Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Gaudêncio Torquato

GOVERNO LULA

“Estado midiático e vedetismo”, copyright O Estado de S. Paulo, 15/12/02

“Ao identificar as dificuldades para compor o Ministério, citando particularmente as disputas entre aliados que preferem ser ministros a presidentes de importantes empresas estatais, porque estas não ?aparecem todo dia na imprensa?, o presidente eleito, Luiz Inácio, destaca uma faceta de um dos mais corrosivos aspectos da política nacional: o vedetismo. Esse fenômeno, que é característico do atual ciclo de declínio dos mecanismos clássicos da política – partidos, parlamentos, ideologias -, tem mais impacto em sociedades menos desenvolvidas, como a nossa, do que em democracias consolidadas, onde a mídia ainda costuma refletir, ao lado da competição entre quadros, diferenças de visões doutrinárias. Aqui, a política se transforma, a olhos vistos, em monumental espetáculo, em que atores fazem absoluta questão de ocupar o espaço institucional com a imagem de seus perfis. Nos Estados Unidos ou em países europeus, são perceptíveis as diferenças de posições entre republicanos e democratas ou entre liberais e conservadores, esquerdistas e direitistas, trabalhistas e social-democratas.

Na verdade, a espetacularização da política brasileira faz parte da cultura de um Estado cujas instituições e atores balizam, cada vez mais, atitudes e ações por influência dos meios de comunicação. Tudo parece ser delineado pela indústria midiática. Se não passarem pela tuba de ressonância formada pelos veículos impressos e eletrônicos, os fatos inexistem. Se não ocorrem, não há figurantes nem história. Se é assim, os políticos tratam logo de fazê-la, puxando, claro, a brasa para a sua sardinha. Até a sagrada instituição da Justiça, na esteira da magia poderosa da mídia, para ampliar a visibilidade, à maneira das casas congressuais, abriu um canal próprio de televisão, o que nos proporciona a agradável surpresa de ver que magistrados da mais alta Corte também dão sonoras risadas e até constroem tiradas jocosas, eles, que pareciam a nós, simples mortais, deuses solenes e meditabundos, compenetrados de divina onipotência. Não há dúvida que o acesso democrático à informação institucional é um avanço. A questão, porém, não é esta. Nefasto é usar o espaço de comunicação, público ou privado, para que um cidadão, a serviço do povo e do Estado, queira estabelecer para si aquele objetivo que Mussolini desgraçadamente se impôs: ?Fazer da própria vida a sua obra-prima.? Essa é uma praga que tem assolado o Estado brasileiro.

O arrefecimento ideológico, que, de certa forma, explica a despolitização do sistema político brasileiro e a cultura narcisista de perfis, não se deve apenas ao fechamento do universo da locução no ciclo dos militares. Faz parte de um movimento multipolar no campo político, de caráter mundial, que se origina na transferência de eixos do poder, a partir dos centros tradicionais da política, a começar pelos partidos, para esferas sociais, profissionais e geográficas mais amplas, como sindicatos, federações, clubes, universidades, grandes empresas e regiões. É claro que essa coisa tem também que ver com o desmoronamento do socialismo clássico. Observa-se, de uns tempos para cá, a multiplicação de novos núcleos de força, que passam a encarnar algumas funções de parlamentos e partidos.

No Brasil, a festejada Constituição-cidadã, de 1988, foi um marco nessa direção. Detalhista ao extremo, corporativista em sua extensão, foi concebida como abrigo de tendências e expectativas de grupos. Mais que sinal de um novo horizonte democrático, traduziu um arrazoado de intenções para tornar mais fortes determinadas representações sociais. A trombeta da mídia, por seu lado, foi fundamental para dar eco aos discursos e abrir espaços.

Neste momento, instala-se nos desvãos institucionais o espelho de Narciso.

As caras de indivíduos e instituições ingressam na arena, disputando os melhores palanques. As casas congressuais e os partidos começam a perder o monopólio da ação política. Os poderes do Estado, agora energizados por esferas participativas e núcleos descentralizados e difusos de poder, passam a ser foco dos holofotes da mídia. Na esteira do desaparecimento dos últimos ícones do Parlamento – Tancredo, Ulysses -, o cenário das grandes lideranças é ocupado por políticos homogêneos, que passam a preocupar-se exageradamente com o perfil pessoal. A lapidação de imagem inspira-se no lema: captar o máximo interesse e fixar a atenção do público.

Desenvolve-se capilarmente um Estado midiático, assentado sobre uma imensa estrutura de comunicação. A personalização do poder é o leitmotiv da nova ordem. De dois em dois anos, novos e velhos atores sobem aos palcos para desfilar qualidades pessoais num espetáculo regrado pelo uso e abuso de miragens, promessas, esperanças e sonhos, todos voltados para cooptar a adesão de grupos descrentes. Nos interstícios, governantes do Executivo se esmeram num exercício de maquiagem para limpar protuberâncias no perfil, enquanto os níveis de representação popular, para não serem esquecidos, buscam as luzes da imprensa. Inversões de valores se multiplicam. A mídia cria pautas, determinando ações e comportamentos políticos. Quem não quer fazer parte do jogo não tem chances de aparecer. O vedetismo se impõe. O acessório ocupa o lugar do principal. Uma feira de personalidades, disputando visibilidade, canibaliza os escopos partidários. Verba e verbo estabelecem relação promíscua. Assim, a autoglorificação de perfis contribui para fazer florescer a semente de uma democracia pervertida, em que o Estado e suas representações passam a fazer da política nada mais que um exercício de fuga diante da realidade.

