Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Folha de São Paulo

COPA 2002

"Depois do penta", editorial, copyright Folha de S. Paulo, 1/7/02

"A seleção do Brasil conquistou ontem o seu quinto título de campeão mundial. O forte envolvimento emocional que precedeu e acompanhou a partida final contra a seleção da Alemanha é tão saudável quanto as comemorações que se seguiram ao apito final. O país sentiu uma mistura de felicidade e orgulho. O futebol é de há muito, na cultura brasileira, uma linguagem privilegiada na intermediação do sentimento de identidade nacional.

Os jogadores sabiam, mesmo que de forma difusa, que acumularam com a tarefa esportiva esse componente cultural. A crise do futebol, diagnosticada até pela CPI do Senado, não esmoreceu o time comandado por Luiz Felipe Scolari.

Mas o torcedor já começou a se despir da camisa verde e amarela. Volta agora a uma realidade desprovida da coreografia dos gramados e do desfecho espetacular.

O cotidiano não é glamouroso. Na percepção subjetiva de grande parte das pessoas, há muito trabalho para pouco divertimento e lazer. E há sobretudo um Brasil das coisas sérias pela frente. O Brasil das más notícias, do desempenho discutível de governantes, dos efeitos econômicos de uma nova onda especulativa.

Nem por isso, porém, o brasileiro deixa de ter disposição para participar do jogo coletivo das grandes opções. Mesmo que sem entusiasmo, ele votará para presidente, respondendo por vezes a um bombardeio de informações filtradas pelos marqueteiros.

O brasileiro ainda continuará a exercer seu atávico ceticismo. Não acreditará nas boas notícias que cheguem eventualmente de Brasília. Se conectado à internet, dará crédito a ?informações? alarmistas que continuará a receber por e-mail. Falará mal das sogras, rirá com piadas de papagaio e esperará por uma nova Copa. Para então muitos embandeirarem os vidros de seus automóveis e outros tantos enfeitarem as janelas de suas casas. E sorrirem felizes com a esperança."


***

"Festa começa com pagode em estúdio de TV", copyright Folha de S. Paulo, 1/7/02

"A Rede Globo capitaneou as honras da primeira festa dos pentacampeões fora do campo.

No estúdio montado no estádio de Yokohama, os atletas, alguns ainda com o uniforme de jogo, começaram sentados, concedendo entrevistas ao narrador Galvão Bueno, e terminaram dançando, em ritmo de pagode.

Entre abraços e cumprimentos entusiasmados, os campeões falaram da emoção da conquista e mandaram mensagens a seus familiares. Ronaldo ressaltou a satisfação com sua recuperação, e Rivaldo foi eleito por Scolari como o melhor do Mundial.

Após as entrevistas, a apresentadora Fátima Bernardes pegou carona no ônibus da seleção, onde continuou conversando com os atletas, foi elogiada por Ricardo Teixeira e pôde segurar o troféu.

Após a final, a Globo fechou a boate do hotel Prince, onde a seleção ficou, para uma festa. Marco Antonio Teixeira, secretário-geral da CBF, e Weber Magalhães, chefe da delegação, participaram."


***

"Jornais destacam o penta e a volta por cima de Ronaldo", copyright Folha de S. Paulo, 1/7/02

"A redenção de Ronaldo foi o principal aspecto destacado pelos jornais internacionais, em suas edições on-line, na cobertura da conquista do quinto título mundial pelo Brasil.

Com o título em português, ?Pentacampeão?, o francês ?L?Équipe? afirmou que o ?goleiro alemão Kahn retardou a vitória, que o meia Neuville acertou um disparo no travessão, mas foi Ronaldo, quem, ao final, fez a diferença.

O inglês ?The Sun? disse que ?Ronaldo afastou os fantasmas da final de 98, na França?.

Em seu chamada, o ?New York Times? sustentou que ?ao carregar o Brasil à vitória, Ronaldo redimiu a si próprio?.

O ?El País?, da Espanha, afirmou que ?o futebol é justo e devolveu o sorriso ao jogador que esteve a ponto de abandonar os gramados?.

Segundo o argentino ?Clarín?, ?para Ronaldo, não há males que durem cem anos nem goleiro invencível?.

De sua parte, o alemão ?Bild? apresentou o título ?O homem Kahn nem sempre vence?, sobreposto a uma foto do goleiro, desolado."

 

"Um triunfo que ajuda o Brasil", editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 1/7/02

"Se é verdade que o esporte é a expressão socialmente construída da agressividade humana e que as disputas esportivas entre países são a continuação da guerra por outros meios, é também verdade que a mais apaixonante e mobilizadora competição do gênero – a Copa do Mundo de futebol – se transformou na suprema celebração do nacionalismo na era da telecomunicação instantânea. Mais do que isso, é talvez o último reduto da exaltação patriótica em tempos de paz.

