Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Grande imprensa é a local

TELEJORNALISMO EM CLOSE

Paulo José Cunha (*)

Redação da Rede Globo, Brasília. O DF-TV noticia um atropelamento e diz que o responsável fugiu sem prestar socorro à vítima. Testemunhas informam que o carro era um monza amarelo com um amassado num dos pára-lamas. Jornal no ar, o telefone toca. Na linha, um oficineiro de Brazlândia, a mais distante cidade-satélite de Brasília, comunica que um carro com aquela descrição encontrava-se em sua oficina. A redação o orienta a ligar para a polícia. O atropelador é identificado e preso.

Outra historinha. Uma flautista da Orquestra Sinfônica de Brasília liga desesperada: esquecera a flauta de estimação no banco de um ônibus urbano. Alexandre Garcia, o editor-chefe do DF-TV, resolve dar destaque, tanto pela curiosidade do fato quanto pelo caráter didático que poderia advir da devolução do instrumento. Foi a nota ir ao ar e o telefone da redação tocar. Era a pessoa que havia encontrado a flauta querendo devolvê-la. Informada pela redação, a flautista vai ao encontro da pessoa e liga de volta, exultante: "Obrigada, achei minha flauta!"

Se não servir não serve

Nas duas historinhas, a mesma lição: o telejornalismo local será cada vez melhor quanto mais cúmplice for da comunidade a que serve. Isso mesmo, vale a pena repetir: a que serve. Um telejornal nacional privilegia antes a informação, enquanto um telejornal local existe antes de tudo para servir à comunidade, além de informar. Só que, muitas vezes, essa função é distorcida. O próprio DF-TV, durante muito tempo, foi chamado de "GDF-TV", numa alusão à sigla que designa o Governo do Distrito Federal, tão forte era a linha oficialista que seguia. Em vez de andar de rabo preso com o telespectador, andava de rabo preso com o Palácio do Buriti, sede do governo de Brasília. Os tempos são outros, o Sol é mais quente e o samba é mais puro.

Estudo de caso, convertido em projeto final de curso do aluno Emerson Douglas Macedo, da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, dissecou seis edições do DF-TV 2? Edição, telejornal local noturno comandado por Luiz Carlos Braga. Confirmou que vão longe os tempos de submissão editorial da TV Globo Brasília ao Palácio do Buriti. Por ali já se respira um ar mais limpo, a crítica e a liberdade editorial já são visíveis e a comunidade, principal beneficiária da mudança, agradece.

Telejornalismo local é apenas uma das faces de uma realidade mais abrangente chamada regionalização da produção, tão exigida, tão necessária e tão protelada, a ponto de estar prevista na Constituição de 88 e ainda assim jamais ter sido regulamentada. Nenhum bem cultural é mais importante neste conjunto de brasis que atendem pelo nome único de Brasil do que a nossa diversidade, sistematicamente ignorada. Pesquisas recentes indicam um visível esgarçamento dos tecidos culturais regionais em benefício de uma perigosa homogeneização a partir do influxo dos conteúdos produzidos no eixo Rio-São Paulo. Detecta-se até uma certa rejeição da população à sua culinária. Nega-se o próprio sotaque. Nesta marcha, em breve o chimarrão terá sucumbido à coca-cola e as baianas vão trocar o acarajé pelo hot-dog.

Claro que exagero na dose, mas, com isso, quero puxar o foco para a necessidade urgente de se valorizar a cara cultural dos lugares. Não só abrindo espaço regional para sua expressão, mas criando uma capilarização capaz de levar o reisado do Piauí para dentro do barracão da Mangueira e a toada de boi de Parintins para o interior das alas de maracatu de Sergipe. Para que esses brasis se conheçam e se (auto)estimem. Assim como é igualmente importante a valorização do jornalismo local, que precisa deixar de ser discriminado em relação à chamada "grande imprensa". Ele sim, o local, é que é a grande imprensa, pois é quem puxa a audiência. A quebra do preconceito começa pela mistura da experiência dos mais velhos com a energia dos mais jovens. É preciso parar de considerar o jornalismo local como simples laboratório para a formação de repórteres nacionais ou "de rede". É preciso ter gente experiente no meio da molecada. Putas velhas que sirvam de referência aos mais jovens. Todo mundo sabe, e se não sabe, desconfia que é mais barato contratar jornalista moleque do que jornalista coroa.

É ótimo ter um bebê por perto pra apertar a bochecha e fazer bilu-bilu. Mas sem um coroa pra ensinar os bebês a fazer xixi no piniquinho vamos passar a vida sentindo o cheirinho de fraldas encharcadas.

(*) Jornalista, pesquisador, professor da professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>