Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Fernando Pedreira

CASO MURAD-SARNEY

"A mão do gato", copyright O Globo , 10/03/02

"Quem tem telhado de vidro não deve jogar pedras no do vizinho. A não ser que possa fazê-lo com a mão do gato, à sorrelfa.

Quem tem (ou não tem) telhado de vidro neste país e onde está a mão do gato? Em termos de verdadeira ou suposta sabedoria popular é talvez mais fácil entender o governo Fernando Henrique; ou, antes: não o governo, propriamente (um grande governo), mas os tempos em que Fernando Henrique governou.

Veja-se a extraordinária confusão armada, ainda agora, a partir da invasão policial dos escritórios de Jorge Murad e da divulgação de partes de suas capitosas entranhas. A quem interessa a invasão (com divulgação)? Ao governo e a seu candidato José Serra? Certamente não. Se o episódio teve origem numa conspiração palaciana, estaríamos então diante de um grosseiro erro de cálculo. A agressão a Roseana destroçou a base de apoio do governo e estourou a aliança política onde a candidatura governista poderia vir a firmar-se. Mais ainda: criou um clima de denúncias e desconfianças que não deixará de arrepiar os cabelos também do terceiro parceiro, o PMDB, e de outros figurantes menores.

Quem está rindo de orelha a orelha é o PT; é Lula, o candidato que Roseana ameaçava (ameaça ainda?) em termos de voto popular, afinal a única mercadoria que vale neste ano fatídico de 2002. Morta Roseana, para quem irão os seus votos? Ao menos num primeiro momento, boa parte deles voltará para o PT; o sufoco em que estava Lula se desafoga e o ?sapo barbudo? ganha pelo menos uns dois meses para respirar fundo, embora se possa supor que mais adiante outro aventureiro (Garotinho? Itamar?) calce as botas da falecida.

Em outras palavras: sem Roseana, vamos saber se o desgaste (a rejeição) que ameaçava o Lula é intrínseco ou extrínseco, isto é, se é um mal do próprio candidato ou se era apenas reflexo do charme da postulante maranhense. Mas, o jogo não acabou, ainda. No momento em que ponho no papel estas maltraçadas linhas, o PFL e sua candidata fazem o que podem para mostrar-se fortes e valentes diante da tempestade. E não se deve, certamente, afastar a hipótese de que se repita aqui o que ocorreu nos Estados Unidos com Bill Clinton, e o povão, na próxima pesquisa, confirme, reafirme seu apreço pela governadora.

Anunciam as manchetes que o PFL, depois de 38 anos no poder, vai deixar o governo. Não vai. O PFL é governo e, sem ele não sobrevive, não tem sequer razão de ser. O PFL é a versão moderna do PSD dos tempos de Getúlio; é o partido dos interventores, dos oligarcas. Pode-se, quando muito, trocar um grupo ou um chefete por outro, como se fez no próprio Maranhão: sai Vitorino Freire, entra José Sarney. Ou se pode, em tempos de crise e dificuldades sérias, mudar a própria sigla: PSD, Arena, PDS, PFL; inchá-la um pouco mais ou emagrecê-la, inventar adendos como o PTB de Getúlio ou, hoje, o partido do Maluf. Na crise atual (de véspera de eleições) a valentia pefelista não passa de mais um lance na mesa de pôquer de 2003.

Mas, onde está a mão do gato? Basta olhar um pouco para trás e rever as crises todas, sem exceção, do governo Fernando Henrique. Em todas as crises, desde a primeira, do Sivam, que forçou o presidente a exportar para Roma (onde está até hoje) um de seus mais íntimos interlocutores, até esta de agora, aparecem a PF, a Polícia Federal, e o MP, o Ministério Público. Sempre que possível, age-se com base numa ordem judicial; quando não há essa ordem, recorre-se até à escuta clandestina, mas o mais importante, em qualquer caso, é a utilização da mídia: o vazamento, a divulgação deliberada de dados sigilosos, destinada a provocar escândalo público. Que o digam piores e melhores; ACM, Eduardo Jorge, Chico Lopes, Jader Barbalho, Jorge Murad, entre tantos outros mais ou menos votados.

Em todos os casos, a postura do presidente tem sido uma só: isenção; tolerância; não se demite nem se pune ninguém, mesmo em casos extremos, até porque as denúncias são sempre altamente populares e os denunciados, quase sempre, alvos da detestação ou da desconfiança do povo. E assim vai a coisa pública, mal ou bem, se purificando, entre nós. Tudo estaria no melhor dos mundos possíveis se não se pudesse claramente perceber, por trás desses episódios todos, uma deliberada diretriz política: o que a mão do gato, armada ou não do aval da Justiça, quer (ou queria desde o início) é forçar FH a desfazer-se de seus aliados de centro ou de direita, para governar apenas com a esquerda, com as teses e os homens da esquerda, de onde ele próprio veio. Em outras palavras: a mão do gato tem alma petista, compõe-se de quadros do próprio governo e do próprio PSDB, que rezam pela cartilha dos adversários da chamada governabilidade.

A crise de agora apenas reflete a projeção desse velho esquema na própria sucessão presidencial. Roseana ameaçou Lula (e Serra) talvez cedo demais, mas é claro que o seu tão óbvio telhado de vidro não escaparia para sempre ao exame e ao escrutínio públicos. Em verdade, o que parece dar razão à tolerância e à isenção do presidente FH, diante de episódios como os que têm marcado seu governo, é a própria evolução profunda da coisa política no país e até mesmo o papel que nela desempenham o petismo e sua mão de gato.

