Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Cada palavra tem o seu peso …a sua carga", copyright Jornal de Notícias, 25/11/01

"Já no princípio do mês, mais concretamente no dia 4, publicou o JN, em ?Sociedade?, notícia da dedução de acusação, pelo Ministério Público, contra o dr. Duarte Nuno Vieira, presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal. O processo judicial tem como objecto acontecimentos verificados em 9 de Setembro de 2000, quando o dr. Duarte Vieira, então ainda director do Instituto de Medicina Legal de Coimbra, viu o automóvel que conduzia, na Trofa, envolvido num acidente com um outro carro. Do desastre resultou a morte de uma senhora de 64 anos, mãe da condutora do segundo veículo.

Joaquim Vieira Martins, de Castelo Branco, enviou ao Provedor ?protesto magoado, mais do que indignação?. Não se refere à informação (?não discuto factos que não conheço, muito menos quero julgá-los, espero que a Justiça dê o seu veredito e só depois lhe junto o meu próprio juízo?). Mas contesta a forma da notícia, ?com o tom, que eu sei que não é coisa que se meça, mas que se sente, que quem lê muito, como eu, principalmente jornais, sabe identificar bem.?.

Para Joaquim Martins, se o corpo da notícia é incorrecto, já que ?se encontra, mal dissimulado, ?parti pris? contra o dr. Duarte Vieira?, o título, esse chega a ser acintoso, uma vez que ?chamar ?patrão da Medicima Legal ao dr. Duarte Vieira é pejorativo, faz lembrar os patrões da droga ou das redes de prostituição?.

A autora da notícia reconhece, perante o Provedor: ?(…) o termo ?patrão? presta-se a interpretações abusivas, mas esclareço que não houve da minha parte a mínima intenção de favorecer a interpretação que o leitor faz?.
Diz, ainda, a jornalista:

?Ao contrário do raciocínio redutor e perverso que o leitor me atribui, apenas fui condicionada por questões de ordem técnica, na escolha da palavra (…): o espaço pré-determinado para um título a quatro colunas não permite qualquer das expressões ?director? ou ?presidente? para traduzir o cargo da pessoa visada(…)?. A autora da notícia, em defesa da ausência de má-fé na elaboração do título, chama a atenção do Provedor para o facto de, no texto, em nenhuma circunstância ter usado a palavra ?patrão?.

Por seu turno, Domingos Andrade, editor de ?Sociedade?, explica que ?na sequência da publicação da notícia em causa, o ?Jornal de Notícas?, como é dever deontológico indeclinável dos jornalistas, publicou no dia 13 de Novembro uma notícia complementar à que é objecto da carta do leitor, a qual visou esclarecer as circunstâncias e o papel do visado na primeira. Este segundo texto contou, aliás, com a colaboração mais desenvolvida do próprio dr. Duarte Nuno Vieira.?

O Conselho de Redacção, que também refere ao Provedor a correcção do dia 13, aproveita para fazer uma recomendação:

?Além de dever ponderar o interesse público na divulgação de factos relacionados com pessoas que ocupam, circunstancialmente, lugares públicos, o jornalista deve esforçar-se para que as suas opções não possam, em caso algum, induzir sequer a suspeita de qualquer processo de intenções.(…)?

A explicação de Domingos Andrade está manifestamente desajustada do objecto da reclamação do leitor de Castelo Branco. Porque Joaquim Vieira Martins é o primeiro a afastar-se da discussão da matéria de facto, que deixa para os tribunais. E foi justamente a matéria de facto que mereceu a correcção de 13 deste mês.
O esclarecimento terá, eventualmente, agradado ao dr. Duarte Vieira, até porque ?contou com a sua colaboração mais desenvolvida?. Mas não acrescentou uma letra que fosse ao objecto do protesto do leitor, que é o tom da notícia e a utilização da palavra ?patrão? no título.

Ora, o ?tom? da notícia não é (e o leitor de Castelo Branco reconhece-o) mensurável. E a sua detecção é, também ela, do domínio da subjectividade, com interferência de factores diversos, muitos deles psicológicos. Aquilo a que hoje atribuímos determinada intenção negativa poderia, num outro dia e perante um outro estado de espírito, passar como informação objectiva.

