Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Gilberto Dimenstein

CASO SONINHA

"Soninha dá uma boa lição aos nossos filhos? Talvez", copyright Folha de S. Paulo, 25/11/01

"Só comecei, de verdade mesmo, a me preocupar com as drogas quando virei pai. Mais precisamente, quando meus dois filhos, insinuando-se na adolescência, se tornaram potenciais consumidores.

Acompanho de perto, há mais de uma década, a violência contra crianças e adolescentes, estimulada, em larga medida, pelas mais diversas modalidades de dependência química. Por produzir material didático e desenvolver currículos, convivo com alunos e professores de escolas de elite; a partir das confidências, noto que o consumo de drogas é generalizado -muito maior, suspeito, do que aquilo que indicam as pesquisas e mesmo do que aquilo de que desconfiam os pais.

Diante de tantos dramas e, em especial, graças à paternidade, fiquei bem mais conservador, distante não só cronologicamente dos tempos da adolescência -o adolescente e o adulto estão quase irreconhecíveis. Tal distância ficou nítida ao refletir sobre o comportamento da apresentadora Soninha, que, em entrevista à revista ?Época?, falou de seu hábito de fumar maconha e perdeu o emprego na TV Cultura, onde tinha um programa para adolescentes.

Meu primeiro e íntimo impulso foi concordar com a TV Cultura. Afinal, não se deveria permitir que alguém, responsável pela apresentação de um programa destinado justamente a adolescentes, transmitisse a idéia de que fumar maconha é normal. Naquela posição, Soninha é, queira ou não, um exemplo; vida pública e privada se confundem. Além do mais, recebia dinheiro de uma emissora educativa.

Tal cargo também não deveria ser entregue nem a quem fizesse apologia da bebida ou do fumo. Não pagamos, com nosso imposto, a uma emissora para deseducar; consumo excessivo de drogas é doença, consequência de dependência. Estimular dependência, seja qual for, pode até não ser crime, mas é leviandade.

Já sabemos que a maconha de hoje não é a maconha de antigamente, está muito mais forte. Já sabemos também que, em muitos casos, provoca distúrbios neurológicos.

A droga pega, de fato, jovens sem projeto de vida, sem sonhos, com baixa auto-estima, que vivem em lares desestruturados -contextos que atingem uma parcela cada vez maior dos adolescentes.

Existe um sério risco de empurrar jovens para a dependência caso percebam em personalidades públicas uma autorização à transgressão.

Mas a verdade é que talvez a apresentadora tenha mais poder de persuasão do que alguém que, apesar de bem-intencionado, tenha um discurso moralista, movido a relatos de tragédias. Essa possibilidade deve ser levada a sério, o que faz de Soninha não uma comunicadora irresponsável, mas uma educadora.

Uma investigação de antropólogos da USP e da PUC, patrocinada pela entidade ?Parceira contra as Drogas?, mostrou que o discurso ?adulto? tem pouco efeito. Jovens acreditam estar sendo enganados por uma sociedade que demoniza a maconha, mas reverencia a droga lícita. Amparam-se (e com certa razão) nas estatísticas sobre mortes associadas ao consumo do cigarro e do álcool. Encontram na maconha, por exemplo, um prazer que os faz encarar com desdém as campanhas terroristas. Para o jovem, a morte está no mais longínquo futuro.

Nos bares que serviram de base para a pesquisa, os antropólogos detectaram, no discurso dos jovens, uma relação entre a maconha e uma ?certa pureza, a ausência de produtos químicos ou artificiais, o que justifica seu uso mais frequente?.

Mais: ?A noção de pureza remete ao que é natural, a um mundo supostamente mais simples, integrado e harmônico, em oposição ao mundo moderno, complexo e poluído?, afirma o estudo.

