Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Florence Amalou e Tewfik Hakem

GUERRA NA MÍDIA

"Al-Jazira depende da CNN para ter imagens do Afeganistão", copyright Le Monde / UOL, 16/11/01

"Durante o bombardeio da capital afegã na última segunda-feira à noite, foi atingido o escritório da rede de televisão em língua árabe Al-Jazira. Na noite de segunda para terça-feira o contato entre a sede da redação em Doha (Qatar) e o correspondente permanente em Cabul, Teyssir Allouni, foi interrompido. ?Os americanos bombardearam nossa sucursal?, explicaram em Doha. Segundo a Repórteres Sem Fronteiras, ?aviões de caça americanos teriam atingido as instalações da televisão?. Os prejuízos seriam apenas materiais.

Com o avanço das tropas da Aliança do Norte, os dois correspondentes da Al-Jazira na zona Taleban abandonaram precipitadamente seu posto em Cabul na segunda-feira e depois em Kandahar na terça. Situação inédita, a rede depende momentaneamente dos correspondentes da americana CNN para suas imagens de Cabul. Desde terça-feira a Al-Jazira não tem mais enviados especiais em condições de trabalhar no Afeganistão. O jornalista sírio Teyssir Allouni, baseado há dois anos em Cabul, finalmente foi contatado por telefone pela Al-Jazira.

Ele ainda se encontrava na quarta-feira no Afeganistão, perto da fronteira paquistanesa, e estaria são e salvo depois de ter sido interceptado na estrada por ?jovens que, aproveitando o pânico e o fato de ele ser árabe?, lhe roubaram o dinheiro e o carro. Chefes de tribos pashtun o teriam socorrido em uma aldeia a leste de Cabul. Por sua vez, Youssef Echoulli, o repórter de origem palestina enviado especial a Kandahar desde o início dos ataques americanos, estaria em Quetta, no norte do Paquistão.

Equipe a caminho

A antiga equipe recua, incapaz de continuar sem riscos seu trabalho no novo contexto político-militar. Outra equipe da Al-Jazira está a caminho. Na quarta-feira de manhã, três equipes de televisão deixaram a capital do Qatar com destino ao Afeganistão via Islamabad, no Paquistão. Membros permanentes da redação, dois jornalistas do norte da África e um palestino deveriam chegar na quinta ao Paquistão, onde esperam obter autorização para trabalhar no Afeganistão.

Mas no país as condições de trabalho dos jornalistas árabes hoje são muito ?penosas?. Alguns estimam que ?no estado em que se encontram os afegãos, aquecidos pela propaganda americana, nenhum árabe pode sair às ruas controladas pela Aliança do Norte sem correr sérios riscos?. Suspeitos do pior depois do assassinato do comandante Massud, os jornalistas árabes, entre eles os da Al-Jazira, jamais puderam trabalhar nos territórios controlados pela Aliança do Norte.

Há cerca de duas semanas o correspondente da Al-Jazira em Moscou tentou mais ganhar a confiança dos chefes do norte, mas foi recusado. Por enquanto a Al-Jazira está limitada às entrevistas telefônicas com os opositores dos Taleban. Assim a relação de forças entre a Al-Jazira e a CNN se inverteu brutalmente. Desde 11 de setembro a rede americana de informações perdeu o controle exclusivo das imagens e dependia das enviadas pelos correspondentes da Al-Jazira para informar os telespectadores de língua inglesa sobre os acontecimentos nas zonas controladas pelos Taleban.

Ajudada pela nova situação militar ela acaba de retomar sua posição na terça-feira. Em um contexto de cooperação, mais que de concorrência acirrada. A CNN utiliza o link de satélite abandonado pela Al-Jazira em Cabul, mas a rede fundada por Ted Turner tornou-se o principal recurso da Al-Jazira no Afeganistão, com imagens de agências, fornece imagens e análises à rede do Qatar graças a seus 32 enviados especiais ao Afeganistão. No dia da entrada da Aliança em Cabul, o britânico Matthew Chance da CNN respondia à Al-Jazira e comentava as imagens para a rede.

Na quarta-feira foi a vez de Christiane Amanpour, uma estrela da CNN, fornecer informação e análises sobre a situação na capital ?libertada?. Um acordo de colaboração recíproca foi ?reforçado? depois de 11 de setembro, confirma a CNN. Na sucursal de Londres lembram que a rede americana até então havia ?amplamente? aproveitado as imagens da Al-Jazira, que foram ?enormemente úteis?.

Como então imagens ?exclusivas? da Al-Jazira continuam chegando dos territórios controlados pelos Taleban às redes ocidentais? Essas imagens com a marca ?exclusivo Al-Jazira? ainda divulgadas na quarta-feira pela CNN, mas também na Europa -alguns planos da cidade tranqüila e uma minimanifestação de Taleban contra os Estados Unidos e seus aliados-, teriam sido gravadas por meio de um videofone por satélite de manhã em Kandahar. Um câmera sudanês, ?sob a proteção dos Taleban? segundo alguns, as teria enviado. Os Talebans filmaram a si mesmos utilizando o material deixado por um enviado especial, afirmam outros. Até chegada da nova equipe a Al-Jazira está fragilizada.