E o Provedor, no caso vertente, não acredita que tenha existido qualquer intenção perversa na elaboração da notícia. Mas admite que o tom da notícia é como o fumo: cheira-se… e às vezes há mesmo fogo!

Muitas vezes, o jornalista é traído pelo seu entusiasmo. Tendo à disposição uma não muito vulgar riqueza de pormenores, não descansa enquanto não os arruma a todos na sua notícia. Sem pensar que a abundância pode parecer suspeita, e vestir a pele de uma tomada de posição que na maior parte dos casos nem existe. Pior: algumas vezes sem imaginar, sequer, que tanta abastança de dados lhe foi servida, qual presente envenenado, com intenções que lhe escapam.

Um acidente de viação é um acidente de viação e nada mais. A que todos estamos sujeitos, sendo nós figuras públicas ou cidadãos anónimos, conduzindo carros do Estado ou particulares, correndo para um casamento ou para uma reunião de trabalho. A culpabilidade e a assunção das responsabilidades inerentes — essas hão-de ser determinadas em juízo.

Temos, ainda, a considerar a elaboração do título, para a qual as condicionantes de ordem técnica não podem ser desculpa, nem sequer para o jornalista que confessa essa incapacidade. Estão em causa, tão somente, o apuramento técnico, o aperfeiçoamento profissional.

E se essa incapacidade é passível de beliscar a honorabilidade de quem-quer, há que recorrer à ajuda da hierarquia – que existe para isso e para detectar os erros.

As palavras têm, frequentemente, para além da sua significação, uma carga semântica, que mais não é do que a evolução do sentido dessas mesmas palavras. Pelo que é débil defesa o recurso a qualquer dicionário para reclamar inocência. Os conceitos que as palavras representam são tão fluidos… que não há celeridade de lexicologista que os contenha a todos nas fronteiras do passado.

As lutas laborais do pós-25 de Abril e a sua expressão na comunicação social deram a ?patrão? uma carga que arrasta conceitos adjacentes como os de exploração e prepotência. Depois, o crescimento das redes de tráfico de droga e de mulheres acrescentaram uma carga semântica em permanente evolução.

Os jornalistas têm que acompanhar essa evolução. As palavras são matéria-prima do seu trabalho!

O título em questão não é correcto para o dr. Duarte Vieira. E não honra o ?Jornal de Notícias?.

Na manchete cada letra é um perigo!

Quando, na linhagem dos títulos, chegamos à manchete, atingimos, também, o vértice da pirâmide de todas as atenções, de todas as exigências. Vejamos um exemplo…

No passado dia 2, o incêndio que, em Cascais, destruiu um lar de idosos, causando a morte do advogado e lutador antifascista Manuel João da Palma Carlos, foi manchete no JN.

?Lar ilegal mata idosos em Cascais?, gritava a Primeira Página. E Nuno Ferraz de Lemos, de Sintra, protestou junto do Provedor, considerando o título ?formalmente incorrecto, e imputador de culpas que os proprietários do lar em causa podem nem ter?.

José Leite Pereira, director adjunto, em resposta ao Provedor, considera:

?O essencial da carta do nosso leitor refere-se ao facto de na altura da elaboração da notícia não estar provado que ?as circunstâncias da ilegalidade do lar tenham contribuído para a tragédia?. Ora, lida a notícia percebe-se que assim não é, e que desde o início as autoridades apontaram nesse sentido, a ponto de, como se sabe, terem até encerrado um outro lar do mesmo proprietário.

Quanto à primeira observação do leitor: é evidente que um lar não mata. Mas não é menos evidente que a fórmula utilizada para titular é sintética e permite, de imediato, perceber a situação. Se quisermos ser fundamentalistas, reprovamos um título assim, mas, como estes títulos não são a regra no JN, não fica mal que, como excepção, os aceitemos. Não é também verdade que ?o ridículo mata??

O Provedor reconhece que uma manchete tem exigências acrescidas em relação a um título do interior do jornal. Acima de tudo pede-se-lhe que seja tão apelativa quanto possível, que instigue a curiosidade dos leitores. Por isso, com demasiada frequência, o rigor é sacrificado a algum sensacionalismo.

E, a maior parte das vezes, sem necessidade. Como é o caso da manchete em causa."