Não é de admirar que, nesse cenário, o presidente Lula tenha dificuldades para formar o Ministério. É óbvio que os políticos estão olhando mais para seu devir do que para o chão da Pátria. Triste é constatar que nada vai mudar no curto prazo. Não se espere isso do novo governo. Uma profunda reforma no campo das práticas não se faz da noite para o dia. Ademais, os atores, embevecidos com o próprio eu, não se interessarão em quebrar o espelho que reflete sua imagem. O espelho no Estado midiático é refratário a quedas e multiforme. Quem pode ajudar é a mídia, exigindo reformas profundas na base política e tendo coragem para abortar a clonagem que, ela mesma, ajuda a produzir, quando acirra a disputa entre vedetes, fazendo com que os nossos representantes, para aparecer a qualquer preço, mudem, até, convicções pessoais. Ao político há de se cobrar aquilo que o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard costumava cobrar dos cidadãos: ser uma exceção. No Estado midiático, isso não passa de uma utopia. (Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor-titular da USP e consultor político E-mail:gautorq@gtmarketing.com.br)”

 

“Um, dois, três… muitos Lulas”, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 16/12/02

“Nesta fase de definição da equipe de governo e do ministério, a imprensa brasileira, graças à sua pluralidade, vem oferecendo uma série muito diversificada de ?Lulas?, postos à disposição do observador.

Vamos começar pelo ?Lula? mais elementar. Este segue o tratamento tradicional dispensado ao personagem pelo menos desde a eleição de 1989. Prima pela fidelidade ao pensamento de que Lula é uma excrescência dentro da política brasileira. Este é o Lula preferido dos candidatos a Gustavo Corção do século XXI, ainda que sem o seu estilo brilhante e exemplar.

O primeiro candidato é Diogo Mainardi (?Veja?, 11/12, ?Lula me diverte?, e 18/12, ?O rei do Congo?). No último artigo, Mainardi defende a tese de que vai ter folclore na festa de posse de Lula (no caso, uma dança, o maracatu) porque quem gosta de folclore é o PT, e nisto o PT se iguala a outros amantes de folclore: Mussolini, Hitler e Stalin. Lula será saudado nas ruas por milhares de pessoas, reconhece, mas o único motivo que destaca é o de que muitas estarão ?interessadas num dos muitos cargos de confiança do governo federal?. Aponta algumas incoerências do personagem, como a de ser ex-operário e calçar na posse sapatos Jacometti sob medida, além de desfilar num Rolls-Royce conversível (que soe ser o carro presidencial, mas isso é de menos). Mas o núcleo duro do pensamento de Mainardi não deixa de ser interessante: o principal problema de Lula é que ele continua cheirando a povo, e fiel ao PT: uma vez PT, sempre PT.

Já o pensamento de Olavo de Carvalho (?Zero Hora?, ?Tutto è burla nel mondo?) é bem mais sofisticado. Para ele a eleição de Lula espelha um surdo ressentimento por parte do cidadão comum, diante da falência generalizada das classes dirigentes em promover a educação e a cultura como valores. A cultura entre nós permanece ?exterior?, ?um emblema de chiqueza com que os pedantes humilham os pequeninos?. Não se deve estranhar que, diante disso, o cidadão comum, exausto de lutar pelo que lhe negam, proclame ?a superioridade da ignorância explícita, agora rotulada experiência da vida?. Ao invés de uma grotesca farsa individual, Lula espelha a falência do sistema brasileiro. Mas como no primeiro caso, permanece fiel a si mesmo.

O novo Lula

A maior parte da imprensa, no entanto, vem se dedicando à construção de um novo Lula. E nisto capta as vozes, ou por elas é secundada, de uma série de políticos agora na oposição, que entoam a conhecida ladainha ?estar no governo é diferente?. Ao contrário da visão anterior, que permanece retrospectiva, esta é prospectiva, e canta loas ao fato de que Lula está promovendo um perfil social-democrata ao seu ministério. Ou pelo menos mais conservadora do que o esperado.

Dependendo do articulista ou do redator, esta passagem tem maior ou menor vínculo com o PT. Mas em todo caso ela impõe o pensamento de que ambos, Lula e o PT como um todo, estão derivando para longe de suas posições históricas. Uma observação do colunista Celso Pinto (?Folha de S. Paulo?, 12/12, A11), embora não diretamente sobre Lula, sintetiza bem o espírito da coisa: ?talvez o maior sucesso nesta transição tenha sido transformar um político originário da esquerda radical, muito ligado à cúpula do Partido e médico por profissão, Antonio Palocci, no preferido do mercado financeiro para a Fazenda?. Se trocarmos os nomes e as profissões, e o ?preferido? por ?suportável?, teremos Lula.

