Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Quando a facilidade leva a ?esquecer? essência das notícias… " copyright Jornal de Notícias, 4/1/02.

"David M. Castro Leite, de Portimão, tem idéias formadas sobre militares e sobre defesa nacional. Sobre elas discorreu com o Provedor ? no fundo para sustentar a indignação que lhe suscitara a leitura, na edição de sexta-feira finda, da reportagem que deu corpo à manchete ?Xarope da tosse para fugir à tropa?.

Manifestando-se, desde logo, contra a existência do Serviço Militar Obrigatório (?bater com as costas em África, nos tempos da guerra, não fez de mim um Rambo, nem instilou na minha cabeça um duvidoso patriotismo?), pergunta qual o objectivo do texto, que ocupa toda a página 10 — justamente a que abre a secção ?Sociedade?.

Porque, garante, ?não acredito que tenha passado pela cabeça da jornalista, militantemente ou não, ensinar os jovens a ludibriar o esquema das inspecções. A imprensa não existe para encabeçar campanhas de violação da lei, para fazer pedagogia negativa, e, mesmo que fosse essa a intenção, por certo que não seria essa a forma mais eficaz.?

Quanto ao objectivo, parece ao Provedor que ele começou por ser definido. Se considerarmos os dois primeiros parágrafos como um ?lead? alongado, o propósito da notícia encontra-se ali expresso, claramente enunciado: será a denúncia de que, no interior dos centros de selecção, existem militares que ?embolsam quantias verdadeiramente milionárias? a troco da ?receita? de um xarope. O fármaco deixa todos os sintomas de que o seu consumidor é um toxicodependente, o que faz com que não seja aceite nas Forças Armadas.

A intenção da reportagem foi, de facto, de acordo com a sua autora, desmascarar aqueles que encontraram forma de extorquir quantias elevadas às famílias dos jovens que querem escapar à tropa. Só que o objectivo, ainda que parcialmente conseguido, não surge como a essência de um texto, que acaba por ter leituras desviantes e diversas. E não ajuda nada nem o título (praticamente repetido na manchete) que atraiçoa claramente o objectivo enunciado no ?lead?, tão-pouco a fotografia ilustrativa (porquê aquela?) que só adensa a ?cortina de fumo?.

Comenta o leitor de Portimão:

?A notícia é um verdadeiro manual do que não deve ter divulgação pública: a forma de ludibriar a lei e de fugir ao cumprimento do serviço militar, e a receita, à população em geral, de um derivado da heroína e da forma de obtê-lo facilmente! Nem falta, sequer, a opinião de um homem de ciência, que decerto confiou na jornalista mais do que ela merece. Eu não acredito que o dr. J. Pinto da Costa soubesse que a sua declaração ia ter o enquadramento que lhe foi dado?.

O propósito de denúncia enunciado pela jornalista ao Provedor não terá, de facto, tido a visibilidade necessária. Ficaram sem resposta muitas perguntas, como, por exemplo, a que levaria à quantificação dos mancebos anualmente rejeitados pelas Forças Armadas por dependência de drogas duras, marcando, ainda, a evolução desse número na última década. Ou a que nos permitiria avaliar os métodos de despistagem dos toxicómanos.

Sabem os jornalistas como os militares erguem muralhas a toda a informação que, em seu entender, não interessa à sociedade civil. A impenetrabilidade que o regime ditatorial, mais do que legitimar, encorajou, tornou-se de tal forma proverbial, que fez germinar a ineficácia precoce, a sensação de nem vale a pena procurar a notícia onde, sistemática e permanentemente, apenas se encontram portas fechadas. Ora, esse preconceito é um erro hoje, como já o era no tempo em que a Censura encobria quer a prepotência, quer a indigência profissional.

Talvez por isso mesmo aprendem os jornalistas a defender-se do fácil. Começando por duvidar dessa mesma facilidade. Assimilam, muitas vezes à custa de erros cometidos, que toda a informação tem um preço, e o mais elevado, inquantificável, é normalmente o prejuízo de terceiros. Depois, porque é frequente que a disponibilidade das fontes, mesmo que sem intenção, acabe por desviar o repórter da essência de mensagem que pretende transmitir. O acessório acaba por ser moldura barroca do essencial … que quase passa despercebido! Como agora aconteceu!

Para aquela percentagem marcante dos que lêem os títulos e pouco mais, ficou a ideia de que há um xarope que livra da tropa ? ideia a que dá força a fotografia do frasco do medicamento.

Depois, com destaque, a opinião do prof. Pinto da Costa, e no meio dela, o relevo de um entretítulo que afiança que os heroinómanos esgotam, em certas ocasiões, o fármaco. Porque ele será óptimo para suprir a falta da droga original…

O resto, a mensagem que se pretendia como essencial ? essa perdeu-se!

Para quê o nome do xarope?

Qual o interesse da exaustiva enunciação das virtudes substitutivas do fármaco para satisfazer a dependência da heroína?

Será que todos os elementos que um jornalista recolhe,quando prepara uma reportagem têm de ser reproduzidos — ou, pelo contrário há (tem de haver) uma filtragem ético-deontológica que, muitas vezes, não tem, sequer, que ultrapassar as margens do bom senso?

A censura!

Foi ouvida gente da Farmácia, recolheram-se depoimentos de pais de jovens. E responsáveis pelo recrutamento para as Forças Armadas? Hoje não existe sequer o receio de que uma simples pergunta possa despoletar um ciclo de influências que culmine com o silenciamento do jornalista! E, se foram inquiridos e não quiseram falar, por que não se mostra aos leitores a clareza de procedimentos e a preocupação de ouvir todas as partes envolvidas na questão?

Esta é, aliás, uma questão recorrente na página do Provedor.

Bom era que não fosse…"