Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Flávio Aguiar

GOVERNO LULA

“Uma luz no fim do túnel”, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 25/06/03

“Pareceu que tanto o discurso do governo como a retórica da mídia cederam espaço nas manchetes para outra coisa que não as reformas e os juros. Foram os minutos dados ao anúncio do plano para agricultura familiar.

Ora vivas! Algo se mexeu! Afinal durante alguns poucos minutos pareceu que tanto o discurso do governo como a retórica da mídia (assim, em conjunto) cederam um pouco de espaço nas manchetes para outra coisa que não a reforma de previdência, os privilégios do funcionalismo, a administração da taxa de juros e de como é impressionante a recepção dada pelo governo Bush ao nosso presidente. (Até o fato de que a assessora Condoleezza Rice ficou tomando notas a reunião inteira foi citado como índice da importância dada ao evento pelo povo da Casa Branca!).

Refiro-me aos minutos, com direito até a entrevista, que o ministro Miguel Rossetto ganhou para expor as novas facilidades na obtenção do crédito rural. O anúncio ainda foi tímido: tratou-se sobretudo da diminuição do número de páginas do formulário a ser preenchido e da criação de um cartão de identificação válido por seis anos. Mas nem por isso o fato é de somenos. De coisas desse tipo depende a viabilidade da reforma agrária, a revitalização dos assentamentos, a valorização dos acampamentos do MST, tratados à míngua no governo FHC, e a formulação de uma política alimentar consistente para o Brasil.

O assunto é da maior importância, de qualquer ângulo que seja abordado. Duas semanas atrás levei um grupo de professores universitários do Canadá e dos Estados Unidos a um acampamento e a um assentamento do MST em São Paulo. O acampamento ficava na própria Grande São Paulo, a noroeste. A vida lá, embora ordeira, é muito precária, como em todos os acampamentos do MST. Padecem também com a hostilidade de alguns vizinhos, embora tenham a solidariedade de outros.

Um dos professores perguntou-me qual era a diferença entre aquele acampamento e uma favela. Para começar falando de coisas bem sensíveis, mostrei-lhe e ausência de ?gatos?, isto é, aquelas ligações ilegais dos fios de força que cortavam o acampamento. Depois falei da ausência de narcotráfico, da presença de escolas, da organização, da solidariedade, do cuidado com as crianças, os velhos e os doentes, e dos demais valores que faziam a diferença.

Expliquei também que aquele acampamento (e isso é muito significativo no caso de São Paulo) era formado por pessoas que desejavam sair das grandes cidades e ir para o campo, em busca não só de um pedaço de terra mas de uma nova vida e de um futuro para seus filhos. Isto vale como um revirar a roda do tempo no Brasil, onde tradicionalmente as cidades eram vistas como focos de esperança e de uma nova vida, antes de se transformarem no pesadelo de hoje. Falamos da mística do movimento, isto é, da idéia de que os militantes não estão lutando só pela reforma agrária, mas por um novo estilo de vida para eles e para o Brasil, e falamos dos prós e dos contras disso, ajudados por entrevistas com dirigentes estaduais. Os visitantes ficaram siderados, confesso.

Discutimos também um pouco da história do movimento. Curiosamente, ele nasceu numa região do Rio Grande do Sul onde, trezentos anos atrás os jesuítas e os guaranis criaram comunidades agrárias que, em termos da época, poderiam ser descritas como cooperativadas, e que depois foram destruídas pelos portugueses e pelos espanhóis.

Sabe-se lá por que alquimia da história o movimento das ocupações, daqueles que não queriam mais migrar para as cidades, nasceu justamente lá. Como no caso do MST de hoje, as Missões, como ficaram conhecidas as antigas comunidades, despertaram paixões desabridas: ninguém fica impassível diante delas. Todos, desde os enciclopedistas franceses, os árcades mineiros, até os historiadores e escritores de hoje tomam pontos de vista apaixonados, satanizando as missões ou louvando-as como uma das experiências mais avançadas que se fizeram nestas Américas de todas as tragédias e todas as conquistas.

O destino do movimento de hoje e de sua empreitada de fato, em grande parte, está nas mãos do governo e de sua condição de construir a realidade e a viabilidade dos assentamentos. A oposição aos assentamentos vem de duas vertentes. A primeira é a truculência dos fazendeiros, dos que reclamam que ?deve-se cumprir a lei? para desocupar as terras mas ao mesmo tempo empregam pistoleiros armados com carabinas e escopetas exclusivas das forças armadas. A outra, mais sutil, vem da descrença no tipo de produção que os assentamentos podem ter. Apostam seus partidários na idéia de que uma produção baseada na pequena propriedade familiar está condenada diante das exigências de vastas áreas de plantio e do controle de predadores através da transgenia e de suas conseqüências, como o controle das sementes e dos agrotóxicos convenientes.