Esta posição, de que Lula está à deriva em direção à direita e para longe da tradição do partido tem um ponto de chegada, que já está delineando agora a futura tábua de valores com que Lula será julgado no futuro. Novamente na vanguarda dos indicadores, é ?Veja? (?A grande obra do Lula da Espanha?, 18/12) quem dá o tom. Para ter sucesso, Lula deve tornar-se o Felipe González do Brasil. Assim é descrita a chave do sucesso: ?rasgou a clássica cartilha esquerdista?, ?empreendeu várias reformas liberais?, continuou ?as políticas modernizadoras adotadas por seus antecessores? (aqui leia-se FHC). A Espanha foi para a Otan (aqui leia-se a Alca), e Gonzalez ?jogou no lixo? (sic) a orientação econômica de seu partido, preferindo a de um economista liberal?.

Entre outras reformas ?demitiu funcionários públicos e abriu as fronteiras ao capital estrangeiro? (o que, aliás, vem sendo uma reivindicação de grande parte das próprias empresas de imprensa brasileiras). ?O resultado foi um espetáculo?, completa a reportagem. De fato foi, pois ela registra, ainda que de passagem, que González deixou um índice de desemprego de 22% e que abriu caminho para o conservador José Maria Aznar. Melhor destino para o governo Lula, impossível. Só falta definir quem vai ser o Aznar brasileiro.

As variações do Lula desta vertente de pensamento são inúmeras, mas a tecla de fundo é a mesma. Lula terá sucesso se conseguir tornar-se um presidente de discurso social e política conservadora, e isso implica romper com o partido ou com a tradição do partido. Uma reivindicação simbólica deste afastamento apareceu quando parte da imprensa reclamou que Lula cometeu uma gafe ao se apresentar diante de Bush com a estrela do PT na lapela, ?pois ele é o presidente de todos os brasileiros, não só do PT?. A lamúria não leva em conta que não só Lula não fora empossado, como o presidente do Brasil – e de todos os brasileiros, Fernando Henrique Cardoso – estava nos Estados Unidos. A gafe foi dos reclamantes.

O Lula do impasse

Vez por outra a construção do Lula pela imprensa aparece sob a forma de um impasse, ou de uma contradição que pode ser insanável, e não me refiro às declarações de setores do Partido dos Trabalhadores descontentes ou mais ou menos surpresos com as indicações para o ministério. Em 12/12, Clóvis Rossi opinava em sua coluna na ?Folha de S. Paulo? (?Falta a tecla stop?) que Lula deixara de mencionar na conversa com Bush uma série de tópicos importantes: o unilateralismo da política americana nas políticas de meio ambiente e segurança; idem, nas relações comerciais. Conclusão do articulista: ?quem deu a partida na viagem do PT para o centro (ou para a moderação) se esqueceu de programar a tecla stop?.

Entretanto, no dia seguinte, na coluna ?Davos 2 x Porto Alegre 0?, o mesmo articulista mostrava-se verdadeiramente aliviado porque as indicações de Lula para o ministério e o Banco Central (no caso, Furlan e Meirelles) mostravam uma clara marcha em direção ao Fórum de Davos e de distância ao ?povo de Porto Alegre? (a expressão do jornalista ficou ambígua, embora ele esteja se referindo, em primeira instância, ao Fórum Social Mundial). O alívio vinha do fato de que o articulista considera o encontro de Davos um verdadeiro ?curso de pós-graduação em atualidade internacional?.

O PT no ou do governo estaria se distanciando do Fórum Social Mundial (?Porto Alegre ficará com a utopia, inalcançável por definição?) e se aproximando do que ?Fernando Henrique Cardoso chama de a utopia do possível?. E o jornalista completa: ?Resta ver se o conteúdo corresponderá ao rótulo?. Quanto ao fato de que se há algo que se oponha a política suicida de Bush é o Fórum Social Mundial, isso ficou esquecido.

Se conclusão é possível

Em resumo, as variadas posições apontam que qualquer sucesso do governo de Lula supõe algum tipo de ruptura com a tradição do PT, suas elaborações teóricas e sobretudo práticas do passado. Estas são esquecidas ou aparecem sob o signo do repúdio mais ou menos velado. Uns vêem este salto como impossível, outros como uma esperança de que o PT realize a alquimia de se tornar um governo conservador, outros se dão o benefício da dúvida. Mas todas as posições querem tratar o governo Lula como um ?marco zero?: os mais reacionários porque julgam que Lula e o PT jamais deixarão este ?zero?; outros, porque preferem construir o seu próprio Lula, distante do que foi eleito com a ajuda (com os problemas também) das administrações, da história e dos compromissos do PT e das Frentes Populares. Neste sentido, Porto Alegre 2002 x Davos 1991.”