Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Globo e o engano do povo

ROBERTO MARINHO (1904-2003)

Caio Navarro de Toledo (*)

Roberto Marinho construiu seu império de comunicação durante o regime militar. A partir do acordo com o grupo norte-americano Time-Life, suas empresas prosperaram e se consolidaram; durante mais de duas décadas, a Rede Globo foi o maior e eficiente sustentáculo político e ideológico da ditadura militar instaurada com a derrubada do governo constitucional de João Goulart. Uma frase do general-presidente Garrastazu Médici talvez sintetize a relação carnal entre a Globo e o regime. Em plena vigência dos anos de chumbo e do AI 5, o ditador declarou: "Sinto-me feliz todas as noites quando assisto o noticiário. Porque, no noticiário da Globo, o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz".

Sabe-se que, décadas atrás, Marinho manifestaria suas primeiras afinidades eletivas com regimes de natureza discricionária. Como lembrou a carta de um leitor [Federico Erdocia] na Folha de S.Paulo, publicada no Painel do Leitor (8/803), o jornalista teve ativa "participação no DIP, na ditadura Vargas, censurando jornais". No Estado Novo, pois, ensaiou seus primeiros passos terrestres e provinciais; na ditadura militar, instaurada com o apoio militante de O Globo, voou alto e longe.

Por ocasião da campanha das Diretas-Já, sob o férreo comando do dr. Roberto ? como os serviçais a ele se referem ?, a Rede Globo omitiu o que se passava nas ruas e nas praças do país. No dia 25 de janeiro de 1984, por exemplo, o Jornal Nacional ? acertadamente denominado de "a hora do Brasil na TV" ?, informou, de forma insólita, que milhares de pessoas se reuniram na Praça da Sé para comemorarem o aniversário da cidade de São Paulo. Na verdade, mais de 200 mil pessoas ali foram para exigir eleições diretas para presidente da República. Na chamada Nova República, a Globo apoiou Sarney sem restrições ? em especial, a "campanha patriótica" em torno do Plano Cruzado; com os militares na retaguarda, defendeu a ampliação do mandato presidencial do oligarca do Maranhão, conquistado graças à corrupção e ao fisiologismo explícitos ? denunciados inclusive por setores da grande imprensa brasileira.

Desde sempre, o PT e os movimentos políticos e sociais de esquerda eram freqüentemente criminalizados; a liderança mais prestigiosa das esquerdas, Lula da Silva, era execrada e, como "figura maldita", raramente comparecia nos noticiários da TV.

A Rede Globo, pela iniciativa pessoal de Marinho, viria apoiar abertamente a candidatura de Fernando Collor, em 1989. Um episódio foi marcante na campanha eleitoral: no dia seguinte ao segundo debate televisivo entre Lula e Collor, às vésperas do segundo turno das eleições, o Jornal Nacional editou facciosamente o debate entre os candidatos. Com muita certeza, o preferido de Marinho ? "vitorioso" na versão da Globo ? conseguiu influenciar boa parte dos eleitores ainda indecisos, após esse noticiário transmitido algumas horas antes da votação. Nessa ocasião, Leonel Brizola protestou contra a manipulação grosseira; aliás, foi ele, até recentemente, o único político que ousava questionar a atuação arbitrária da Globo em momentos relevantes da vida política brasileira. (Lembre-se que, em 1982, a TV Globo, mancomunada com a empresa Proconsult, tentou fraudar a primeira eleição direta para o governo do estado do Rio de Janeiro. Se não fosse a ação enérgica de Brizola [e o trabalho da equipe de reportagem da antiga Rádio Jornal do Brasil] denunciando a farsa em curso na apuração dos votos, o candidato de Marinho e da ditadura, Wellington Franco, poderia ser o vitorioso. Mas, como se pôde perceber pelas suas últimas declarações, o chefe nacional do PDT também se rendeu ao sucesso do grande empresário falecido.)

"Quintal cultural"

Marinho não deixou de apoiar Collor até o momento em que o lodaçal ainda não exalava um odor repulsivo. A partir das massivas manifestações populares em defesa do impeachment, o empresário foi suficientemente hábil para se afastar de Collor, ao contrário do dileto amigo de todas as horas, Antonio Carlos Magalhães, que, fiel ao presidente-corrupto, desceu com ele a rampa do Planalto.

Com a intensa propaganda do Plano Real, a Globo contribuiu decisivamente para a eleição de Fernando Henrique Cardoso e nova derrota de Lula. Com FHC, a Globo governou. Em 2002, percebendo o tamanho do estrago econômico-social durante o reinado de oito anos, Marinho e a Globo procuraram se desvincular da candidatura oficial. Serra foi rifado e perdeu.

Nas últimas eleições presidenciais, o candidato do PT deixou de ser hostilizado pelos noticiários da rede nacional. Anunciada a vitória consagradora, o outrora barbudo-satanizado foi, numa entrevista inédita de uma hora de duração, beatificado no altar nacional do JN. Surgia, com a chancela da Rede Globo, um novo estadista brasileiro, nascido no agreste nordestino e egresso das classes populares.