Ocorre que a preocupação com a segurança alimentar vem ganhando espaço em todo o Brasil, assim como no mundo. Os novos assentamentos vêm descobrindo um mercado potencial nas cidades em que mais e mais cidadãos se preocupam em obter alimentação sadia, com a segurança de não se ingerir coisas exóticas e não declaradas. Os assentamentos têm portanto um potencial interessante e um canal de diálogo com o conjunto da sociedade que contrariam interesses e tendências muito encastelados em seus feudos de produção e mercado. Um dos professores contou-me que inclusive essa é uma tendência também visível e crescente nos Estados Unidos e no Canadá, a de se recorrer ao abastecimento alimentar através de plantios seguros e administrados familiarmente. Portanto, para ele, nada havia de anacrônico na proposta dos assentamentos; ao contrário, estavam de passo acertado com uma tendência presente em países mais organizados do que o nosso.

Por isso o anúncio e a disposição por parte do governo de começar a tirar da gaveta políticas sociais consistentes, ao invés de ficar só defendendo as reformas e as políticas da agenda neoliberal, é de todo interessante. (Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.)”

“Nihil obstat”, copyright Folha de S. Paulo, 28/06/03

“Lula tem mais é que ficar quieto, como querem tantos e tantos comentaristas de televisão.

Depois do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, de Boris Casoy e de Franklin Martins, agora é a Igreja Católica que vem questionar os improvisos do presidente.

Mas, como aconteceu um dia antes com o presidente do Congresso, também o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil procurou aceitar Lula como ele é:

– Se ele está solidário com os que mais sofrem, pode pedir a ajuda de Deus.

Era d. Geraldo Majella, ontem na televisão, autorizando Lula a usar o nome de Deus -desde que não o faça ?de forma messiânica?.

Era ainda uma reação ao discurso que arrepiou alguns ministros do Supremo e parlamentares. No caso, Lula afirmou que ?só Deus? pode impedir o Brasil de ocupar seu lugar de destaque no mundo.

Mas, note bem, ontem foi só o ?nihil obstat? da Igreja Católica. Da Igreja Universal em diante, não faltam representantes de Deus para se declararem ofendidos ou não.

Em suma, é para ficar quieto.

Apesar do pitoresco da discussão ?religiosamente correta?, o presidente da CNBB saiu do encontro com Lula deixando bem claro seu apoio ao presidente. Chegou a dizer:

– Lula jamais usou o nome de Deus em vão.

Outros se dispunham, ontem, a apoiar o presidente acuado pela opinião pública.

O empresário Antônio Ermírio de Moraes, exemplo maior, falou ao vivo à rádio Bandeirantes e, ao tratar da reforma da Previdência, saiu-se com o seguinte:

– Nota dez para o presidente Lula, viu, nota dez.

E mais, ele também acha que o país ?saiu da UTI?, ainda que esteja no hospital.

Na mesma direção, também ao tratar da reforma da Previdência, o presidente da CUT, o metalúrgico Luiz Marinho, afirmou às rádios que a central não vai apoiar a greve do funcionalismo.

No Congresso dos Metalúrgicos do ABC, ao falar aos ?companheiros de 30 anos?, Lula ouvia coros emocionados de velhas campanhas.

De repente, de fontes inusitadas, outras nem tanto, foi como se surgisse um cordão de isolamento ao redor do presidente da República.

Mas as más notícias não têm fim. E os telejornais todos abriram ontem com o novo aumento do desemprego.”

***

“Quando um não quer”, copyright Folha de S. Paulo, 26/06/03

“- Quando um não quer, dois não brigam.

Era Lula, com um sorriso, garantindo que não quis ofender ninguém. Não quis, mas saiu desmarcando compromissos no Supremo e na Fiesp.

Na federação das indústrias, a decisão presidencial jogou mais lenha nas diferenças em torno da reforma tributária.

O presidente da Fiesp, Horácio Lafer Piva, já havia declarado o apoio à ?manifestação? dos empresários em Brasília. Um dia antes, no Jornal Nacional, sublinhou que a economia ?está toda parada, com índices de desemprego muito altos?.

