Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Filé sem tempero vira sola de sapato

TELEJORNALISMO EM CLOSE

Paulo José Cunha (*)

Um bom cozinheiro, mesmo apressado, é capaz de fazer um trivial variado com os poucos recursos de que disponha. Mesmo assim deixará no semblante dos comensais aquele ar de beatitude comum a quem consome uma refeição, no mínimo, honesta. Um bom cozinheiro sabe que, se dispuser de mais tempo e mais recursos, será capaz de produzir uma refeição ainda mais apetitosa, variada, surpreendente. Mas, em momento algum, um bom cozinheiro culpará a pressa pela sensaboria do prato, pela falta de graça da salada, por ter transformado um filé mignon numa sola de sapato.

Da mesma forma, a pressa das redações não justifica a vulgaridade nem a falta de tempero dos textos jornalísticos. Até porque, se todos trabalham na pressão do tempo, por que diabos alguns conseguem produzir textos corretos e bem dosados de criatividade e harmonia, e outros ? a maioria ? servem ao indefeso telespectador um texto frio e seco, sem sal nem outro tempero capaz de torná-lo um pouco mais atraente?

O texto de boa parte do telejornalismo que a gente tem ouvido por aí é tão burocrático, frio e coalhado de lugares-comuns que a gente até desconfia que os autores querem punir duramente o pobre do telespectador. Mas, que diabo, até que ele tem feito sua parte: todo dia o telespectador compra a lourinha anunciada nos intervalos comerciais, mesmo sabendo que nunca ela vem acompanhada da lourona arrepiante do anúncio; todo dia, no mesmo horário, está ali, sentadinho e atento ao que os repórteres e apresentadores vão dizer; e, quando pode, o telespectador até pede autógrafos aos seus repórteres e apresentadores preferidos. Então, pelos santos óleos, pelas cinco chagas de Cristo, por tudo quanto é sagrado ? que crime o desgraçado da poltrona cometeu para merecer tratamento tão desumano?

Televisão é um troço feito com palavras. Isso mesmo: palavras. As imagens são adicionais e, em grande parte das produções, apenas ilustrativas. Televisão devia até se chamar teleaudiovisão, porque a palavra vem em primeiro lugar na tarefa de transmitir informação. Costumo fazer com meus alunos um teste simples. Divido a turma em dois grupos. Submeto a um deles um telejornal mostrando só o vídeo. Ao outro, só mostro o áudio. No fim da experiência, o grupo que só ouviu terá captado de 80% a 90% do conteúdo, enquanto o que só viu as imagens ficou chupando o dedo, e meio desconfiado de que alguma coisa anda acontecendo pros lados de Bagdá.

Telespectador, esse ingrato

Ora, se o texto é assim tão importante, deveria merecer tratamento compatível, para que esta refeição diária do telespectador não se transforme num martírio. Uma das mais freqüentes queixas dos presidiários é quanto à má qualidade da comida das prisões que, de tão intragável, transforma-se em pena adicional. De certa forma, nosso telespectador vem sendo forçado a engolir uns bifes que provocariam rebelião em Bangu 1.

Nas conversas com os colegas igualmente preocupados com o problema, tenho identificado algumas explicações comuns para essa queda na qualidade dos textos. A primeira é que as redações, por economia, estão cheias de repórteres bonitinhos e bonitinhas, mas sempre muito jovens e, portanto, sem muita familiaridade com a língua e suas nuances. Faltam mais p. velhas, referências fundamentais para os novatos. Em segundo lugar, aponta-se a decadência da qualidade das escolas de ensino básico e médio, onde se deveria aprender a escrever. Lá pelo fim, alguém se lembra de falar que as faculdades de Comunicação, de maneira geral, não se preocupam muito com a questão do texto, por entender que esta etapa do aprendizado não lhes cabe por serem obrigadas a oferecer outros conteúdos tão ou mais importantes. Não fico com uma nem outra explicação. Se juntar tudo isso e mais um certo pacto da mediocridade ? você finge que escreve direito e eu finjo que acredito ? e a gente chega perto da verdade.

O certo é que o texto telejornalístico, salvo exceções muito bem-vindas, é quase sempre um desfilar de fórmulas que, de tão repetidas, parecem comida requentada. Pegue um papel e uma caneta e anote, só na edição de hoje do seu telejornal preferido, quantas vezes você ouviu expressões como “vale a pena conferir” ou “para se ter uma idéia”. Sem falar na estrutura das matérias, que parece saída de uma linha de montagem. Pouca gente ousa, pouca gente arrisca, pouca gente erra. Nem que seja para melhor. Como o caminho cheio de marcas de pneus é mais cômodo e seguro, ninguém inventa outro. Entrar no mato, então, pra ver se acha alguma coisa diferente, uma bela cachoeira, nem pensar. Melhor ficar no banho de chuveiro mesmo.

E ainda tem gente que reclama quando a audiência dos telejornais começa a cair. Só pode ser culpa dos telespectadores, esses ingratos.

(*) Jornalista, pesquisador, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Para ter acesso à coleção de TJ em Close e ler as mensagens dos leitores acesse <http://www.tjemclose.hpg.com.br>. Para assinar a coluna escreva para <pjcunha@unb.br>