Quando a França ganhou a taça, em 1998, as multidões que se apinharam no centro de Paris só não foram maiores do que aquelas que, 54 anos antes, exultavam, em ardente delírio, com o fim da ocupação nazista. E, ao que se diz, nem quando a Coréia se viu livre do domínio japonês, ao fim da 2.? Guerra Mundial, tantos dos seus fizeram nas ruas festa comparável à da vitória dos vermelhos do ?matador? Ahn Jung Hwan contra a azzurra italiana, na noite do último dia 18.

No Brasil, a ?tragédia no Maracanã?, de 16 de julho de 1950, quando a Seleção cedeu ao Uruguai o título que já parecia alcançado, abriu uma fratura na auto-estima coletiva que se transmite de geração em geração, sem jamais cicatrizar completamente, apesar do triunfo de 1958 – e do bi e do tri e do tetra. Nem a morte súbita de Getúlio, em 1954, ou a de Juscelino, em 1976, e nem a morte esperada de Tancredo, em 1985, são exemplos de comoções nacionais que permanecem tão vivas, sulcando a memória do País, tanto tempo depois.

Campeonato mundial de futebol: nenhum outro evento, nenhuma outra atividade programada para se desenrolar diante dos olhos extasiados do planeta, tem semelhante poder de exacerbar o senso de identidade e afirmação nacional (ou o seu contrário) de incontáveis milhões de pessoas. Se alguém descobrisse, em um lance espantoso de intuição, a cura simultânea da aids e de todos os cânceres, nem assim injetaria na alma dos seus compatriotas uma alegria tão avassaladora, um orgulho tão exuberante como experimentam os que pertencem às nações que impõem a sua supremacia no jogo da bola.

As proezas de um gênio das ciências, das artes, até da promoção do bem comum, não levarão a massa de seu povo a dançar na praça pública, em um derramamento de confraternização entre – naquela única, transitória e formidável circunstância – iguais. Mas nem toda vitória na Copa significa o mesmo para os diferentes vencedores. E nem toda vitória significa o mesmo para a mesma nação, como se os efeitos da consagração nos gramados fossem imunes às contingências históricas.

Se a Alemanha – e não o Brasil – acabasse de triunfar no estupendo estádio de Yokohama, o êxito teria recoberto o que pudesse haver de mais característico na personalidade nacional alemã, aplicado ao esporte: a disciplina, a organização, a solidariedade, a persistência, o talento para superar adversidades – em suma, os valores que fizeram desse país a potência econômica e social sui generis da atualidade, motor da nova Europa.

Ainda assim, para a Alemanha, ganhar a Copa pela quarta vez, na sétima final que disputou, teria sido um feito de repercussões até modestas perto do que foi o de 1954, nove anos depois de o país ser reduzido a escombros e separado em dois – o desfecho do pesadelo hitlerista. A vitória surpreendente contra o soberbo (e franco favorito) time húngaro de Ferenc Puskas foi o símbolo definitivo do renascimento alemão.

Para os brasileiros, o penta tem também um sentido peculiar, indissociável do momento por que passamos. O 17.? campeonato mundial de futebol coincidiu com um período de turbulências financeiras perceptíveis a olho nu por quase todo o povo. As ameaças à estabilidade econômica e à incolumidade das aplicações dos pequenos e médios poupadores conjuram o medo, irrealista mas verdadeiro, de que o Brasil de amanhã possa ser a Argentina de hoje.

Obviamente, nem as incertezas da economia, nem os receios que elas desatam irão perder intensidade por termos, afinal, o melhor futebol do mundo. Há uma eleição no horizonte – e isso é o que conta. De qualquer forma, o que os americanos chamam ?feel-good factor?, ainda mais quando derivado da glória sem paralelo de uma Copa, é algo substantivo, que alça as expectativas da população e restabelece um semblante de esperança em que as dificuldades que assombram o País também acabarão derrotadas. Pode parecer pouco. Mas, na atual conjuntura, tudo que contribua para quebrar o ambiente de catastrofismo é absolutamente bem-vindo."


***

"Copa é sucesso de audiência em todo o mundo", copyright O Estado de S. Paulo, 24/6/02

"A Copa 2002 está batendo recordes de audiência não só no Brasil, mas em todo o mundo. A imprensa americana tem destacado que o evento está entre os que mais atraíram espectadores, contrariando as expectativas – já que o futebol não é tão popular no país.

Os índices de audiência indicam o sucesso. Na Itália, por exemplo, cerca de 23 milhões de pessoas assistiram à partida contra o México pelo canal RAI.

Na Espanha, em que jogos só são transmitidos pela TV paga, o confronto do time local contra a Irlanda atraiu 13,2 milhões de pessoas. Nos Estados Unidos, a ESPN registrou 3 milhões de espectadores na partida contra o México, recorde total de público."

