Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Globo e Lula, perguntas e respostas

CRISE NA GLOBOPAR

Claudio Julio Tognolli (*) 

Na edição da semana passada deste Observatório, Nelson Hoineff chamava a atenção para as disquisições e desdobramentos do estado concordatário da Globopar [veja remissão abaixo]. Os apontamentos de Hoineff, com rico numerário, fornecem um singular lastro para uma discussão bem outra: a hoje tão incensada imparcialidade da Globo em relação a Lula e ao PT merece esse nome ou seria apenas um deslavado puxa-saquismo desbundado em relação ao novo presidente do Brasil?

Lula ganhou mais de uma hora no Jornal Nacional. Ok, foi o presidente mais votado do mundo. A equipe do JN, tão logo Lula disse o clássico "boa noite" em nome de William Bonner, prorrompeu em aplausos candentes, segundos após as imagens terem sido encerradas. Ok, era um direito de manifestação de simpatizantes do Lula. Mas, falando do viés estrutural da Globo, volta a pergunta: tudo isso em nome de imparcialidade instrumental ou de imparcialidade instrumentalizada?

Se cremos sincera essa indagação, temos de expôr aqui as duas possíveis respostas. Tratemos, em primeiro, da resposta vindicante de que a Globo, finalmente, acordou para a idéia de que, no quesito venda de produto, a imparcialidade cai bem ao produto jornalístico.

Essa resposta ganha créditos visceralmente válidos e pertinentes quando da análise de um caso recente: na quinta-feira, 26 de setembro de 2002, o empresário Antônio Ermírio de Moraes, num ato falho ou pura cidadania consentida, admitiu à Folha de S. Paulo, au grand complet, alguns pontos daquilo que o populacho convencionou chamar de "Comado Delta" ? que até letra da banda Planet Hemp virou. Eis o que disse Ermírio de Moraes:


"Eu acho que a grande chance é essa. A saída do ex-presidente da Petrobras Philippe Reichstul da Globo é um mau sintoma para a campanha do Serra. Desmontou a máquina. Eu entendi que estava montado um esquema macro de apoio a Serra. O ex-presidente da Petrobras é amigo íntimo do Serra. É muito difícil o Serra se eleger. Com a saída de Reichstul da TV Globo, Serra perde um parceiro importante."


A reação dos Marinho é o mais forte argumento para a nossa primeira resposta: a Globo ungiu Lula e ao PT porque não quis abjurar da fé na democracia ? e, portanto, não abjurou da nova fé no imparcial. Vejamos o que disse João Roberto Marinho, no Painel do Leitor da Folha, em 27 de setembro passado:


"Em novembro do ano passado, o Conselho Editorial das Organizações Globo deu início a uma série de reuniões para preparar a cobertura das eleições gerais de 2002. Com base nos princípios editoriais que sempre nortearam o grupo ? informação com isenção, imparcialidade e credibilidade ?, a idéia era fazer uma cobertura que privilegiasse o debate de idéias, e não a troca estéril de acusações, que verificasse sempre se as promessas dos candidatos são realizáveis e que procurasse mostrar aos eleitores um diagnóstico do país com base em números. Ficou desde sempre estabelecido que os principais candidatos teriam espaços iguais, tratamento equânime e que nenhum estaria imune a críticas procedentes. Nestas eleições, graças à liberalização da legislação eleitoral no que diz respeito à mídia eletrônica, a TV Globo pôde fazer uma cobertura mais abrangente do que a realizada em anos anteriores ? com entrevistas em seus telejornais e reportagens especiais amplas e esclarecedoras. Todos os setores da sociedade ? imprensa, partidos políticos, leitores, ouvintes e telespectadores ? aplaudiram essa nossa postura. E o reconhecimento de nossa isenção e imparcialidade é motivo de orgulho para todos nós. Por essa razão, causaram-nos surpresa e indignação as declarações do empresário Antônio Ermírio de Moraes em entrevista à Folha publicada em 26/9 (?Lula está longe de ser estadista, diz Ermírio?, Eleições 2002, pág. Especial 3). Nela, ele diz: ?A saída do ex-presidente da Petrobras Philippe Reichstul da Globo é um mau sintoma para a campanha do Serra. Desmontou a máquina. Eu entendi que estava montado um esquema macro de apoio ao Serra?. Antônio Ermírio, na verdade, não entendeu nada. Nem Philippe Reichstul deixou as Organizações Globo (ele permanece em nosso Conselho de Administração), nem jamais participaríamos de esquema nenhum ? nem micro, nem macro ? para apoiar esta ou aquela candidatura. A maior parte do empresariado brasileiro já é capaz de entender que um órgão de imprensa não tem chances de sobreviver se não oferecer, sempre, informação de qualidade, o que pressupõe, repetimos, isenção e imparcialidade. Alguns poucos ainda não entendem esse princípio básico. A estes, só resta aprender com as lições cotidianas da realidade. João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo (Rio de Janeiro, RJ)"


