Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Gaudérios elisabetanos

MÍDIA GAÚCHA

Gilmar Antonio Crestani (*)

Quantas vezes César será visto sangrando num espetáculo!

A exclamação de Bruto diante do corpo de César, na peça Júlio César, de Shakespeare, é uma espécie de parábase. Isto é, o ator, investido da personagem Bruto, ao mesmo tempo em que chama a platéia a ver nele a simples presentificação de um fato histórico, um meio através do qual aqueles fatos a que se refere a peça possam ser apreciados pelo público, é também uma tentativa, no plano do enredo, de justificar a atitude do assassino. Quer nos convencer que as constantes representações teatrais da morte de César também seriam a forma de perpetuar César. Uma espécie de Getúlio Vargas: "Saio desta vida para entrar para a história." Em outras palavras, César, embora merecendo a morte, como vítima se agiganta perante a história sempre que o episódio de seu assassinato for lembrado. Esta mistura de espetáculo, realidade e representa&ccccedil;ão histórica tem sido cotidiana no Rio Grande do Sul nos últimos quatro anos.

Embora nem o partido que está no poder tenha levado a público o debate, ficou evidente, no momento seguinte à apresentação dos resultados da eleição de 1998, que as oligarquias e o coronelismo eletrônico entraram em pânico, pois se desenhava para o estado algo que se vivenciava na capital, a transparência dos gastos públicos com direcionamento para as áreas carentes. O curral da imprensa e os jornalistas ditos independentes, acostumados a viver sob as asas do Estado mecenas, entraram em pânico, pois teriam de buscar a sobrevivência na iniciativa privada. Não é outra a razão que levou tais personagens a partirem para os manifestos a favor da liberdade de imprensa, quando, na verdade, trata-se da liberdade econômica; a deles, é claro.

Nesse sentido é sintomática a declaração, ao Sindicato dos Jornalistas, de filiados a partidos políticos de direita, também signatários de tais panfletos: "Eu (Érico Valduga) e o Hélio (Gama) colocamos o Folha do Sul, em Caxias. Nos seis meses em que o jornal funcionou não entrou um anúncio do governo do estado." Outra personagem, que já foi chefe da Casa Civil em governo anterior e dublê de jornalista, Políbio Braga, hoje no PMDB, declarou: "Em março do ano passado o governo do estado cortou a publicidade, que era de R$ 28 mil mensais, na rádio. Para uma emissora com faturamento de cerca de R$ 250 mil/mês, era bastante dinheiro." A resposta foi dada pelo próprio chefe: "Políbio saiu por incompetência e por fazer um jornalismo com ódio e partidarismo".

A leitura inversa de tais fatos permite concluir que, quando o poder público investe maciçamente na mídia, sob qualquer forma de transferência econômica, tem nela um forte aliado.

Aí pode estar a justificativa pela qual o BNDES financiou a Globo Cabo, e também porque a RBS nunca questionou o governo federal com a mesma virulência e ódio com que direciona suas baterias contra o governo do estado.

A desproporcionalidade do ataque beira o histerismo. Somente os operadores do Direito que trabalham com as questões de família (separação, pensão alimentícia) podem entender o grau de passionalidade que uma relação rompida desencadeia nas partes envolvidas, mormente quando envolve questões econômicas.

O editorialista não lê o jornal?

Também foi a questão econômica, a perda de uma ação para o atual secretário de Justiça e Segurança, José Paulo Bisol, que fez dele persona non grata em todos os segmentos do coronelismo eletrônico. A bílis destilada é tanta que se torna por demais evidente a repulsa que suas ações, reconhecidas pela ONU e até pelo governo federal, causam à RBS. Senão vejamos:

A morte de dois profissionais da segurança pública, em serviço, foi o mote para o editorialista do jornal Zero Hora (8/8) sair-se com a seguinte pérola, para todos os efeitos casada com o discurso eleitoral do abençoado do grupo RBS:


"Propõe-se Tarso Genro dividir a pasta que hoje é responsável pela área em duas unidades. À Secretaria de Segurança Pública ficaria afeta a coordenação das atividades policiais e de inteligência, aí incluído o combate ao crime organizado e à corrupção de agentes da lei, enquanto à de Justiça incumbiriam as questões jurídicas e de direitos humanos. Trata-se de uma estratégia adequada ao setor da mais alta relevância para a população. Mas é difícil desconhecer nela o implícito puxão de orelhas na atual administração, que insiste em vender a idéia de que os problemas de segurança pública no estado são hiperdimensionados pelos meios de comunicação, alegadamente movidos por motivações políticas.

Os fatos, porém, se encarregam de desmentir, todos os dias, essa visão míope. Ainda na terça-feira, um capitão e um sargento da Brigada Militar perderam a vida em diferentes confrontos com bandidos na Região Metropolitana de Porto Alegre. Foram eles vítimas da mesma e inquietante escalada da violência que converteu o medo na mais constante companhia dos cidadãos."


Ora vejam! Os mesmos fatos, na gestão do dileto filho da empresa, em 1997, não mereceram um editorial da empresa. Pior, algumas páginas adiante o próprio jornal colocava em xeque a "visão míope" do editorialista. As estatísticas apresentadas na matéria que tratava da morte de agentes da segurança pública mostravam as mortes ano a ano, por corporação. Em 1997, durante o tranqüilo e exemplar governo Antônio Britto, foram 16 baixas de policiais civis e 11 da Brigada Militar. Em 2001, 8 e 8, respectivamente. E, pelo que eu saiba, as duas corporações não entraram em confronto fratricida naquele ano de 1997, para justificar 11 mortes a mais do que o violento ano de "2001". Aliás, a sangrenta Revolução Federalista, a da degola, ocorreu em 1893…

O editorial não se explica somente pelas "motivações políticas", pois trata-se também de mau jornalismo. Um dia depois (9/8), a manchete: "Capitão pode ter sido morto acidentalmente por colega" é confissão explícita de equívoco e desatenção. A morte deste profissional, portanto, não deu-se em confronto com "bandidos da região metropolitana", como afirmou o editorial da edição anterior.

