Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Globo faz jogo de cena

QUALIDADE NA TV

LAÇOS DE FAMÍLIA

Ana Lúcia Amaral

A polêmica que a Rede Globo tenta forjar a respeito de uma decisão de Juiz da Vara da Infância e Juventude, em ação promovida pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, pela qual ficou vedada a participação dos "atores-mirins" na novela Laços de Família, revela mais sobre a "filosofia empresarial" do que sobre o real significado da decisão judicial criticada.

É típico de entidade nascida e crescida sob o regime militar tamanha arrogância e prepotência. Arrogância e prepotência por se acreditar acima do bem e do mal – entenda-se da lei, da licitude e da legitimidade.

Vige, desde julho de 1990, a Lei nº 8.069, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que em consonância com o disposto no art. 227 da Constituição Federal de 1988 cuida da disciplina dos direitos de crianças – aqueles entre 0 e 12 anos incompletos, e dos adolescentes, aqueles entre 12 e 18 anos incompletos. O que está contido no ECA está na esteira de diversos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é subscritor, valendo, assim, internamente.

O ECA, em harmonia com os objetivos propostos naqueles documentos internacionais, visa primordialmente o interesse maior da criança. E em respeito ao interesse maior da criança, que não se confunde com o interesse dos pais ou responsáveis, é que o art. 22 do ECA impõe aos pais o dever do sustento, da guarda e educação dos filhos menores, e no interesse destes, e a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Diante da clareza desta norma, o discurso destemperado do autor da novela, Manuel Carlos, sobre a ausência de qualquer poder constituído que possa interferir na forma como educa sua filha, uma das atrizes-mirins da polêmica novela (ou da novela em torno da qual se pretende criar a polêmica) é fruto de desinformação e a da inoculação daquela arrogância e prepotência anteriormente mencionadas.

No cio

É ainda o mesmo ECA que determina, no art. 71, que a criança e o adolescente têm direito à informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Com certeza tal regra deve ter inspirado a decisão judicial que impede a participação de crianças nas filmagens das cenas da novela Laços de Família. De fato, qual o interesse daquela garotinha de cerca de dois anos, que representa a filha de jovem casal em processo de separação, com todos os conflitos que essa situação enseja? Que influência têm aquelas cenas sobre a intelecção daquela criança? Gostaria que o autor irado e o elenco inconformado com o que foi classificado de "censura" esclarecessem qual o benefício ao interesse maior da criança que atua como ator-mirim?!?

A par da situação específica das crianças, atores-mirins, há a questão relativa à observância do disposto no art. 76 do mesmo ECA, que se refere à classificação dos espetáculos de rádio e televisão para o público infanto-juvenil – que depois de muitas exortações do sr. Ministro da Justiça, e sem qualquer atenção por parte da empresas de TV, acabou por ser disciplinada por uma portaria cujo número passa em caracteres meteóricos nas telinhas, ao pretender avisar qual é a classificação etária do programa a ser exibido.

Pela temática da novela – sexo, sexo e sexo – decidiu o Juiz da 1ª Vara da Infância e Adolescência do Estado do Rio que a classificação correta seria para ser exibida após as 21 horas.

Lamentavelmente, a imprensa nacional, que sobrevive em grande parte das empresas televisivas, tal qual "o estouro da boiada" saiu atrás da alardeada volta da censura. Quem se der ao trabalho de ir ao texto da Constituição Federal verá, no § 3º do art. 220 – que trata da garantia da liberdade de expressão –, o comando pelo qual meios legais devem ser estabelecidos para que as pessoas e famílias tenham garantido sua defesa contra programas ou programações de rádio, televisão que contrariem valores éticos, sociais, a cultura nacional e regional, bem como a sua finalidade educativa, artística e informativa. Seria de ser indagado: qual a finalidade educativa, cultural , informativa da referida novela? "Glamourizar" a vida de uma prostituta, difundir as práticas de um gigolô? Ou defender a tese segundo a qual as mulheres e os homens, não importam de qual idade ou circunstâncias, estão sempre no cio"? Ou estaria a "obra artística" a defender a exploração do trabalho dos empregados domésticos, sem direito a qualquer descanso, tendo que desempenhar a função de copeira, babá, passadeira, cozinheira, sem descanso semanal?

Histeria coletiva

O doloroso é que os "politicamente corretos" valem-se do pífio argumento que ao cidadão cabe, se descontente com o que vê, acionar o controle remoto e mudar de canal. Tenta-se transformar a permissividade em liberdade. A crença na plena capacidade de compreensão e deliberação do cidadão brasileiro médio chega às raias da irresponsabilidade ou ignorância de quem o diz. Quem faz tal declaração sabe o número de "lares" nos quais as crianças passam o dia sem contato com um adulto? E esse hipotético adulto, se considerarmos o brasileiro médio, qual é a sua formação educacional – vale dizer, qual é o grau de escolaridade? Todos ficaram no mínimo 11 anos na escola, têm acesso a todos os meios de informação e lazer, podendo assim exercer da melhor forma possível o seu sagrado direito de liberdade de escolha? Sabemos que é a resposta NÂO!

Portanto, em respeito aos que têm um mínimo de bom senso, e aos que não puderam desenvolvê-lo, esperar-se-ia que os profissionais de imprensa do calibre de um Clóvis Rossi não usasse de tal argumento.

Quanto ao que se refere às crianças que trabalham em carvoarias e plantações de cana, é claro que precisam de proteção. Mas não é porque não se logrou a tornar plenamente abrangente a proteção contra o trabalho infantil que poder-se-á admitir tamanha arrogância e prepotência dos donos de empresas de TV, encenadas por seus empregados, quando é perfeitamente visível a prevalência do interesse econômico (entenda-se do patrocinador e tudo o que mais possa vender a referida novela) e não o interesse pela melhoria da qualidade de vida das pessoas com a melhora da qualidade dos programas, onde educação e lazer fossem possíveis.

Será um bom começo se os profissionais da imprensa conseguirem atentar ao verdadeiro cerne do problema ao invés de enveredarem à argumentação fácil e vazia, chegando á beira da histeria coletiva.

Sem censura, mas, por favor, com respeito à dignidade humana.

(*) Procuradora regional da República, associada do Institudo de Estudos Direito e Cidadania (IEDC)

CARTA

Chega a ser patético assistir a artistas, diretores e executivos da Rede Globo protestando pela decisão da Justiça que enquadrou a novela Laços de família nos moldes que julgava adequados. Chega a ser bisonho ouvir os brados de "liberdade de expressão e de pensamento" vindos de lá. Queria muito que algum deles me explicasse por que quase apanhei e fui posto para fora do auditório do Festival da Música Brasileira, aos empurrões, somente porque gritei "Brizola" ao vivo durante uma entrevista. Censura no "dos outros", pelo visto, é refresco.

Eduardo Goldenberg

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