Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Ficção e reportagem em brasa viva

BAO CHI, BAO CHI

Deonísio da Silva (*)

Luís Edgar de Andrade lançou um de nossos romances mais ousados, sem nenhum minimalismo, retomando a tradição de que o romance é o gênero literário por excelência para expressar os grandes cenários diante dos quais se desenvolve A verdadeira vida. A entrevista que concedeu a Luiz Egypto [edição 172 deste Observatório, remissão abaixo] oferece matéria para muitos desdobramentos.

Bao Chi, Bao Chi, que significa "somos jornalistas, somos jornalistas", tem um título que não ajuda muito e pode dificultar a aproximação dos leitores. É bem escolhido, porém, o subtítulo: "Um romance da guerra do Vietnam". É necessário dar o prefixo e entrar no ar imediatamente para que o leitor identifique a estação que acabou de sintonizar. E é o subtítulo que faz isso.

Principalmente a imprensa e a universidade precisam dar mais atenção a esse romance, marcado sobretudo pela clareza e o vigor da linguagem. Está em seus primeiros passos e há tempo de chamar a atenção como faziam os antigos críticos: romancista ao sul, poeta a sudeste, ensaísta ao norte. Cearense que mora há muitos anos no Rio, Luís Edgar de Andrade escolheu para seu narrador o ponto de vista de um correspondente de guerra no conflagrado Vietnã dos anos 60. Bao Chi, Bao Chi faz dele um romancista de valor entre nossos jornalistas e precisamos celebrar este casamento perfeito entre jornalismo e literatura, entre ficção inventiva e fiel reportagem, pois imprensa e universidade aparecem com freqüência enredadas num triste conluio, numa choradeira de velório que nos impede de ver o novo. Sobram rabecões para os funerais literários na mesma medida em que nos faltam parteiros. A mortalidade infantil é alta entre os nascituros da República das Letras.

E no entanto faz tempo que dublês de jornalistas e escritores formam, quando bem combinados os dois ofícios, uma via de mão dupla em que a pressa do jornalista obtém a concisão e a rapidez que a ficção não pode aceitar de pronto, mas às quais responde com muito mais laudas, devidamente acompanhadas de reflexões mais demoradas, imunes aos desacertos e ao tormento da pressa. Exemplos não faltam nos precursores, mas os nomes mais óbvios vão de Eça de Queiroz a Ernest Hemingway, mostrando que o batente de jornalista pode fertilizar as nossas letras e em contrapartida receber no caudaloso rio que é um jornal diário ou uma publicação semanal os pequenos afluentes que lhe trazem os escritores em textos curtos, de que são exemplos as crônicas. Dias há, para ilustrar a tese, que nos diários alguns dos poucos refrigérios são as crônicas de nossos escritores, com os notáveis exemplos de Ignácio de Loyola Brandão em O Estado de S.Paulo e de Carlos Heitor Cony, na Folha de S.Paulo.

Outra ocupação, longe de atrapalhar o romancista, contribui para aperfeiçoar aquelas desejáveis ligações perigosas que ele tem com a sociedade epocal. O Visconde de Taunnay não era jornalista, era engenheiro militar, e legou-nos ao lado do esplendor da prosa romanesca de Inocência a precisão dos relatos de A Retirada da Laguna, mas não conseguiu mesclar os dois estilos ao narrar um dos episódios mais polêmicos e mais trágicos da Guerra do Paraguai. O caso de Euclides da Cunha em Canudos é diferente, porque nele não vingou o talento do ficcionista, ainda que seja exemplo eterno nas narrativas documentais.

Fogo escondido

A ficção quando bem manejada oferece uma saudável irresponsabilidade. É o caso de Luís Edgar de Andrade. Não está mais cobrindo a Guerra do Vietnã, não precisa mais alertar ninguém de que é jornalista. E pode mostrar a face mais verdadeira da guerra, porque a ficção é a história clandestina das sociedades, as versões desautorizadas, livres de qualquer censura ou fronteiras.

Ainda na abertura somos metidos in media res, assim sem mais nem menos, no meio da guerra, em "Visto para o inferno". Aliás, nenhum reparo aos títulos dos trinta capítulos, todos instigantes. E somos convocados a acompanhar Miguel em seu périplo extraordinário como correspondente de guerra, deixando o Brasil do general Costa e Silva e rumando para o Vietnã do general Van Thieu. A paixão por Glória será o fio vermelho que atravessará toda a narrativa. Nos momentos decisivos, prevalece o olhar armado do jornalista, de que é exemplo a manchete antevista para dar conta do sumiço da amada: "Moça brasileira desaparece no bairro chinês de Saigon".

