Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Gringos otários, brasileiros espertos

INTERESSE P?BLICO

RADIODIFUSÃO EM DEBATE

Nelson Hoineff (*)

As distorções sociais ficam verdadeiramente perigosas quando perdemos a capacidade de responder a elas. Crianças dormindo em calçadas infectas formam em si um quadro execrável; mil vezes pior no entanto é, pelo costume, banalizarmos esta situação.

No Brasil, mais de 70 milhões de pessoas vêem todas as noites o mesmo telejornal e a mesma telenovela. A maior parte desses brasileiros tem naqueles produtos sua única fonte de informação e entretenimento. Não importa o nível de riqueza, ou de miserabilidade, não importa a formação, o ofício, a classe, a situação geográfica: mais de metade de toda a população está se informando da mesma maneira.

É um espantoso caso de esquizofrenia coletiva. Mais espantoso, no entanto, é não nos espantarmos mais com isso.

Da mesma forma, a televisão aberta brasileira produz quase 100% do que veicula. Isso é inquietante sob qualquer perspectiva. E por que não estranhamos? Pela mesma razão pela qual não respondemos mais ao impacto de ver crianças dormindo entre ratazanas: estamos acostumados a essa abjeção.

Na semana passada, o "Meio e Mensagem" publicava que a "Proposta da nova Lei de Radiodifusão é considerada altamente irregular por SBT, Record, Bandeirantes e Cultura". Um desavisado poderia inferir que isso é porque a lei encoraja a expansão da rede que falta nesta relação. Ledo engano. A matéria explica que "vários pontos desagradam os radiodifusores, principalmente aqueles que dizem respeito à programação. Não que os empresários sejam contra a proteção às produções nacionais; a principal crítica ao texto do governo é que ele condiciona o tipo de conteúdo que as emissoras devem gerar."

Então o que preocupa as redes é que a produção nacional vai condicionar o conteúdo das emissoras. Ah, bom! Mas de onde elas tiraram isso? A própria matéria se apressa em responder: "O capítulo cinco do anteprojeto, que trata do conteúdo da programação na radiodifusão, determina que as emissoras têm que exibir um percentual mínimo de dramaturgia brasileira inédita (peças e filmes adaptados ou produzidos originariamente para TV, telenovelas, séries, minisséries ou humorísticos), além de filmes de longa e curta-metragem realizados independentemente e desenhos animados feitos no Brasil. Para alguns radiodifusores, essas medidas significam, na prática, uma ingerência descabida nas grades das emissoras."

Pobre projeto de lei. Não fosse ele já tão falho, ainda lhe querem atribuir defeitos que ele não tem. Onde está essa ingerência nas grades? Não há uma só linha, neste capítulo, que possa levar a tal conclusão. Muito pelo contrário, até. No artigo 89, o projeto trata da obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais ? o que não interfere minimamente na estrutura da programação. Já no artigo 90, que é o que verdadeiramente interessa para o debate sobre a origem da produção, ele fala da exibição de um percentual mínimo de dramaturgia de produção independente feita especialmente para a televisão.

Aí está o erro: por que só dramaturgia? O grande equívoco do artigo, é não incluir aí todos os demais gêneros de produção televisiva: programas jornalísticos, documentários, shows, talk shows, game shows, programas infantis, transmissões esportivas e daí por diante.

É precisamente o que ocorre, por exemplo, nos EUA, onde os broadcasters, desde os anos 50, podem produzir apenas 25% do que colocam no ar. Se isto representa uma ingerência na grade das emissoras, então a encomenda a Goodyear de pneus para equipar os modelos Palio representa uma ingerência nos negócios da Fiat. A Fiat monta carros. A Goodyear produz os pneus. Se a montadora fosse fabricar as peças, os carros seriam piores e custariam o dobro.

Isso vale para todas as indústrias do mundo, menos para a industria de televisão no Brasil. Nos EUA, não há uma só novela, um só game-show que seja produzido dentro das veiculadoras. Na França, na Alemanha e na Espanha acontece o mesmo. Na Inglaterra, o Channel 4 estatutariamente não pode produzir um único frame do que veicula; o que põe no ar é uma das melhores e mais bem sucedidas programações do mundo. Em todo o planeta, veiculador veicula e monta a sua grade. Produtor produz. A confusão que se faz entre ambos é um privilégio brasileiro. E no entanto, a concessão dada às emissoras é explicitamente para "serviços de radiodifusão", não para monopólio de produção.

"A lei não pode atribuir ao ministério a liberdade de criar e desobrigar exigências de programação", diz na matéria do "Meio e Mensagem" o consultor do SBT Luiz Eduardo Borgeth, ex-Globo. Só que isso não é feito pela lei em momento algum. O que ela cria são exigências de diversificação da produção, sem mexer uma vírgula da programação. Isso deveria ser apreciado pelas redes, especialmente as que contam com estruturas de produção menores que a da Globo, pelo menos por três razões: a qualidade do produto melhora, o custo cai e, mais cedo ou mais tarde, os papeis de veiculador e produtor deixarão mesmo de ser confundidos.

Há também uma quarta razão: a inestancabilidade da tendência internacional de impor a participação da televisão na produção cinematográfica. A nova legislação espanhola destina 3% do faturamento das redes para o cinema. Na França, este percentual acaba de subir para 3,2%. É bom que se observe que entre as sugestões enviadas durante a consulta pública da lei da radiodifusão, algumas estabelecem um "percentual máximo" para obras cinematográficas brasileiras em televisão, partindo do princípio de que o mercado é brasileiro, e portanto não deve fixar um patamar mínimo para si, mas para os outros.

O irônico é que as emissoras não relutam apenas em participar da produção de cinema, mas do próprio produto para a televisão ? o que lhes asseguraria custos menores e condições bem melhores de competitividade no mercado. No fundo, isso nem deveria vir por imposição legal; bastaria a observação empírica ? que é o que ainda norteia o planejamento da maioria das empresas brasileiras.

Essa observação consiste no simples procedimento de analisar o desempenho. A maior parte das redes abertas vive em estado de penúria no Brasil. As televisões públicas catam desesperadamente as migalhas do mercado para poder produzir. É um estranho paradoxo, se for verdade, como se acredita, que a concessão de um canal seja equivalente à licença para imprimir dinheiro. Mas a resposta a esse paradoxo está no simples fato de estruturas de veiculação e produção tem naturezas completamente diferentes. Há poucas semanas, o fracasso de "Pearl Harbor" levou à demissão do presidente da Buena Vista. E no entanto, a maior parte das redes brasileiras é literalmente incapaz de produzir, hoje, meia hora de programação que seja rentável ? ao menos pelos mecanismos legítimos.

Nem "Ophrah" nem "Survivor" são produzidos dentro das emissoras que ganham dinheiro com eles. Mas a cultura de que hardware e software são a mesma coisa faz com que, no Brasil, mesmo as emissoras em dificuldades ponham a boca no trombone quando um projeto de lei acena com um tímido encorajamento à diversificação da produção. Talvez estejam certas. Errados estão a BBC, o Canal+, a CBS e a NBC. Sorte nossa que os gringos sejam uns otários. Por isso estamos tão bem e eles, tão mal.

(*) Jornalista, produtor e diretor de televisão, autor de "TV em Expansão" e "A Nova Televisão".

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