Certo, ele também elogiou o governo que, ?preocupado com o Brasil?, eleva as metas de inflação. E não questionou toda a reforma tributária, mas certas ?fragilidades? dela.

Não importa. Lula não vai mais. Nem José Dirceu.

Num ambiente de conflito, até entre os empresários surgiram diferenças. Antônio Ermírio de Moraes não foi ao ato e criticou, dizendo que ?manifestações temos demais?. Disse ainda que dois ministros fizeram pressão contra o movimento.

Jorge Gerdau, que esteve à frente da manifestação na TV, disse que não ouviu de nenhum dos ministros qualquer solicitação contra o ato.

Lula também não foi à posse dos novos ministros no Supremo Tribunal Federal, como destacaram os telejornais.

O presidente do Supremo, Maurício Corrêa, que lidera o lobby contra a outra reforma, da Previdência, desta vez evitou qualquer discurso.

Tanto a ausência de Lula como a ausência de um discurso de Corrêa seriam explicadas depois, para bem poucos acreditarem, como respeito deles às regras e ao regimento.

Foi uma maneira de evitar que o presidente da República, que questionou o Judiciário um dia antes, e o presidente do Supremo, que respondeu com sarcasmo, tivessem que olhar um para o outro. Na televisão, sobrou para ambos.

Boris Casoy disse que Lula agora é presidente e deve tomar cuidado com o que sai falando em seus ?improvisos?. Míriam Leitão desculpou Lula (?certamente uma força de expressão?) e atacou Corrêa:

– O Judiciário não pode continuar com o que tem feito, com presidentes de tribunais que falam de seus interesses como se fossem defesa do poder.

Mas o pior foi no Congresso. José Sarney defendeu Lula, mas o líder tucano falou até mesmo em ?impeachment?.

Ato contínuo, sete deputados abandonaram o PSDB.”

***

“Virar o disco”, copyright Folha de S. Paulo, 25/06/03

“Foi um dia para Lula gastar o verbo e a imagem. Um dia em que todos voltaram a ser ?companheiros?, para o presidente petista.

De posar para as câmeras numa espreguiçadeira até esconjurar os juros ?escorchantes?, ele arriscou de tudo.

Se não é a ?fase dois?, na expressão adotada por Franklin Martins, para quem ?o objetivo Ldo governo é virar o disco?, pelo menos é o início do ?espetáculo? da fase dois.

Lula fez promessas como se estivesse em campanha. Dinheiro, para começar:

– Os companheiros que tiverem dificuldade de acesso ao dinheiro, não se façam de rogados, telefonem, briguem, xinguem, porque não queremos ver sobrar centavo.

Emprego:

– Dia 1?, o companheiro Jacques Wagner vai estar apresentando o Primeiro Emprego. E isso vai começar a mudar a cara do nosso país.

Terra:

– É um compromisso da minha vida. Já pedi um plano para a reforma agrária. E nós vamos anunciar logo, logo.

Até a transposição do rio São Francisco:

– Nós precisamos levar água. Como a gente não consegue levar na cabeça…

Sobrou para o ministro da Fazenda, que perdeu o sorriso impávido ao anunciar:

– O comitê decidiu transformar a meta…

Subiu a meta de inflação para 2004 e 2005, o que, segundo economistas, pode levar à queda dos juros. Os ?escorchantes? de que Lula falou.

Foi uma metralhadora de ?boas notícias? no crédito, na política econômica, até mesmo no meio ambiente.

Coube a José Dirceu anunciar que, depois de meses sem saber o que fazer, o governo vetou os transgênicos:

– A lei será cumprida, é a determinação do presidente.

Foi agrado para todo lado. No dizer de Lula, ?às vezes as pessoas que reclamam ajudam mais do que as pessoas que não reclamam?.

Mais um pouco e ele volta a chamar Heloísa Helena de ?companheira?.

Garotinho atacou de novo o governo de São Paulo, suposta origem das drogas e armas do Rio, atacou o governo federal ?entreguista? etc.

Mas aí vêm os telejornais e gritam que ?uma granada de uso exclusivo das Forças Armadas explodiu no bairro de Anchieta?. E mais:

– Seis pessoas ficaram gravemente feridas. Uma teve um olho perfurado. Outra teve uma das mãos decepada.”

“A língua do poder”, copyright O Globo, 29/06/03

“Os problemas que o presidente Lula vem enfrentando com seus discursos têm antecedentes na história política brasileira, e nem os presidentes que limitavam seus pronunciamentos a discursos escritos com antecedência evitaram as gafes. Até mesmo os erros de português, que já fazem parte do folclore do presidente, têm antecedentes na História do Brasil. Ao final de uma sessão da Câmara dos Deputados, Cincinato Braga justificou o fato de não apoiar a candidatura do marechal Hermes da Fonseca afirmando: ?Fazer presidente da República um homem que diz ?hão de verem?.