Embora estreante, o excelente desempenho do autor talvez possa ser avaliado por meio de um alter ego, quando revela o norte que seguiu: "Ao reler o manuscrito, suprima os advérbios e adjetivos supérfluos. Substitua as palavras abstratas por substantivos concretos e verbos de ação. Gosto de seu estilo seco, sem firulas. Mas, atenção: ficção e reportagem são coisas bem distintas".

Luís Edgar de Andrade tem um domínio técnico da arte de narrar, evidenciado na habilidade com que lida com as palavras, suas confidentes e amigas. Segue o conselho de Wittgenstein: "Aquilo que não se pode dizer deve-se calar". Com efeito, são elas as ferramentas com que expressa homens que lutam, muitos dos quais sem saber por quê, à semelhança de um pintor encarregado de registrar a guerra antes da fotografia. Está interessado, mais do que no factual, nas transcendências que ele oculta. Não é difícil rastrear seu aprendizado longo e difícil que, na escola média, incluiu aulas de latim, num tempo em que nossos professores jamais formariam alguém capaz de confundir crucificação com enforcamento de Jesus, como já ocorreu num grande jornal brasileiro.

Os mais íntimos com aqueles anos e personagens poderão fazer com que a memória brote durante a leitura. Estes saberão que personagens como o heróico e trágico José Airton ? "sem a perna no hospital de campanha" ? foram inspirados em profissionais que conhecemos, cujos feitos contribuíram para mostrar a generosidade do brasileiro, a sua coragem diante do perigo. Sim, o jornalismo brasileiro tem páginas gloriosas e algumas delas foram escritas em territórios hostis, em campos dominados pelo inimigo, aqui e no exterior.

A recusa ao minimalismo, porém, é apenas uma questão de método e projeto. O olhar atento vê ao longe, mas sem deixar de observar os detalhes que permitem discernir as complexas movimentações da realidade, tornada ficção para melhor entendimento de seu processo.

O narrador de Bao Chi, Bao Chi é o oposto do militar americano que desce do céu de helicóptero para frustrar os jornalistas: "O que ele diz, já se sabe. O que se quer saber, ele não diz".

Quando surge um escritor desse quilate é que lamentamos mais a ausência ? não em nossas universidades e em outras instituições culturais de peso, que os há aqui e ali, mas em nossa grande imprensa ? de um avaliador do peso de Harold Bloom, crítico literário e professor de literatura na Universidade de Yale, com sua conversa clara, que permite que dele discordemos ou com ele concordemos, mas a quem não podemos negar a coragem de fixar as fronteiras que utilizou para constituir o seu cânone, como mostrou no trecho que a revista Veja (n? 1.754, 5/6/02, pág. 37) selecionou esta semana: "Toni Morrison é uma pessoa maravilhosa que se proclamou feminista, afro-americana e marxista. Não sei em que consiste isso, mas seus três últimos livros são pura m…"

Ao contrário da escritora americana, Luís Edgar de Andrade é um grande jornalista cujo romance de estréia arromba nosso cânone literário, fazendo por merecer sua entrada para a República das Letras.

Há 87 entradas com o verbete "Andrade" na Enciclopédia de Literatura Brasileira, do MEC, Biblioteca Nacional e Departamento Nacional do Livro (São Paulo, Editora Global, 2001) ? a mais completa, ainda que algumas de suas falhas sejam irritantes. A Editora Objetiva, com o louvável mérito de ter revelado um grande autor, obriga todos a atualizarem os registros. Surgiu o 88? Andrade e convém tomar conhecimento de seu romance.

Para os leitores, o olhar é outro. Estão diante de uma prosador de inúmeros recursos criadores e de um romance que pode ser uma boa companhia e um formidável aparato para entender o mundo em que vivemos. O autor obteve o êxito que mais pode agradar ao leitor: reacender a paixão do conhecimento, mediante o sopro criador do fogo sobre conhecidas cinzas, debaixo das quais, entretanto, quentes ainda, ardem esquecidas brasas.

(*) Escritor e doutor em literatura brasileira pela USP; seu romance mais recente é Os Guerreiros do Campo

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