Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Fronteiras da notícia não são muitas vezes claramente marcadas", copyright Jornal de Notícias, 18/11/01

"Uma reportagem publicada justamente há uma semana sobre ?Os cogumelos que fazem rir? (Psilocybe Semilanceata, um alucinogéneo que nasce também em Portugal) mereceu de Ana Paula de Almeida, do Porto, um severo reparo.

Considera-a a leitora socialmente incorrecta, já que, ?em vez de alertar para um perigo, propaga a forma de se ver ‘um mundo mais bonito’, de ‘dar sensação’ e ‘sem qualquer ressaca’, ‘ali à mão de semear, de borla e absolutamente natural?.

Ana Paula de Almeida, que confessa que a circunstância de ser mãe de dois pré-adolescentes lhe agudiza a sensibilidade para o tema, verbera a circunstância de a reportagem, mais do que alertar os incautos para os perigos dos cogumelos, dar ?a receita completa, com doses, e como se deve fazer:secar ou conservar em mel, etc.. Um verdadeiro tratado sobre droga para os nossos jovens.? Termina a carta que endereçou ao Provedor perguntando: ?Acham que prestaram um bom serviço??

A jornalista autora do texto considera que ?o intuito da reportagem era não só informar para um facto ainda muito desconhecido em Portugal (até pelas próprias autoridades), onde se arrisca a ganhar a importância de que já goza noutros países, como a vizinha Espanha, como também alertar para os riscos que daí decorrem.?

Defende a jornalista: ?Uma reportagem tem que ser vista pelo seu todo, o que não parece ser o caso, tendo em conta o excerto da carta da leitora que me chegou. O resto do trabalho inclui uma listagem dos perigos, a posição científica de um perito espanhol e a confrontação com a forma como a Polícia Judiciária lida com o problema dos cogumelos alucinogéneos. A reportagem insiste várias vezes na nocividade das drogas em geral, no problema da habituação e no carácter proibido da substância que se encontra na espécie que cresce em Portugal.?

Aliás, o editor de ?Sociedade?, a secção que publicou ?Os cogumelos que fazem rir?, tem uma posição muito semelhante. Diz Domingos Andrade que ?a reportagem visava tornar os leitores JN cientes de um novo problema, habilitando-os com o máximo de informação disponível, de forma a contribuir para a prevenção do consumo de cogumelos alucinogéneos. A segunda parte do trabalho constitui um esforço de alguma pedagogia profiláctica, dando conta dos efeitos e dos perigos do consumo da substância contida naquela espécie. Este esforço é enriquecido com os depoimentos de um cientista espanhol, país onde o consumo é elevado, e de um responsável da Polícia Judiciária portuguesa?.

O Conselho de Redacção não tem a mesma certeza de que a intenção do texto (intenção de que o Provedor nunca duvidou) coincida com os eventuais resultados decorrentes da sua leitura. Considera, pedagogicamente, o CR:

?1. Desde há muitas décadas que a abordagem jornalística do fenómeno das drogas nem sempre é pacífica, mesmo quando é seguramente muito mais contida, quanto ao estilo, à densidade narrativa e aos próprios detalhes científicos, técnicos e práticos, do que a abundante literatura que versa sobre o assunto e se encontra disponível nas livrarias, bibliotecas e internet;

?2. Sem embargo do esforço de completar o seu trabalho com informação – balizada por cientistas e autoridades – relativa aos efeitos, à nocividade e às consequências, o jornalista deve procurar evitar fórmulas que directa ou indirectamente estimulem o consumo ou sequer a experimentação de substâncias deste tipo.?

O segundo ponto da resposta do CR ao Provedor vai ao cerne da questão levantada pela leitora. É que o jornalista deve ter outras preocupações para além das que o Código Deontológico lhe recomenda. Deve ter ponderação, discernimento e maturidade para separar a informação que é socialmente correcta, daquela que não o é. O que vale pela capacidade de fazer da sua consciência a balança que põe num prato os eventuais benefícios da novidade, e no outro as possibilidades(bem investigadas, se necessário recorrendo a consultas)de malefícios decorrentes da informação fornecida.

A satisfação da curiosidade de muitos milhares não justifica a possibilidade de uma só pessoa sentir-se atraída pela experimentação, pelo consumo dessa nova droga.

Por outro lado (e o CR aponta-o, claramente), mais do que na informação propriamente dita, há que atentar no modo como essa informação é formulada. É que, perante o estilo da reportagem (que Ana Paula de Almeida denuncia), os depoimentos do investigador espanhol e do responsável da Polícia Judiciária podem parecer um mero lavar das mãos e da consciência.

E não é, sabe-o o Provedor.

Uma imagem vale sempre mil palavras?

Publicou o JN, no passado dia 4, uma reportagem sobre o flagelo de uma outra droga, esta socialmente consentida, que é o álcool. Numa das peças que integrava o todo da reportagem, publicava-se a fotografia de uma ex-atleta, internada pela terceira vez no Centro Regional de Alcoologia do Norte. Fotografia que, ainda que não sendo um plano aproximado, permite a identificação clara da doente.

A dualidade de critérios (já que em relação aos outros fotografados houve o cuidado de velar-lhes os rostos) pode ter levantado dúvidas aos leitores – dúvidas que o Provedor quis esclarecer.

Houve, por parte da fotografada, a corajosa autorização expressa de divulgação da sua imagem e da sua identidade. Para que o seu caso possa servir de exemplo.

A verdade é que, apesar desse consentimento, verificou-se algum cuidado, pelo menos do autor do texto, em proteger a doente: não está claramente identificada na escrita (só os seus próximos podem reconhecê-la).

É pena que as dúvidas que levaram a esses cuidados não se tenham saldado pela preservação completa da identidade da senhora em causa. Até porque, como sobre o assunto diz o Conselho de Redacção, ?actos de coragem como este apelam sempre à capacidade do jornalista de medir o alcance e as consequências para a vida das próprias fontes, da generosidade manifestada por estas?."