibilidade para distinguir entre o drama íntimo e o indício de um caso que merece aprofundamento.

Mas que não se pretendam imputar aos jornalistas responsabilidades que, de facto, não lhes pertencem…

Não consegue o Provedor entender a responsabilidade da jornalista autora da entrevista à ministra da Justiça no ?choque, angústia e desespero que lançaram nos próprios funcionários visados?. Responsabilidade imputada pelo t&eaceacute;cnico superior do Instituto de Reinserção Social apenas porque, ao fazer a pergunta, a repórter ? permitiu que a decisão do Ministério viesse para o público geral e para os funcionários em primeira mão?.

Ao que parece, portanto, mais do que o encerramento dos centros educativos, incomoda o leitor que a notícia do seu fecho iminente não tenha sido comunicada em primeira mão aos trabalhadores dessas instituições.

É uma questão de sensibilidade, e as sensibilidades não se julgam. Porém, apesar de admitir que não passasse pela cabeça da jornalista que não existisse já, a informação adequada em todos os patamares do IRS, a verdade é que o dedo acusatório do reclamante é claramente apontado à autora da entrevista. Como se, mais do que qualquer outra preocupação, ela devesse sentir a de perguntar à ministra se todos os trabalhadores já estavam informados do encerramento dos centros.

Se não estivessem, não deveria dar a notícia — presume-se que preconiza o leitor…

Não se percebe, ainda, que a pergunta a Celeste Cardona e a resposta da ministra tivessem constituído uma novidade tão bombástica que exigisse cuidados especiais na sua divulgação.

A jornalista, inquirida pelo Provedor, confirmou que se limitou a procurar a confirmação de uma medida que há muito se previa nos meios do Instituto de Reinserção Social e que, dizia-se, constava já das intenções do titular da pasta da Justiça do anterior Governo.

Encerramento porque não há crianças?

?Não, porque estão mal distribuídas?, terá justificado a ministra.

Às vezes, as novidades que mais incomodam são as que se conheciam há mais tempo…

Como remate do seu juízo sobre correcção e ética no jornalismo, remete-se o técnico superior do IRS ao aconselhamento: não deve interessar aos jornalistas o que se passa nos ministérios e o ?faz de conta?, mas sim o que se faz nas instituições. Mas só o que se faz de bom. Visitá-las nos momentos de crise, jamais.

Não é nova a disputa verdadeiramente maniqueísta sobre o papel do jornalismo: de um lado os que consideram que o que está certo e correcto não merece notícia, já que não corresponde senão àquilo que deveria ser a normalidade (a defesa da informação correctora); do outro os que, como o técnico superior do IRS, pensam que as notícias devem ser dadas pela positiva, como incentivadoras das melhorias comportamentais.

Quando o povo diz que ?é no meio que está a virtude? fala com a sabedoria armazenada ao longo de séculos. Nem só jornalismo negro — tão pouco uma visão cor-de-rosa de um mundo de tantas e por vezes tão carregadas cores."