Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Guerras diferentes, técnicas semelhantes

MÍDIA E PROPAGANDA

Daniel Scola (*)

A propaganda de guerra, mecanismo essencial na tentativa de justificar qualquer ação militar, surgiu antes da Primeira Guerra Mundial (1914-18), mas foi durante este período que os exemplos mais emblemáticos de manipulação de informação se estabeleceram na media. Na batalha midiática para conquistar a opinião publica, a máquina de propaganda britânica insuflou a informação de que soldados alemães, ao invadirem a Bélgica, estariam jogando bebês para o alto e espetando-os com suas baionetas. O exercito alemão avançava pela Bélgica e o Reino Unido se via no direito de intervir. Assim como agora, grande parte da sociedade britânica se opunha à guerra. O governo precisava vencer uma outra batalha, desta vez interna: conquistar o apoio da nação.

Para isso, contava com grandes aliados: os jornais. Montou-se, então, uma estratégia de persuasão da opinião pública nunca antes vista. Phillip Knightley, em seu livro The First Casualty, observou:


Na Grã-Bretanha, sob a influencia do Defence Realm Act, foi criado um sistema de censura tão severo e eficiente que sua estratégia é usada ate hoje. A vontade dos proprietários de jornais de aceitar o controle de informações e de cooperar com a disseminação de propaganda do governo trouxe a esses empresários poder político e status social. Mas essa atitude também afetou profundamente a credibilidade da imprensa.


O figura do inimigo, então, era o kaiser Wilhelm II (1859-1941). Os jornais britânicos passaram a descrevê-lo como "sanguinário imperador que teria dado ordens ao exercito para executar primeiro crianças e mulheres assim que a Inglaterra fosse invadida." A imprensa foi exemplar. Seguiu à risca os ideais governamentais e ajudou a apregoar que uma ação militar era necessária para deter o inimigo e evitar a invasão da Grã-Bretanha.

E o Reino unido foi para a guerra, com o apoio incondicional dos jornais, promessas de glória e esplendor e a pouca resistência da sociedade. Mais tarde, descobriu-se que a informação sobre os alemães não passara de uma grande mentira. Mas aí já era muito tarde: "A guerra terminou em genocídio sem escala paralela, um ato sem significado que se prolongou ate o estado de exaustão, porque ninguém sabia como parar o confronto", escreveu Knightley.

Foi também a primeira vez em que circulou pela sociedade britânica a seguinte mensagem: não acredite no que você lê nos jornais.

Hermann Goering, um dos líderes do regime nazista e um dos mentores da propaganda alemã durante a Segunda Guerra, observou como o uso da mídia poderia ajudar numa eficiente campanha de dissuasão. "Quando o nosso povo estiver amedrontado vai fazer qualquer coisa por nós."

Foi assim que, em 1990, o governo americano, com a ajuda de uma agencia de relações públicas e da embaixada do Kuait nos Estados Unidos, armou uma das maiores mentiras da historia recente da propaganda de guerra. Na tentativa de demonizar o líder iraquiano, Saddam Hussein, foi organizada uma coletiva de imprensa no Congresso americano com uma menina de 15 anos. Com uma atuação cinemática, a menina contou aos congressistas como soldados iraquianos teriam invadido hospitais no Kuait e arrancado bebês prematuros de incubadoras. Segundo ela, as incubadoras teriam sido levadas para o Iraque a mando de Saddam.

Técnicas semelhantes para períodos diferentes.

Nota-se aqui uma semelhança incrível com a mentira propagada pelos jornais britânicos sobre a matança de bebês pelos alemães. O kaiser da Primeira Guerra, agora, era Saddam Hussein. Jornais em todo o mundo noticiaram o depoimento da menina e, por conseqüência, o julgamento sumário de Saddam. Com esse relato, ficou fácil para o Senado aprovar o envio de tropas ao Oriente Médio.