A nova estrela

Postos os argumentos da primeira resposta, passemos à segunda: a Globo "lulou" ao osso porque vai precisar da ajuda do presidente para contornar a sua caleidoscópica situação financeira. E, para sustentar essa resposta, nossa fonte de consulta é uma dissertação de mestrado defendida há dois meses na Escola de Comunicações e Artes da USP: chama-se A Média da Mídia, e o autor é o veterano repórter João Wady Cury, orientado pelo professor-doutor Carlos Marcos Avighi. 

O aposto da dissertação define assim as empresas dos Marinho:


"A Globopar, Globo Comunicações e Participações S/A, reúne empresas que atuam em setores como TV a cabo (operação e distribuição), TV por microondas, produtora de filmes, computação gráfica e programas de televisão, telecomunicações (Maxitel, Tele Nordeste Celular e Tele Celular Sul), fabricação de equipamentos telefônicos (a multinacional japonesa NEC Corporation), operadora de pagers (Teletrim), fazendas de gado de corte, construção e administração de shopping centers (Botafogo Praia Shopping-RJ e Shopping Interlagos-SP), hotéis, centros comerciais, prédios residenciais e comerciais, instituições financeiras (sócia do Arab Banking Corporation no ABC-RoMa, e Seguradora Roma), mineradoras entre outras atividades que constam nos balanços pesquisados. É fundamental uma descrição de cada setor e suas principais empresas"


Diz a dissertação de João Wady Cury que o balanço consolidado da Globopar no ano de 1998, além dessas informações, registra ainda o endividamento das empresas que formam a Globo Comunicações e Participações S/A: cerca de 3,5 bilhões de dólares, de acordo com o levantamento realizado e assinado pelos técnicos da Ernest & Young Auditores Independentes S/C. Suas principais dívidas, refere o trabalho de Cury, são decorrentes de emissão de eurobônus, commercial papers e empréstimos adquiridos junto a seus principais credores. A curto e longo prazo, seus credores são os bancos internacionais e o montante da dívida, contraída em moeda estrangeira, é de aproximadamente US$ 2,9 bilhões. Estão nesse grupo de credores o Bank of Boston, Banco Sumitomo, o Banco Mitsubishi, o Banco BBA Creditanstalt S/A, o Banco Sogeral S/A, o Unibanco e o Banco de Tokyo.

Agora sai também da dissertação de Wady Cury o argumento que habilitaria tecnicamente a resposta segundo a qual é instrumentalizado o "lulismo" da Globo: para instituições financeiras brasileiras, a dívida em reais soma 616,7 milhões de dólares e seu principal credor é o governo brasileiro, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), cujo montante em 1998 era de 148,7 milhões de dólares.

