Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Futebol carioca na berlinda

MÍDIA ESPORTIVA

Raphael Perret (*)

Desde terça-feira (14/10) o jornal O Globo assumiu claramente uma postura crítica em relação à situação atual do futebol do Rio de Janeiro. Se, antes, o caráter contestatório resumia-se às colunas de Fernando Calazans e Renato Maurício Prado, o teor analítico está presente também na seção informativa do jornal. Isso ficou evidente quando o Globo pôs, no cabeçalho das páginas referentes às notícias dos clubes, o título "Caos no futebol carioca".

Diga-se que o tom crítico não é exclusividade do principal jornal da família Marinho. Quem lê os outros diários cariocas, como o Jornal do Brasil, O Dia e Extra (este da mesma empresa do Globo) também nota um ar interpretativo nas matérias acerca do futebol da Cidade Maravilhosa. Porém, com a série "Caos no futebol carioca" O Globo marca, aparentemente, o início de uma luta contra a balbúrdia em que se meteram os clubes do Rio de Janeiro.

Em princípio, contextualizemos o leitor. Flamengo, Vasco e Fluminense são os times cariocas que disputam a Série A do Campeonato Brasileiro. A campanha dos três qualifica-se como medíocre para baixo. O melhor clube é o Flamengo, que terminou a rodada deste domingo, 19, em 12? lugar, num total de 24 equipes. O Vasco ocupa a 17? posição, e o Fluminense, a 23?. Pela terceira vez em oito anos, o time das Laranjeiras luta contra o rebaixamento. Nas outras duas ocasiões, não conseguiu evitar o descenso. Já o Botafogo coleciona um bom número de vitórias, mas num cenário menos atraente: a Série B.

E o que motivou o posicionamento mais austero do Globo? No fim de semana anterior ao início da série de reportagens, o Flamengo enfrentaria o Vasco e entrava em campo com um técnico que, segundo o próprio jornal, já teria se demitido, fato comprovado após a partida. O resultado foi 2 a 1 para os rubro-negros, o que mostrava a fraqueza da equipe vascaína, derrotada por um time com um a menos desde o início do segundo tempo e sem técnico. Enquanto isso, no Centro-Oeste, o Fluminense, mesmo com um jogador a mais desde o primeiro tempo, levava uma sova do Goiás de 6 a 1. Enfim, esses fatos compuseram o estopim para o início da série.

Fatos sintomáticos

As reportagens publicadas lembravam acontecimentos anteriores que também refletiam o "caos" no futebol carioca, como: treino no Flamengo interrompido para limpeza de fezes de gatos no campo; desmantelamento de quase meio time do Vasco ao longo do campeonato, inclusive de seu artilheiro; demissão de técnico por parte da diretoria do Fluminense para, algumas rodadas depois de insucesso com o substituto, recontratá-lo. Em seguida, coube ao jornal apenas relatar a bagunça generalizada no campo do Rio de Janeiro ao longo da semana:

** Jogador cruzmaltino leva camisa do Flamengo para lavar no Vasco e depois entrega a policiais amigos; no dia seguinte, é um atleta rubro-negro que faz o mesmo, na Gávea, com uma camisa do rival.

** Vice-presidente do Flamengo é demitido por deixar vazar que o técnico pedira demissão antes do jogo do Vasco. A informação foi divulgada pelo colunista Renato Maurício Prado porque o dirigente conversava no telefone sem saber que a conversa estava sendo gravada na secretária eletrônica do jornalista.

** Alguns jogadores do Fluminense vão jantar fora depois da goleada para o Goiás e só voltam de madrugada.

** A torcida tricolor joga milho em direção aos jogadores em treino nas Laranjeiras.

** O presidente do Flamengo efetiva o auxiliar do ex-técnico como treinador do time, a pedido dos jogadores. Alguns torcedores exigiam (!) a efetivação de um ex-jogador.

** Jogadores das divisões de base do Fluminense trocam empurrões em treino.

** O capitão do Vasco reclama publicamente da qualidade do time.

** O principal jogador do Fluminense, com 37 anos, discute com o preparador físico.

** Pela Série C, um jogo entre Americano e Goytacaz, em Campos, cidade dos dois times, não termina por causa de uma confusão envolvendo o próprio presidente da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, torcedor do Americano.

Abre parêntese. É bom ressaltar que alguns dos fatos relacionados, em condições normais de temperatura e pressão, não teriam a menor importância e talvez nem fossem mencionados no noticiário geral, como a troca de empurrões dos jogadores do Fluminense. Exagero do jornal? Pode ser. Mas, descontadas essas notas menos importantes, o que sobra ainda é extremamente sintomático. Fecha parêntese.

