Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Tudo pode dizer-se desde que saibamos a forma de fazê-lo", copyright Jornal de Notícias, 12/1/03

"Nos tempos em que a Censura condicionava a informação em Portugal, houve um punhado de excelentes jornalistas que, embora obrigados a respeitar as regras do regime, nunca se deixaram vencer. Travaram uma verdadeira guerrilha através da sublimação estilística do Português, burilando palavras e frases de forma a que, perdendo agressividade, contundência, acabassem por ser toleradas pelos zelosos coronéis do lápis azul.

Dizia-se nas redacções da altura, que ?praticamente tudo pode escrever-se, dependendo das palavras utilizadas?. O que, de facto, não correspondia à verdade completa, já que não havia jogos de palavras que ajudassem à denúncia pública dos mais graves problemas com que, na altura, o país se debateu.

A mordaça, porém, não impediu a revelação de uma elite que se especializou em ?escrever nas entrelinhas? e que, compreendida embora apenas pelos portugueses mais cultos (só por isso a intervenção da Censura não era radical), não deixou de ter o importante papel do ?lume brando? em que, ao longo de vários anos, foi fervendo a oposição à ditadura.

Ora, aqueles que cultivaram toda a sua vida a esperança na queda do Salazarismo estavam suficientemente conscientes de que a linguagem das ?entrelinhas? não seria, de forma alguma, adequada nem a um período revolucionário, nem ao que se lhe seguiria imediatamente, de formação cívica dos portugueses. E não resultou o esforço de alguns de promoção da coexistência de duas linguagens: a da guerrilha e de um combate futuro, incerto e que alguns já aguardavam sem grande convicção.

Por isso, no pós-25 de Abril, o jornalismo viveu alguns sobressaltos que foram, também, estilísticos e psicossociológicos…

?Sabe o que me pareceu, sr. Provedor? Que estava a ler um jornal do tempo do PREC, cheio de obscenidades…? O desabafo foi de Rui Silva, de Chaves, que se queixava dos termos em que, no domingo passado, se publicou, tendo como antetítulo ?Portugal vernáculo? e como título ?A justiça dos palavrões? notícia da absolvição, no tribunal de 1? instância?, de uma mulher que utilizou uma expressão obscena para referir-se a um ex-amigo da filha ? homem que se sentiu atingido na ofensa à honorabilidade da mãe, e que, por isso mesmo, levou o caso a tribunal.

O Tribunal da Relação do Porto confirmou a sentença inicial, também ele considerando e explicando que o julgamento da ofensa está ligado à carga semântica da palavra ou da expressão — carga que depende do contexto em que ela foi proferida, contexto que tem a ver com factores diversos que vão da geografia ao ambiente social em que de integram os intervenientes no caso, passando por diversos outros circunstancialismos a ter em conta na decisão.

?Filho da p…?, que pode ser considerado ofensivo em diversos pontos do país, é notoriamente coloquial em certas camadas da população nortenha, onde pode, mesmo, ser utilizado como parte de um elogio ou de uma interpelação carinhosa.

Sentenças análogas são de tal forma frequentes que, como refere um outro leitor, Carlos Alberto Reis, do Porto, já nem sequer são notícia. Considerando exagerado o número de vezes que a jornalista usou a obscenidade (12), lembrou que o ?Jornal de Notícias? é, hoje, um jornal nacional que, chegando a todo o país, é lido em regiões em que a expressão em causa, se não é ofensiva, é pelo menos incómoda, de mau gosto e de má educação. Lido por pessoas de todas as formações e de todas as idades, que merecem o respeito de quem lhes entra pela casa dentro.

?Eu sou do Porto, onde se fala muito mal e não gostei? ? reforça o leitor.

Carlos Reis, ainda que de forma diversa, acaba também por fazer uma analogia com o período imediatamente pós-Abril e com a linguagem então utilizada de Norte a Sul.

Já vai longe, porém, a época em que longos recalcamentos tiveram como escape uma certa libertinagem linguística, e em que as obscenidades foram, também elas, uma das afirmações na frágil e incerta consolidação da liberdade.

Quase 30 anos volvidos, quando a democracia luta contra as portas fechadas da corrupção e contra os proteccionismos sociais que enterraram crimes hediondos — pode hoje instituir-se como verdade a máxima dos que, com frágeis armas, tentaram ultrapassar a Censura: é possível dizer-se tudo, desde que saibamos a forma de fazê-lo. Forma que passa pelo respeito de normas jurídicas e éticas.

E pelo bom-senso, pelo bom-gosto e pela boa educação.

Alguns jornalistas com quem o Provedor falou, escolhidos aleatoriamente, não consideram que o texto em questão constitua um desvio gravoso. Mas todos admitiram que não o escreveriam da mesma forma, com a repetida utilização da expressão obscena.

José Leite Pereira, director adjunto, não condena particularmente a forma da notícia, se bem que considere que não é um tipo de peça jornalística que possa utilizar-se muitas vezes.

O jornalista não deve chocar sensibilidades sem necessidade e deve ser antes do mais bem educado.

Por seu turno os membros eleitos do Conselho de Redacção entendem que:

?a) O uso de expressões vernáculas em textos jornalísticos corre o risco de nem sempre ser compreendido pelos leitores;

?b) a utilização de palavrões deve constituir uma excepção, ponderada quanto ao seu enquadramento, necessidade e proporcionalidade, bem como quanto aos objectivos do trabalho e à percepção da sensibilidade e diversidade cultural do público;

?c) o JN tem respeitado estes princípios, e eventuais excepções menos compreendidas pelos leitores não põem em risco a sua confiança e estima.?

O Provedor, reconhecendo como Carlos Alberto Reis que o caso tornado público, de tão vulgar, não é sequer notícia, considera particularmente de mau gosto o tom em que a jornalista se dirigiu aos leitores.

Choca pela grosseria, agredindo, desnecessariamente, uma parcela do universo de leitores do JN onde, necessariamente, se encontram as mais diversas susceptibilidades.

E sensibilidades.

E culturas."