A pesquisa de Cury preocupou-se também, em relação à dimensão dessa dívida, com as empresas mais oneradas dentre as que formam a Globopar. A principal dívida é da própria holding Globopar, cuja valor é de aproximadamente 1,3 bilhão de dólares. Seguem-se a ela a Globo Cabo S/A, com 650 milhões de dólares, a NEC do Brasil com 645 milhões de dólares, a Net Sat S/A com dívida de 513 milhões de dólares e a Globo Cabo Holding, com 127 milhões de dólares. Note-se que, somadas as operações dessas dívidas maiores, a TV paga é a mais onerada, devendo cerca de 1,29 bilhão de dólares, principalmente devido aos altos custos de investimento em equipamentos de produção, transmissão e instalação. O chamado perfil da dívida também é importante conhecer. Do total de 3,5 bilhões de dólares, cerca de 2,1 bilhões de dólares referem-se a pagamentos que deveriam ser feitos no curto prazo (um ou dois anos) e 1,1 bilhão de dólares a longo prazo, que pode variar de três a 15 anos. No mesmo ano de 1998, o investimento da Globopar com pagamento bruto de juros de suas dívidas foi de 463 milhões de dólares.

Agora, ainda defendendo nossa segunda resposta, põe-se aqui também outro extrato da tese de João Wady Cury. Dessa vez, pode-se intuir do que ele escreveu, o espaço editorial do Globo dedicado à vitória de Lula seria uma recidiva do que fora feito com FHC no seu processo de reeleição.

Cury aponta que na edição do dia 31 de julho de 1998, O Globo destaca, nas duas primeiras páginas do caderno de política (páginas 3 e 4), fatos do dia. Na primeira, uma página dedicada a Fernando Henrique Cardoso, que critica o Poder Judiciário, em discurso na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por priorizar em seus investimentos a construção de sedes luxuosas. Na outra, 75% da página é ocupada por reportagem sobre a pesquisa do Ibope que aponta o presidente da República eleito no primeiro turno, caso a eleição fosse naquela semana, dois meses antes do pleito. Na mesma edição, página 8, O Globo confunde o leitor com uma série de informações contraditórias, da forma como a página é editada, fazendo o deslocamento da atenção da leitura. Uma grande foto, aberta em quatro colunas no alto da página, mostra Lula em campanha pelo centro do Rio de Janeiro com aliados políticos. O título que prevalece na página, no entanto, e que está imediatamente acima da fotografia se refere a outro assunto e se sobrepõe à fotografia: "FH promete levar metrô a Niterói e São Gonçalo", e a linha fina, "Para Ronaldo Cesar Coelho, presidente disse que linha 3 será a obra prioritária de seu segundo mandato como presidente". O texto ressalta claramente a promessa de campanha, sem que haja amparo factual além da própria promessa ? a não ser, coincidentemente, que no exato dia seguinte, um sábado, Fernando Henrique iniciaria sua campanha pelo país:


"Se o presidente Fernando Henrique Cardoso for reeleito, até o final do seu segundo mandato o Rio poderá ter ligação de metrô com Niterói, São Gonçalo e Itaboraí. Um túnel subterrâneo, sob as águas da Baía de Guanabara, será construído para o metrô, segundo prometeu ontem Fernando Henrique ao deputado Ronaldo Cezar Coelho (PSDB-RJ). Ele disse ao deputado que essa será a sua obra prioritária num segundo mandato. A obra custará R$ 1 bilhão. Fernando Henrique disse a Ronaldo que esta semana foi publicado o edital de licitação para a escolha da empresa que fará o estudo de viabilidade técnica da obra. Só esse estudo deverá custar R$ 3,5 milhões e levar um ano para ser concluído."


Diz Cury que "a confusão no texto aumenta quando a mesma reportagem passa a discutir, com personagens do partido do presidente da República, o PSDB, como ficará dividido o palanque durante a campanha, diante da possibilidade de um eventual apoio de Fernando Henrique ao candidato Cesar Maia, do PFL. Rapidamente, no entanto, a edição lança um subtítulo apaziguador: "Coordenador da campanha de FH garante palanque para todos".

Dizer que uma ou outra resposta é verdadeira seria incorrer num dos crimes lesa-pátria do jornalismo: o do anacoluto, in illo tempore. A resposta virá com o que, obviamente, a Globo produzir daqui para frente ? o que, aliás, também não deixará de ser um grande teste para a mais nova estrela do casting global: Luis Inácio Lula da Silva, o presidente eleito.

(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor do Unifiam (São Paulo), da ECA-USP, Consultor de jornalismo invetsigativo da Unesco no Brasil 

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