 

"Os vitoriosos", editorial, copyright O Globo, 1/7/02

"Acena de Cafu erguendo a taça no Japão entra numa ilustre galeria inaugurada em 1958, na Suécia, por Bellini. Com a Jules Rimet alçada com as duas mãos, Belini, zagueiro vigoroso, desenhou a coreografia que seria repetida mais quatro vezes: pelo discreto e eficiente Mauro, no Chile, em 62; pelo incansável Carlos Alberto, capitão no México, em 1970; por Dunga e sua garra, nos Estados Unidos, há oito anos; e agora por Cafu, símbolo do moderno futebol, em que ataque e defesa se confundem.

O penta dos sonhos veio com quatro anos de atraso, retardado pela inesperada derrota de 1998 diante da França. Em meio a dificuldades, coberta pelo manto do descrédito generalizado, a seleção de 2002 deu uma bela demonstração de força de vontade – a ser seguida por todos nós.

O título veio a calhar: o país do Risco Brasil, que se modernizou bastante nos últimos anos sem, contudo, conseguir resolver todos os seus problemas sociais, o país em que o crime organizado deitou raízes, voltou a freqüentar o noticiário mundial por algo que tem de positivo. Ganhar mais uma Copa não exorciza, por óbvio, qualquer dos nossos demônios. Melhora, porém, a auto-estima – e isso é bom.

Quem sabe a demonstração de coesão, de trabalho em equipe diante de um objetivo comum, e o exemplo de determinação desse grupo de jogadores, não contaminam o ambiente político em um ano eleitoral importante, fazendo com que o próximo presidente da República, o Congresso renovado, governadores e câmaras legislativas estaduais assumam sob um signo positivo?

A história da seleção pentacampeã pode servir de figurino para quem pede voto nas ruas, nos palanques eletrônicos, e sabe que não pode decepcionar.

A postura do técnico Luís Felipe Scolari é um modelo a ser seguido por políticos prestes a cair na tentação de prometer o impossível. Scolari assumiu o cargo como quem recebe uma bomba-relógio. Reconheceu as dificuldades, mas garantiu a classificação – única promessa objetiva que fez. A seleção foi superando os vários obstáculos, mas em nenhum momento o técnico prometeu o penta. Fez bem, ao contrário de candidatos cujo discurso infunde no povo a vã fantasia de que a vida pode melhorar apenas por atos de vontade dos novos inquilinos dos palácios.

A epopéia do penta é a soma de várias vitórias pessoais. A mais evidente delas é a de Ronaldo. Craque prodígio, foi levado à campanha dos Estados Unidos, em 1994, para aclimatar-se a uma Copa do Mundo e ser lançado como a principal peça ofensiva da artilharia verde-e-amarela em 98, na França. Assim foi, até poucas horas antes da decisão. Parecia script de filme de terror. Depois da convulsão e da derrota em Paris viriam a contusão no joelho em Roma, no jogo entre a Internazionale e o Lázio, e a perspectiva de encerrar a carreira.

Ao final de tanto esforço, depois da volta ao futebol na Itália entre assustadoras contusões musculares – mas naturais, no caso clínico de Ronaldo – veio o prêmio do penta, a artilharia do campeonato e a entrada definitiva na história do esporte mais apaixonante do planeta. Ronaldo e companheiros, esses são os verdadeiros vitoriosos, todos bem conduzidos, com estilo próprio, por Luiz Felipe Scolari.

O pentacampeonato chega em momento especial. Que simbolize o início de uma nova e importante fase na história do futebol brasileiro. Enquanto o time desdobrava-se no Oriente, um jogo decisivo se travava no Brasil: o da aprovação da Lei de Responsabilidade do Futebol, combatida pela máfia de cartolas dona da bola no Brasil, e responsável por toda a desorganização do futebol nacional. O projeto da lei necessária para a salvação do esporte no país sofreu cerrado boicote na Câmara dos Deputados, pela ação da bancada da bola, um lobby de parlamentares ligados à cartolagem. Uma semana antes do jogo contra a Inglaterra, o governo baixou a lei por medida provisória. O ato funcionou como um prenúncio do pentacampeonato.

Cartolas símbolos do que há de mais retrógrado e pernicioso no futebol brasileiro tentarão instrumentalizar a vitória no Japão para sabotar a aplicação dos novos estatutos do esporte. Aparecerão para a opinião pública como se também fossem responsáveis pela vitória. Não são. O escrete de 2002 driblou a desorganização semeada por essa cartolagem, ganhou dos adversários nos gramados e conquistou um campeonato símbolo.

O penta precisa ser o marco histórico do fim do regime obscurantista e corrupto instalado por cartolas nos alicerces do melhor futebol do mundo. Eles são os mais perversos e perigosos adversários do futebol brasileiro."