Qualidade questionada

Além das notícias, O Globo também publicou reportagem analisando a diminuição de valor da marca Flamengo, em virtude dos seguidos fracassos desde o último título de destaque do clube (o Campeonato Brasileiro de 1992) e entrevistas com Zé Roberto, ex-jogador do Fluminense, Vanderlei Luxemburgo, que já dirigiu o Flamengo, e de Zico, nas quais todos analisam os problemas do futebol do Rio.

As supostas razões para a situação, conforme as matérias, são várias. Elas envolvem falta de estrutura física, falta de planejamento, salários atrasados, poucos treinamentos e má qualidade dos jogadores. Esses aspectos, entretanto, seriam conseqüências de um motivo mais abrangente: o amadorismo e a incompetência dos dirigentes. No Flamengo, os torcedores participam das decisões da diretoria, além de terem livre acesso aos escritórios da cúpula. O presidente do Vasco deixa seu principal jogador reclamar à vontade dos colegas, dos salários, de tudo. No Fluminense, depois de acusações graves feitas pela mulher de um ex-jogador do clube quanto à viagem do time a Martinica, em que dirigentes teriam levado as amantes, o presidente lavou as mãos. Os resultados são evidentes. Basta ver a tabela de classificação do campeonato.

A série "Caos no futebol carioca" me lembrou o e-mail de um amigo, enviado a mim em julho. Ele questionava as constantes críticas feitas ao futebol do Rio de Janeiro. Não que ele achasse o panorama animador. Meu amigo só estranhava que, apesar de o caos não parecer estar instalado exclusivamente às margens da Baía de Guanabara, pouco era mencionado sobre os problemas do futebol em outras praças. Por exemplo, na tabela, encontramos dois times gaúchos, Grêmio e Juventude, lutando contra o rebaixamento. "E nunca ouvi falar em caos no futebol do Rio Grande do Sul", reclama o amigo. No ano passado, dos quatro times rebaixados para a Série B, dois eram paulistas. "Mas ninguém fala em crise no futebol de São Paulo", comenta. Indignado, ele aponta o motivo da diferença de tratamento. Enquanto a imprensa carioca seria mais crítica a dos outros estados seria mais provinciana. Ele alega, inclusive, que os colunistas gaúchos, ao menos na época do e-mail, achavam bom o time do Grêmio, que acumula derrotas e o posto de lanterna do campeonato há um bom número de rodadas. No ano passado, a imprensa paulista atribuía ao "azar" o mau desempenho do Palmeiras, que culminou na queda para a Série B. Enquanto isso, os jornalistas do Rio não hesitam em questionar a qualidade das atuais equipes de Flamengo, Vasco e Fluminense.

Credencial de bom jornalismo

Não pude fazer um trabalho mais preciso de comparação entre as atuações das imprensas carioca, paulista, gaúcha e de outros Estados. Por um lado, é certo que problemas como atraso de salários e incompetência de cartolas afligem também outros clubes. Não à toa que Vampeta sumiu do Corinthians: não recebia seus proventos há alguns meses; Jorginho Paulista saiu do São Paulo pelo mesmo motivo.

O empenho dos jornais cariocas, porém, simbolizado pela série do Globo, é louvável. Apesar da abrangência nacional, esses veículos têm público essencialmente instalado no Rio de Janeiro. Portanto, o leitor, que também é torcedor, quer entender por que seu time, outrora grande, hoje paga mico tanto diante do líder quanto em frente ao lanterna do campeonato. É papel do jornal fornecer material para a reflexão desses assuntos. Trata-se, inclusive, de uma boa maneira de desvincular o jornalismo esportivo da pecha histórica de ser mais fraco e menos sério em relação aos outros gêneros da imprensa. Investigação e interpretação ajudam.

Um estado que detém quatro grandes forças do país não pode declinar de forma tão vergonhosa. A melhora do futebol carioca é essencial para a melhora do futebol brasileiro, que, embora pentacampeão mundial, não anda muito bem das pernas em sua própria casa. Poucos times podem ser considerados bons, os jogos são muito faltosos e a qualidade técnica das partidas é muito baixa. Logo, a imprensa do Rio de Janeiro tem a grande chance de dar o exemplo a todo o resto do país (e numa época muito importante: 2003 é ano de eleições no Flamengo e no Vasco). Apontar as falhas dos clubes, sugerir caminhos e motivar os debates são atitudes essenciais para o ressurgimento do futebol carioca. Além de ser credencial de bom jornalismo. Que os diários do Rio continuem assim.

(*) Jornalista e mestrando em Sistemas de Informação pelo NCE-UFRJ