Até o presente momento, Lula da Silva é um ilustre ícone da nova hagiografia global.

Quarta-feira, 6 de agosto de 2003, morreu o dono do império. Da direita à esquerda domesticada ? passando por empresários, sindicalistas, jornalistas, intelectuais e artistas (alguns destes, inclusive progressistas) ?, apenas se ouviram glorificações à "magnífica obra" realizada pelo dr. Roberto em defesa da economia brasileira e na consolidação das instituições democráticas no país.

Desde algum tempo, imortal na vetusta Academia sem ter escrito um livro sequer, Marinho, após sua morte, se transformou em herói nacional.

Antes de se dirigir ao velório, com alguns de seus mais eminentes ministros de Estado, o presidente da República decretou luto oficial por três dias, como última homenagem ao mais novo pai da Pátria.

A edição online do Jornal do Brasil (quinta, 7/8/03) difundiu uma avaliação que Lula da Silva fez da pessoa e do papel representado por Roberto Marinho em nossa história. Assim dizia a notícia:


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva divulgou nota oficial lamentando a morte do jornalista Roberto Marinho. Na opinião do presidente, o Brasil perde um homem que passou a vida acreditando no Brasil. "Como diria nosso amigo Carlito Maia: Tem gente que vem ao mundo a passeio, tem gente que vem ao mundo a serviço. Roberto Marinho foi um homem que veio ao mundo a serviço ? quase um século de vida de serviços prestados à comunicação, à educação e ao futuro do Brasil". Na comitiva presidencial que acorreu à residência do homenageado também estava o Ministro da Fazenda.


O sr. Antonio Palocci, ex-militante trotskista, diante das câmeras e microfones, foi ainda mais generoso em sua avaliação sobre a contribuição cultural e política do falecido. Suas palavras são definitivas: " (…) o dr. Roberto Marinho construiu o maior desse sistema, o Sistema Globo de Televisão, ajudando muito a integração do país e a expressão do Brasil no exterior (…) ele foi importante na consolidação das instituições democráticas no País. Portanto, é uma perda que o Brasil tem; mas nós devemos, mais do que qualquer coisa, aplaudir sua vida".

À noite, no horário radiofônico da Hora do Brasil, uma senadora do PT não deixou por menos: "Graças à Rede Globo, o Brasil não é um quintal cultural do Estados Unidos". Como, pois, não prantear o empresário desenvolvimentista, o democrata sem jaça e o combativo nacionalista?

Falsificações históricas

Exatamente 16 anos atrás, era radicalmente diferente a opinião de Lula da Silva e do conjunto do PT sobre figura de Marinho e da sua maior criatura. Discursando aos militantes e simpatizantes do partido, em 16 de setembro de 1987 ? nos tempos do "é dando que se recebe" de Sarney ?, Lula da Silva, sem paletó e sem gravata, não titubeou em seu juízo político sobre o nosso cidadão Kane e o papel ideológico representado pela Rede Globo: "Nós hoje somos um país com praticamente 20 milhões de crianças abandonadas; nós somos um país com 16 milhões de analfabetos; nós somos um país onde a história é contada pela Rede Globo de Televisão porque o senhor Roberto Marinho não faz outra coisa a não ser mentir para o povo".

Lula da Silva e seus assessores intelectuais têm afirmado que o Brasil e o mundo mudaram muito nas últimas décadas. Seria inevitável, pois, que o PT também mudasse; mais maduro politicamente e responsável ideologicamente, o partido teria se transformado. Desta forma, Lula e seus companheiros têm publicamente afirmado que as lideranças maiores do PT, inclusive ele no passado recente, produziram muitas bravatas. Como registra o dicionário Aurélio, alguns dos sentidos do verbo bravatear são "jactar-se de valente", "fanfarronar", "blasonar"… A qual destes três estariam aludindo os dirigentes quando fazem este arremedo de autocrítica?

Ainda não sabemos. O que bem sabemos, sim, é que hoje o núcleo dirigente do PT ? através da reabilitação de Roberto Marinho/Rede Globo de Televisão ? parece repudiar palavras de ordem que foram construídas pelos movimentos sociais e políticos na luta pela redemocratização do país. Segundo a hermenêutica dominante e oficial, o povo se equivocaria se ainda insistir em bradar o famoso refrão "O povo não é bobo, fora a Rede Globo".

Razões de Estado, hoje, imporiam a retificação da palavra de ordem: "O povo se enganal viva a Rede Globo".

A política econômica adotada pelo governo de Lula da Silva, até o presente momento, não mostrou nenhuma diferença em relação às diretrizes do neoliberalismo de FHC ? a rigor, aprofundou-as. Se um plano B será implementado, ainda não sabemos. O que bem sabemos, e é de se lamentar, é que, no plano dos simbolismos, o governo Lula da Silva tem decepcionado todos aqueles que julgavam que, a partir de sua vitória, seriam dados os primeiros passos para a criação de uma cultura democrática que não transigisse com imposturas e falsificações históricas.

(*) Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)