Um dos principais estudiosos brasileiros da dependência, o psiquiatra Dartiu Xavier Mendonça, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), defende a idéia de que, diante da generalização do consumo, existiria apenas uma alternativa sensata: a redução de danos. ?É ensinar a lidar com as drogas, evitando o abuso e, se abusar, evitar que se exponha a risco?, afirma Dartiu.

É, lembra ele, exatamente como a sociedade faz com o álcool. Repete-se: ?Se beber, não dirija?.

?A atitude de Soninha é correta e elogiável porque ajuda a reduzir o dano?, afirma a antropóloga Rachel Trajber, coordenadora técnica da pesquisa patrocinada pela ?Parceira contra as Drogas?.

Soninha não imaginava que viraria um instrumento de marketing, transformada em outdoor -e, aí, errou pela ingenuidade ou pela vaidade.

Mas o que importa: ela condena abusos do consumo, recomenda precauções e está a milhares de quilômetros de ser uma desvairada. Age, enfim, na linha de redução de danos -e, certamente, vai ser mais ouvida entre os jovens do que muita gente seria.

Seu comportamento é, apesar dos pesares, mais educativo do que destrutivo.

PS – Recebi nesta semana uma pesquisa confidencial feita por psiquiatras e psicólogos dentro de uma das mais importantes escolas brasileiras -os entrevistados tiveram assegurado sigilo. Dos entrevistados, 20% admitiram usar, em diferentes quantidades, maconha e outras drogas. Imagine tal pesquisa fora do ambiente escolar, onde os alunos se sentissem menos desinibidos."

 

"Sorry, Soninha, mas você pisou na bola", copyright Folha de S. Paulo, 22/11/01

"Sempre gostei de me intoxicar. Não sei se a culpa é dos meus pais que, desde a minha mais tenra idade, me deixavam exposta aos gases da gasolina de avião, em Interlagos. Mas eu sempre adorei um tóxico. Ontem mesmo, enrolei e fumei seis embalagens de batatas sabor barbecue.

Maconha para mim, então, deixou de ser tópico de conversação em algum momento entre o princípio e a metade dos anos 80. Fumo ou suflê de chuchu, para mim dá na mesma: não diz absolutamente nada. Tóxico por tóxico, acho bem pior a ginástica aeróbica, que emburrece e vicia tanto quanto e nem faz rir.

Isso posto, sou obrigada a dizer que minha colega Soninha, a quem admiro e respeito (já disse isso a ela quando participei de seu programa na TV Cultura), errou redondamente ao admitir em depoimento à ?Época? que fuma maconha. Se a revista tratou ou não os entrevistados com malícia, se negligenciou a informação de que a reportagem seria tema de capa, não vem ao caso. Todos os entrevistados estavam cientes do risco que corriam. Dona Soninha em especial, já que é jornalista e deveria saber do que jornalistas são capazes.

Outro fato a ressaltar é que não importa qual o motivo de Soninha e de os outros entrevistados terem aberto o coração. Pode ter sido vaidade, heroísmo, ingenuidade ou vontade de ter o seu minuto Alexandre Frota. A verdade é que, querendo ou não, eles só fizeram avançar o debate sobre o uso de cannabis no país. Essa conversa ainda dará mais pano para manga, e isso devemos a eles.

Ocorre que Soninha deixou seu patrão, o sr. Jorge Cunha Lima, presidente da Fundação Padre Anchieta, de mãos atadas. Não há espaço para interpretações. Fumar maconha é contra a lei. Soninha trabalhava para uma empresa pública. Pior: dirigia um programa dedicado aos jovens. Na nota de demissão, Cunha Lima disse que não pode um funcionário declarar que está infringindo a lei. Está certíssimo.

Conversei recentemente com a sábia colega Rosely Sayão sobre esse assunto. Tenho vários amigos com filhos peraltas e menores de idade. Já tive a propensão de me oferecer para fazer o serviço sujo, na tentativa de poupar os pais da tarefa. Cheguei até a consultar o caro doutor Jair Mari para saber se ia em frente. Tanto Rosely quanto meu amigo, que é professor da Escola Paulista, disseram terminantemente que não. Fumar maconha é contra a lei, e pronto, acabou!"