A concorrência é sem precedentes desde o início do conflito. A BBC World e Abu Dabi TV acabavam de instalar uma sucursal em Cabul. Sem contar os problemas da rede do Qatar no Ocidente. Na quarta-feira à noite um de seus correspondentes em Washington foi detido pelo FBI quando ia cobrir a conferência Pútin-Bush. O motorista de seu carro alugado alertou as autoridades ao verificar que o cartão de crédito estava em nome da Al-Jazira. ?Para eles Al-Jazira é o Afeganistão, Taleban, Osama Bin Laden, qualquer coisa?, explicou o jornalista Mohamed Al-Ali, libertado duas horas depois de receber o pedido de desculpas do FBI. Desde segunda-feira uma página foi virada na batalha da informação. Mas a direção da rede do Qatar já indica que pretende ?voltar com força ao Afeganistão dos anti-Taleban?. (Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves)"

 

"O novo poder da opinião pública árabe", copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 18/11/01

"A rua árabe: a frase batida evoca homens amontoados em torno de empoeiradas mesas de bar discutindo os acontecimentos do dia com justo sarcasmo entre baforadas tiradas do hookah – subitamente capazes, no entanto, de se transformar numa turba; poderosos o bastante para derrubar governos.

A idéia da rua – um conjunto coesivo de opinião pública e valores compartilhados – talvez tenha ressoado mais fortemente no Egito, no auge de Gamal Abdel Nasser no final dos anos 50 e meados dos anos 60. Naquela época, governos eram efetivamente derrubados (mas principalmente por golpe militar) ou postos sob risco à medida que o nacionalismo árabe varria o Oriente Médio. Desde então, o sentimento popular de rua tem se revezado entre nacionalista, socialista, ba?athista, palestino e agora, de forma crescente, islâmico, enquanto o mundo árabe procura, em vão, ver-se livre de um mal-estar de longa data.

Hoje, praticamente todos os governos da região estão no poder há décadas, devendo-se sua estabilidade menos ao endosso dos governados do que à repressão. Nesse mundo profundamente não-democrático, os padrões ocidentais de aferição da opinião pública simplesmente não se aplicam.

Para alguns, há muito ?a rua? parece ser uma espécie de mito – incapaz de transformar suas aspirações ou descontentamento em ação e alimentado por uma imprensa ferreamente controlada pelo próprio governo. Uma imprensa que com grande freqüência apresentava uma mixórdia de conspirações distorcidas para justificar as falhas dos regimes.

Mas com os ataques de 11 de setembro aos Estados Unidos, a idéia da rua pode estar ganhando uma nova importância. A rua, outrora praticamente desprovida de poder, torna-se uma verdadeira força, exposta a mais fontes de informação, as quais os governos repressivos não conseguem controlar, mais difícil de conter quando inflamada e mais suscetível ao Islã radical.

E é justamente nessa rua árabe – ou, melhor, islâmica – que o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, deve lutar em sua guerra contra Osama bin Laden e seus terroristas, um campo de batalha da opinião pública que pode acabar sendo mais importante do que as montanhas e os desertos do Afeganistão.

E não se trata de uma guerra meramente entre Bush e Bin Laden; líderes de países, do Egito ao Paquistão, também precisam ponderar como conquistar e conter a rua – até que ponto podem reprimir manifestações de ódio contra os Estados Unidos quando seus países, ainda que condicionalmente, são aliados dos americanos na guerra contra o terrorismo.

E nessa batalha, Bin Laden tem uma vantagem bélica – o vocabulário com que define o conflito. Porque o que ele procura fazer é mostrar essa batalha como sendo um choque cataclísmico de civilizações: o Islã contra o Ocidente, o fiel contra o infiel.

Conforme Bin Laden demonstrou em seus videoteipes – citando as escrituras islâmicas, seu fuzil encostado numa rocha a seu lado, cada centímetro seu representando a figura austera do guerreiro santo -, ele é altamente competente em usar a tecnologia moderna para transformar a força de sua mensagem medieval.

?Houve uma grande mudança que levou as ruas a se tornarem um fator extremamente importante?, disse Fawaz Gerges, professor de estudos do Oriente Médio da Faculdade Sarah Lawrence. ?Foram a emergência da televisão por satélite e a privatização da mídia que mudaram as coisas radicalmente.

Os governantes árabes deixaram de ter o monopólio da informação, eles não conseguem mais moldar a opinião pública. Particularmente no caso da Al-Jazira, houve uma explosão de informação que definiu a natureza do debate, impondo limites a quase todos os governos árabes.? Ele acrescentou que ?a chamada rua árabe é uma fantasia que virou realidade?. Não é a primeira vez que a tecnologia da comunicação transforma a opinião pública.