O próprio PT abandona a casca da origem revolucionária e, cada vez mais, se torna representante do moralismo e do senso de justiça de uma classe média e de um funcionalismo emergentes; de fato uma espécie de nova UDN, incômoda e talvez imprópria ou inconveniente no governo, mas na verdade fecunda e essencial como parte do jogo político. Esperemos que dê certo…

O custo da tolerância presidencial é um forte desgaste na autoridade pessoal e pública do presidente. Mas, nem tudo são espinhos entre os tucanos. Em São Paulo, por exemplo, não há como não aplaudir a firmeza e a coragem do governador Alckmin em sua guerra contra o crime que assola nossas cidades. Bom seria se, em outubro, pudéssemos contar, também no plano federal, com homens limpos e decididos como ele."

 

"Há um cheiro de México no ar", copyright Folha de S. Paulo, 6/03/02

"Houve uma violação dos direitos de Roseana Sarney e Jorge Murad no processo de apreensão de documentos do escritório da firma em que são sócios. Violação tamanha que deve levar as pessoas a pensarem se o tucanato não está mexicanizando o Brasil. Por mexicanização entende-se a formação de um bloco político que, pela predação dos adversários, transforma-se em única alternativa de poder.

Houve violação dos direitos do casal Murad-Sarney porque o material, apreendido por conta de um processo que corre em segredo de Justiça, foi sorrateira e seletivamente divulgado. A juíza de Palmas fez muito bem em mandar recolher a papelada das firmas suspeitas do saque na Sudam. Fez bem o juiz federal que autorizou a apreensão e cumpriram seu dever os policiais que a executaram.

Se o processo está sob sigilo, como se explica que em questão de horas tenha começado a vazar o acervo do escritório? (Havia R$ 1,3 milhão -em espécie- na empresa, ervanário que o casal Murad-Sarney dirá de onde veio e para onde ia.) Argumente-se que vazou porque as notícias vazam e é bom que assim seja.

O problema é que o vazamento continuou. A cada dia uma gota. Tudo bem, as coisas vazam aos poucos.

Se um episódio semelhante tivesse acontecido com a Polícia Federal americana, ou o seu diretor suspendia os agentes que participaram da apreensão, até a conclusão de uma sindicância destinada a apurar a quebra do sigilo judicial, ou o ministro da Justiça, no dia seguinte, afastava os agentes e o chefe do FBI.

No final de semana, o vazamento já havia inundado o país. E só na segunda-feira o ministro da Justiça solicitou a sindicância.

Já se fez coisa parecida em 1995, com uma pasta cor-de-rosa onde estava a contabilidade política do falecido Banco Econômico. Começou a vazar seletivamente, mas seu conteúdo explodiu. A pasta foi brindada com solene esquecimento, com a ajuda da banda pefelê do governo.

Quando o governo demora a tomar providências (ou mesmo a mostrar curiosidade) para identificar a fonte dos vazamentos, fornece um sinal de que gostou da novela. Mais: o governo sabia que o inquérito da Sudam continha carga para os ombros de Roseana Sarney. Repetindo: sabia. Pode-se argumentar que o fato de saber tem pouca relevância, visto que não podia parar a investigação nem apressá-la (coisa que não há vestígio indicativo de que tenha feito).

O tucanato está mexicanizando o Brasil pelo seguinte:

1) Quebrou a tradição republicana criando o instituto da reeleição. Fez isso com votos de parlamentares documentadamente comprados.

2) Com a ajuda do que dispunha de melhor no PMDB, esterilizou a candidatura do ex-presidente Itamar Franco. Vale lembrar que um dos amigos do Planalto chegou a se referir a Itamar em termos que a educação não permite transcrever. Dele disse o ex-presidente: ?É um nome-símbolo da corrupção no país?. Seu nome é Jader Barbalho. Conhecendo sua folha de serviços prestados à Sudam, a coligação tucano-pefelê levou-o à presidência do Senado.

3) A banda mexicana reelegeu FFHH à custa da ruína econômica do país, pela manutenção de um regime de populismo cambial (o dólar de R$ 1,20) que foi abandonado dois meses depois da eleição.

4) O vazamento deliberado, sistemático e impune do papelório do casal Murad-Sarney sugere o estímulo à retirada da candidatura (de vento) da governadora do Maranhão à Presidência da República, para benefício do senador José Serra. Não foi Serra quem aconselhou o casal a entrar nos negócios que estão sendo investigados nem é ele quem tem R$ 1,3 milhão para sair por aí botando-os nos escritórios dos outros. Ele pode ser destinatário do benefício, mas é desonesta a lógica que lhe atribui a origem do malefício.

5) Esse processo de mexicanização inclui a contenção da candidatura de Itamar Franco, o sumiço do apoio do PTB a Ciro Gomes. Institui-se assim um bloco de poder tão eterno quanto eterna venha a ser a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva a derrotado de segundo turno. Como diria FFHH, é uma mexicanização com uma pitada de candomblé.

É um modelo engenhoso para quem quer ficar 20 anos no poder, como dizia o ministro Sérgio Motta. O lastimável é que o receituário dessas macumbas tenha entrado no campo da violação dos direitos individuais dos adversários políticos (de novo: a violação está no vazamento e na sua impunidade, não na apreensão).

Quem olha a política brasileira pode achar que José Serra virou uma espécie de passageiro do Expresso do Oriente. Se amanhã ele aparecer apunhalado no seu camarote, será uma bondade dizer que os suspeitos serão só 12. O problema é que, pelo andar do trem, corre-se o risco de ele chegar a Istambul, descer do vagão, chamar um táxi e ir para o hotel. E os outros 12 passageiros?

Eis aí um desfecho que Agatha Christie não imaginou."