Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Gilberto de Mello Kujawski

ASPAS

O CASTELO DE MINO CARTA

"?O Castelo de Âmbar?", copyright O Estado de S. Paulo, 28/06/01

"Mino Carta, filho e herdeiro intelectual (e passional) do grande jornalista Giannino Carta, lança, agora, seu depoimento de homem de jornal, vivido e desiludido, num livro singularmente bem escrito, intitulado O Castelo de Âmbar, misto de ficção e memória (mais ficção que memória). ?Bem escrito? é dizer pouco. Na verdade, Mino Carta revela-se um alquimista do estilo, conjugando melodia e metáfora em achados surpreendentes, mesmo escrevendo italiano em português.

Relembra, ao início, o ambiente mágico de sua infância na Itália, povoado de seres mitológicos com os quais ele e sua família viviam em estreita intimidade, a começar por Ulisses, sim, o Ulisses de Homero – que ?vivia conosco na casa bailarina ao vento das oliveiras?.

O charme do estilo começa na própria personalidade do autor, marcando suas preferências, sua profissão, sua conversa e o modo de vestir desse guru da esquerda, que não consegue livrar-se da maneira aristocrática de ser, à semelhança do cineasta Luchino Visconti. Mino é um aristocrata do gosto, um esteta renascentista da cabeça aos pés. E, como bom renascentista, meio confuso, equívoco e contraditório. Teatral em tudo, em suas efusões de ternura e em suas freqüentes explosões de cólera; teatral até em seus monólogos interiores diante de um copo de uísque, quando está sozinho num bar.

Os personagens do romance recebem nomes fantasiosos, nem sempre fáceis de traduzir. Fernando Henrique é NH (?Se lhe derem uma flauta, seduz serpentes?). Tancredo Neves é Diamantino (?Tirem este homem de perto de mim, é a maior goela da política?, referindo-se a FHC). Ulysses Guimarães é o doutor Enéias (?O seu projeto bate com o meu?). Golbery do Couto e Silva é o general Tibúrcio (?Sou é boquirroto, afirma às gargalhadas?). José Sarney é o Seresteiro (?cabelo e bigodes reluzindo?). Mário Covas é o Galego (?maneiras fortes?). Fernando Collor é Lindolfo (?toques de delírio e loucura?). Zélia Cardoso de Mello é a professora Carlinga (?Ministério dos Negócios Corriqueiros?). Mário Amato é o comendador Rucoletti (?Foi você quem inventou Tosco?, dirigindo-se ao autor do livro). Tosco é Lula, o queridinho do coração (também chamado de ?o derrotado vitalício?). Mino é tão crédulo que acredita em Lula, mesmo sabendo-o ?tosco?, talvez aburguesado, etc. O aristocrata do gosto está magnetizado pelo seu oposto, o plebeu, vendo nas suas mãos e na sua voz rude mais verdade do que no rosto balofo dos burgueses bem nutridos.

Mas a besta negra do livro são os grandes empresários da mídia, os chamados ?ba-rões da imprensa?, indistintamente e sumariamente denunciados pelo memorialista como gente egoísta, medíocre e subserviente aos governos:

?Reparem: a nossa imprensa serve ao poder porque o integra compactamente, mesmo quando, no dia-a-dia, toma posições contra o governo ou contra um ou outro poderoso. As conveniências de todos aqueles que têm direito a assento à mesa do poder entrelaçam-se indissoluvelmente.?

Aqui pega o carro. Em primeiro lugar, toda generalização é perigosa, e suspeita de satanização. A imprensa não pode ser acusada em bloco, como um todo, porque esse todo é feito de muitas partes heterogêneas. Em segundo lugar, será que o autor tem autoridade para sustentar denúncia tão generalizada e radical, quando se sabe que ele fez carreira à sombra dos barões da mídia, em concurso com as pessoas físicas e jurídicas que agora invectiva? Não estará ele sob suspeição? Mino Carta ganhou nome, projeção e dinheiro trabalhando nos maiores órgãos da imprensa paulista, o que significa que, de alguma forma, aprovava sua linha de pensamento e ação.

Como, então, vem atacar em cheio e às cegas os seus antigos comandos?

Não vale a alegação de que sempre foi muito independente em sua maneira de trabalhar. Esse senhor não tem o monopólio da independência. Aqui se mostra aquela duplicidade do não querer querendo, que faz parte da conduta cambiante, contraditória e equívoca desse grande esteta renascentista (com laivos preciosistas). Pois, queira ele ou não queira, sua personalidade profissional foi forjada na fogueira das vaidades da grande imprensa, onde a luta pelo poder surpreenderia até as feras da política profissional. Agora, Mino tenta redimir-se de seus anos de servidão, criando uma revista cara e luxuosa dedicada ao denuncismo metódico e impactante dos atos e das personalidades oficiais. Não estará ele incluído na sua denúncia implacável do ofício jornalístico? Ou – mais uma vez – pretende monopolizar só para si o direito à independência de opinião e investigação?

O dono da Carta Capital se vangloria de defender o que chama de ?verdade factual?. Diz que esta é uma só. Por exemplo, ?esta de onde lhes falo é uma mesa. Este é um microfone.? Ora, ora, que inocência, sr. Carta. Eu lhe perguntaria se esse copo à sua frente está meio cheio ou meio vazio. Se esse tom cinza de sua fina camisa italiana é o negro embranquecido ou o branco escurecido. Como é que faz o jornalista em situações semelhantes? Claro que ele agarra a xícara pela asa que melhor lhe convém. Onde está a verdade factual? Chame dez fotógrafos e teremos dez fotos distintas dessa mesma mesa e desse mesmo microfone.

Em suma, uma coisa é a verdade factual, que pode ser uma só. Outra coisa é sua comunicação por meio de imagens ou palavras. Esta é a verdade midiática, a única acessível para a imprensa. Mesmo sem má-fé, mesmo sem busca de sensacionalismo, a imprensa, ao comunicar a verdade factual, provoca sua defasagem, ao filtrá-la na subjetividade do comunicador, na escolha do ângulo ou da pose de uma foto.

Nesse belo livro, todas as dúvidas são permitidas sobre os fatos e as pessoas que o autor joga em cena, e todas as suspeitas rondam seus temerários juízos de valor. (Gilberto de Mello Kujawski, jornalista e escritor, acaba de publicar o ensaio Idéia do Brasil – A Arquitetura Imperfeita (Senac))"

    
    
              

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