Precisamos, sim, de liberdade de imprensa, urgente. Muito mais, precisamos de editorialistas que leiam o próprio jornal. Editorialistas que consigam associar fatos e casar informações que sejam úteis aos leitores, e não apenas ao caixa da empresa.

Puritanismo e farsa

Na adaptação da vida de Júlio César para o teatro, escrita no final do século 16, Shakespeare (1564-1616) não só introduziu ingredientes dramáticos apropriados à representação no palco, mas tratou de casar a tragédia com seu tempo. Leia-se, o puritanismo de Elizabeth I (1533-1603) e o terror usado por ela para manter a ordem social. Basta citar que a todo-poderosa tratou de afastar a sombra de seu trono da mesma maneira que os conspiradores romanos. Mandou decapitar a própria prima, a rainha da Escócia, Mary Stuart (1542-1587).

No cotejo do texto do dramaturgo inglês com o de Plutarco, fonte primordial, verificam- se algumas divergências históricas, mas sobressai o acento na disputa política, entre os áulicos, pelo poder romano. Era o tempero colhido fresco no calor das disputas no período elisabetano. Não por acaso, também ganha força motriz o papel desempenhado por Cássio, como "espelho" que reflete os "méritos ocultos" de Bruto. A eminência parda do complô incita para a conjuração exatamente o homem que olha com indiferença a morte e a honra. Cássio pega o gancho da honra e discursa:


"De honra é o tema de que vou falar-vos. Ignoro o que pensais vós e os demais homens a respeito desta vida, mas, quanto ato que a mim diz respeito, tanto me daria não viver a viver debaixo do terror de alguém semelhante a mim mesmo".


São palavras que o bardo inglês põe na boca da personagem. Mais adiante, a personagem questiona Bruto:

"Quem é tão firme que não possa ser seduzido?"

No diálogo construído por Shakespeare, entre César e Antônio, César avalia em Cássio um homem que "pensa demais, tais homens são perigosos", "lê muito". "Tais homens nunca se sentem bem diante de alguém que seja maior do que eles, e, portanto, são perigosíssimos…"

O evangelista Lucas recomenda que se dê a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Os surrealistas Paul Éluard e André Breton subverteram: "É preciso tirar de César o que não é de César". Parte dos profissionais do Direito, que se autodefinem imparciais, proclamam outra máxima, mas com o mesmo DNA do evangelista: "Dar a cada um o que é seu". Este aforismo, oposto ao dos franceses acima, é, a toda evidência, a forma jurídica do conservadorismo, da manutenção do status quo, que se traduz por dar ao pobre a pobreza, e ao rico a riqueza.

Impressiona o elisabetismo da RBS, que critica a "visão míope", semelhante às justificativas dos conspiradores Cina: "Liberdade! Independência! Morreu a tirania!" e Bruto: "Saiamos, depois, indo até o Fórum e, brandindo sobre nossas cabeças nossas armas rubras, clamemos todos: ?Paz, independência e liberdade!?"

Esta mesma empresa carrega nas cores dramáticas para colocar seu sócio Carlos Sperotto no sítio eletrônico Agrol como vítima da intolerância do estado. Logo ele, o líder da Farsul! Em surto delirante, esta personagem quis invadir o Palácio Piratini para prestar "solidariedade" aos policiais em greve, que aproveitaram para permanecer na sede do governo após terem sido recebidos em audiência pelo governo.

Interessante isto: o grupo constrói uma informação esquecendo que Sperotto, ambivalente, usava de todos os meios para impedir o trabalho dos servidores do Incra nas vistorias às fazendas, que lei federal determinava para fins de medir a produtividade. Lá nas fazendas da UDR gaúcha havia apenas a solidariedade das armas…

Os conjurados golpistas, que desde o dia subseqüente à vitória do atual governo trataram de minar todas as formas de diálogo, impondo o jugo da maioria raivosa respaldada pelo coronelismo eletrônico, encerram o período que tentaram golpear através de CPIs, com uma declaração reveladora a respeito dos reais motivos pelos quais estavam deixando de levar adiante o processo de impeachment: "Para não fazer do governador uma vítima". Desmonta-se cinicamente o espetáculo, e os holofotes que repercutiram ao vivo pelos telejornais, em editoriais ranzinzas, desligam-se abruptamente sem que o público possa ver sequer o sangue derramado pela vítima.

As palavras que justificaram o falecimento do impeachment são quase as mesmas palavras que os conspiradores usaram no assassinato de Júlio César na tragédia shakespeariana:


"Cássio ? Quem suprime vinte anos de uma vida, suprime vinte anos de medo da morte.

Bruto ? Admiti isto e, então, a morte é um benefício! Deste modo, somos amigos de César, pois abreviamos os anos que ainda lhe sobrariam de temor à morte!"


Cotejando a tragédia elisabetana com as invectivas do coronelismo eletrônico e sua bancada com assento na Assembléia, nota-se que a tragédia repete-se, mais uma vez, como farsa.

(*) Funcionário público federal