Somente dois anos depois da guerra é que a verdade veio à tona, o que evidenciou mais uma vez a fragilidade na investigação da imprensa mundial. A historia dos bebês retirados de incubadoras não passara de uma invenção. A menina-testemunha era, na verdade, filha do embaixador do Kuait nos Estados Unidos e havia sido treinada para o depoimento por uma agência de relações públicas.

A verdade sobre os reais motivos de uma guerra sempre surge anos depois de o conflito terminar. Em parte, esse fenômeno sustenta o que o veterano correspondente da BBC John Simpson defende: a media não tem memória institucional.

O dedo da culpa

Apoiado neste tema, o jornalista Carlos Dorneles lançou recentemente Deus é inocente: a imprensa, não (Editora Globo).

Com uma lupa na mão, Dorneles esquadrinhou os principais jornais e revistas brasileiros para avaliar a cobertura da Guerra no Afeganistão e a subseqüente preparação para um potencial ataque ao Iraque. Ponto de partida: 11 de setembro de 2001. O livro flagra a reprodução descontextualizada e desordenada de noticias provenientes de agências de notícia americanas por parte da imprensa brasileira.

Dorneles faz uma análise minuciosa da atitude da imprensa americana ao endossar as ações do governo Bush em relação ao Afeganistão. Com sua investigação, denuncia e reforça o que a organização Repórteres sem Fronteiras já havia declarado:


"Desde o dia 11 de setembro, a liberdade de imprensa está em perigo nos Estados Unidos, devido à censura oficial de imagens e opiniões e a autocensura motivada pelo patriotismo. Os Estados Unidos consideram que estão em guerra declarada e que os jornalistas devem se converter em patriotas."


Desde o início, o governo americano usou todo a sua habilidade para propagandear a Guerra do Afeganistão como um conflito de honra, quase sem vítimas civis. E fez de tudo para esconder erros militares estratégicos, como o bombardeio de vilas e a matança de inocentes. A imprensa americana e parte da britânica filtrou pouco ou quase nada do que foi passado por oficiais do exército na base militar em Bagran, quartel-general das forças aliadas e, por conseqüência, da imprensa. Poucos jornalistas se deram ao trabalho de sair de lá. De Bagran eram despachados diariamente press releases. Coletivas de imprensa eram preparadas pelas forcas aliadas e reportadas sem qualquer questionamento pelos "correspondentes de guerra".

Dorneles desmascara a maneira como a imprensa brasileira confiou na media americana:


"A cobertura da Folha de S.Paulo, depois dos atentados, tinha em média menos de 20% de matérias reproduzidas de jornais e revistas americanos e agências de noticias. Durante o ataque ao Afeganistão, esse índice subiu para 40% em média. (?) O Estadão começou com médias superiores a 30%. No fim de setembro, chegou a 50%. (?) Em alguns dias, como em 22 de dezembro de 2001, o índice chegou a 100%! Todas as matérias traziam assinaturas do New York Times, do Los Angeles Times, da Associated Press, da Reuters, da France Presse, da EFE ou da Ansa. (?) O leitor brasileiro viu o conflito com os olhos da imprensa americana".


A reprodução aleatória do que foi produzido pela imprensa americana chega, em alguns casos, a ser cômica. A captura de bin Laden era questão de honra e objetivo principal do exército americano no Afeganistão. Da imprensa, também. Os jornais brasileiros, sempre atentos ao material de agências, reproduziam tudo de maneira desenfreada. Manchetes do Estadão nos dias 15 e 29 de dezembro de 2001, respectivamente: "Paquistão: bin Laden pode estar aqui"; "Caverna cercada: bin Laden pode estar lá".

Das páginas do livro de Dorneles emerge uma análise crucial para avaliarmos que tipo de media temos à disposição hoje em dia.

O dedo da culpa aponta para a falta de independência, a não-investigação e a ausência de contextualização de notícias por parte das editorias internacionais.

(*) Jornalista, mestrando em Jornalismo Internacional pela Universidade de Cardiff, Reino Unido

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