Benedito Valadares, ao ler um discurso encomendado, na inauguração de uma estância hidromineral, em pleno Estado Novo, trocou a expressão ?quiçá do Brasil? por ?Cuíca do Brasil?, e entrou para o anedotário nacional. Mas nem só os erros fazem a história dos discursos. Frases mal formuladas entram para a história, para desespero de seus autores. O presidente José Sarney, ao anunciar pela televisão a moratória da dívida brasileira em 1986, leu um discurso onde Saulo Ramos, seu amigo e que foi consultor-geral da República e ministro da Justiça de seu governo, introduzira uma frase afirmando que seria uma traição à pátria não declarar a moratória.

Sarney diz que até hoje tem essa frase na cabeça. Quando a leu no teleprompter, sentiu que estava demasiada, mas não dava mais para cortar. Tancredo Neves, que preferia sempre ter seus discursos por escrito, eleito presidente fez uma viagem à Europa. Na Universidade de Coimbra, ao receber o título de doutor honoris causa, leu um discurso cujo original lhe fora entregue pelo neto Aécio Neves, que era seu secretário particular. Mas faltava a última folha e Tancredo terminou o discurso sem um fecho, em um tom decrescente. Ao passar pelo neto, xingou-o baixinho. O hoje governador de Minas diz que não se esqueceu nunca mais da figura do avô, com o traje de gala de Coimbra e o capelo torto na cabeça, fuzilando-o com o olhar.

Nessa mesma viagem, Tancredo recebeu do Itamaraty um discurso pronto, para a cerimônia na Assembléia Nacional de Lisboa. Não gostou, decidiu deixá-lo de lado e discursou de improviso. Mas, ao contrário dos de Lula, os improvisos de Tancredo eram geralmente preparados. Ele os escrevia e decorava. Ficava repetindo em voz alta, com as entonações necessárias. Mesmo quando ia conversar com alguém, ele imaginava todas as possibilidades e treinava em voz alta os possíveis diálogos. ?Se ele me disser isso, eu respondo aquilo?, ficava treinando, recordam-se seus assessores.

Cauteloso, Tancredo repetia sempre que não descia um meio-fio sem olhar para o chão. Quando ia fazer um pronunciamento importante Tancredo o trazia por escrito, ?para não deixar dúvidas? Dizia que um político tem que ?saber o que vai falar, para quem vai falar e como vai falar?.

O próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que, com a tarimba de professor, gostava de falar de improviso, não escapou de uma gafe que lhe valeu muitas críticas políticas e entrou para a História. No dia 11 de maio de 1998, na sede do BNDES no Rio, ele fazia uma palestra sobre a reforma da Previdência quando se empolgou e proferiu a frase célebre onde classificava de vagabundos os servidores aposentados prematuramente: ?O valor médio dos benefícios da Previdência cresceu e tem que ser mantido. Para isso é preciso fazer a reforma, para que aqueles que se locupletam da Previdência não se locupletem mais, não se aposentem com menos de 50 anos, não sejam vagabundos num país de pobres e miseráveis. Precisamos que os que podem trabalhem mais. Contribuam, para termos recursos para atendermos aos mais pobres?, afirmou. A frase foi usada pelo PT na campanha daquele ano, e se não custou a reeleição a Fernando Henrique, marcou-o para o resto da vida.

Abreu Sodré, quando era Ministro das Relações Exteriores, leu como se fosse seu a tradução do discurso de um visitante estrangeiro. O general João Figueiredo, que não gostava de discursar, tinha como ghost-writer o chefe do Gabinete Civil, professor Leitão de Abreu, um homem erudito cujos termos não combinavam com o jeito rude do então presidente. Certa vez Figueiredo foi visto em um palanque, com um discurso todo amarrotado na mão, durante uma solenidade, resmungando: ?Vou ter que ler essa merda que o doutor Leitão preparou para mim?.

É convencionado que o homem de Estado tem que ter um ghost writer . A tal ponto que o primeiro-ministro inglês Winston Churchill, excelente escritor que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1953, para criticar seu adversário trabalhista Clement Atlee, que também foi primeiro-ministro, dizia com ironia: ?É um politico tão medíocre que escreve seus próprios discursos?.”