 

"Quem fuma maconha?", copyright Jornal do Brasil, 24/11/01

"A revista Época espalhou cartazes pelas cidades brasileiras alardeando que algumas pessoas conhecidas costumam fazer uso regular de maconha. Uma dessas pessoas que resolveram abrir o segredo de uns ?tapinhas? de vez em quando foi Soninha, apresentadora do programa RG, da TV Cultura, e colunista da Folha de S. Paulo, além de contratada da ESPN Brasil como comentarista de esportes. Soninha foi despedida sumariamente da TV Cultura. Está aberto o debate.

Ora, nenhum dos entrevistados foi forçado a fazer nenhuma revelação que não quisesse fazer. Todos ali, sem exceção, sabiam que o tema abordado era nitroglicerina pura, que poderia ?dar o maior rebu?, como Soninha declarou depois, em outras entrevistas. Entretanto, corajosamente abriram seus corações. Alegar que foram ludibriados, ao verificar o destaque que a revista deu à matéria, é muita inocência. A direção da TV Cultura tem o direito de despedir quem quer que seja, quando, do ponto de vista dela, forem contrariadas suas normas de conduta. A Folha de S. Paulo não pensa como a Cultura, tampouco a ESPN Brasil. E a vida segue aos solavancos.

Claro que se Soninha declarasse que toda noite pára num boteco para tomar um chope com os jovens participantes do seu debate televisivo, ninguém diria absolutamente nada. Nenhuma contestação viria de setor algum, nem daqueles que se preocupam com a questão calamitosa das drogas entre os jovens. Aliás, se fosse para falar das preferências etílicas do grupo entrevistado, a revista não abriria mais do que meia página.

Entre os ?modernos? existe uma tendência equivocada a glamourizar aqueles que se drogam e os que, ?vitimas de uma sociedade opressora?, vendem os ?bagulhos?. Esse é o perigo. E aí está o centro da questão. Não se deve ?brincar de achar? que é um fato banal alguém fumar maconha. Mesmo que esse alguém exerça sua profissão com talento e assiduidade. Normalmente – existem exceções, claro – quem fuma maconha, mais cedo ou mais tarde, tende a experimentar cocaína. Estou apenas usando dados já divulgados e que relatam a escalada dos ?pequenos vícios? entre os adolescentes, levando-os sempre, perigosa e inutilmente, a mais e mais.

Só que aí entra o tráfico, essa praga mundial tão devastadora quanto o terrorismo. Na verdade, misturam-se terror e droga. A Aliança do Norte, que com o apoio bélico americano está prestes a voltar ao poder no Afeganistão, é uma das maiores redes internacionais do tráfico de ópio. Na Colômbia, as Farc misturam suas ?convicções? à cocaína. Nunca é demais frisar: não quero nem estou acusando ninguém. Mas o ?fuminho? que Soninha queima eventualmente vem de algum traficante. E ele não vende apenas a ?inocente? maconha. Vende também cocaína, crack, haxixe, anfetamina. O traficante-?herói? está à frente do crime organizado que alicia e recruta jovens drogados nas escolas e nas favelas. Esses adolescentes que se drogam e começam cometendo pequenos delitos são os que vão engrossar o número das estatísticas policiais quando morrem de forma violenta. Nem todos têm a chance de ser bem-sucedidos e comedidos como Soninha.

Sou contra a hipocrisia, mas sou mais contra ainda o processo de banalização do uso da droga. Soninha sabe disso. Ela não é hipócrita. Não a conheço pessoalmente. Vejo-a na televisão e leio seus textos. Ela deveria ter uma visão mais cuidadosa dessa questão que pode envolver o futuro de jovens a quem ela tão bem sabe cativar. (Aquiles Rique Reis, músico, é integrante do conjunto MPB4)"