Na revolução iraniana de 1979, os discursos do aiatolá Ruhollah Khomeini foram feitos por telefone a partir de seu exílio na França, gravados e depois retransmitidos em mesquitas de todo o país nas orações das sextas-feiras. O que se seguiu foi uma revolução popular genuína que surpreendeu toda uma região. Mas havia, na época, razões para se pensar que o Irã poderia ser único. Lá, as tradições muçulmanas xiitas – incluindo o papel político dos membros do clero como adversários do governo e defensores do nacionalismo, juntamente com uma reverência especial ao martírio – possibilitaram aos mulás desafiar o xá.

A maioria dos outros países islâmicos é sunita, e pelo menos em todo o mundo árabe as elites repressivas têm tido mais sucesso em controlar a opinião pública em tempos de crise. Ainda assim, a força da política islâmica continua a crescer em toda a região. Nos dias de hoje, projetos sociais liderados por fundamentalistas costumam oferecer uma rede de serviços sociais melhor que a de governos.

Embora a sabedoria convencional tenha sustentado por anos que os governantes árabes podiam manipular a opinião pública a exemplo do que fez Nasser, um novo padrão pareceu surgir com a eclosão da segunda Intifada palestina no ano passado. Essa rebelião voltou-se não somente contra Israel e o fracasso dos Acordos de Oslo, mas também contra a própria Autoridade Palestina por suas falsas promessas, incompetência e corrupção. Embora os palestinos não o tenham dito publicamente, a força emergente da rebelião foi um desafio aberto à liderança estabelecida, uma força da qual se beneficiam não apenas ideólogos islâmicos, mas também militantes das comunidades locais.

Os líderes da Jordânia e do Egito têm sido ambivalentes em sua reação, estimulando o apoio à causa palestina, mas também contendo demonstrações pró-Palestina quando adquiriam proporções muito grandes.

Nisso, eles têm seguido os velhos padrões de ao mesmo tempo cooptar e controlar as ruas. Mas o poder de Arafat de controlar suas próprias ruas é muito menos claro; até que ponto ele pode reprimir os radicais entre seu próprio povo, mesmo em face das exigências americanas e israelenses, sem ser derrubado, é uma pergunta que continua sem resposta.

Hoje, o desafio representado por bin Laden configura um pesadelo semelhante para o Paquistão: a perspectiva de que uma militância islâmica – uma militância que os líderes paquistaneses têm alimentado como base de legitimidade por duas décadas, e que seu serviço de informações tem subsidiado no Afeganistão e na Caxemira – possa igualmente sair do controle porque a opinião pública vem sendo inflamada por elementos que estão além do controle do regime.

Farid el-Khazen, professor de ciência política da Universidade Americana de Beirute,disse que ?a rua está cada vez mais islamizada?.

O fenômeno está lá. A rua tem seu papel no poder. A exemplo de Gerges, Shibley Telhami, professor de ciência de governo da Universidade de Maryland, atribui grande parte da mudança às comunicações de massa globais.

?Na última década houve uma revolução da mídia?, disse ele. ?A televisão por satélite, a mídia regional, são regidas pelo mercado. E o resultado é que elas estão fornecendo mais daquilo que o público quer, estão refletindo a opinião pública.? E isso, disse ele, representa um desafio particularmente difícil para a administração Bush.

?Seria muito difícil um representante americano ir a uma rádio do Oriente Médio ou à Al-Jazira e dizer algo que não obtivesse a reação inversa da pretendida?, acrescentou. ?Qualquer representante ficará atento ao que o New York Times ou o Washington Post noticiará dele.Será inevitavelmente contraproducente. Eles podem gastar milhões de dólares, usando o toque hollywoodiano, mas estará muito distante do entendimento daquilo que está em questão.? Veja, por exemplo, o uso que Bin Laden subitamente está fazendo da luta entre israelenses e palestinos e do apoio dos Estados Unidos a Israel – o único ponto de convergência com apelo universal em todo o mundo árabe.

Analisando um videoteipe de recrutamento, o professor Gerges chamou a atenção para a concentração de Bin Laden na questão palestina, em imagens de uma criança aterrorizada e baleada nos braços do pai e de mulheres sendo agredidas. Em seguida, vêm as mortes de crianças iraquianas atribuídas a sanções americanas. Tais imagens preparam o terreno para o conjunto seguinte de imagens: de civis afegãos mortos em conseqüência dos bombardeios americanos. Ao plantar tais sementes de ódio de modo a fazer as emoções penderem para sua própria causa, Bin Laden mostra-se excepcionalmente competente em apelar para o sentimento das ruas. O provável próximo passo?

Fazer tal sentimento virar-se contra os próprios regimes – particularmente da Arábia Saudita, do Paquistão e do Egito -, cuja cooperação é fundamental para a coalizão antiterrorismo e os quais Gerges e outros vêem como sendo o verdadeiro alvo de Bin Laden."