Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Guilherme Fiuza

LULA PRESIDENTE"Verissimo continua derrotado", copyright
No Mínimo (www.nominimo.com.br), 6/11/02
"Lula confessou que tem se beliscado todas as manhãs
para conferir se é, de verdade, o novo presidente do Brasil.
Como os beliscões doem, ele está praticamente convencido
de que chegou mesmo a vez dele. Não é só o
Lula: há milhões de brasileiros se beliscando por
aí. E na ala dos oposicionistas crônicos, diante da
constatação inexorável de que o sonho virou
realidade, há os que começam a reclamar que não
era bem isso o que tinham sonhado.
É o caso do cronista Luís Fernando Verissimo. Quando
Fernando Henrique foi eleito presidente pela primeira vez, no embalo
do Plano Real e do controle da inflação, o arrastão
otimista na opinião pública e na imprensa condenou
à irrelevância as eventuais vozes em contrário.
Foi nessa época, 1995, que Verissimo virou personagem do
debate político. Ele fez de sua coluna diária uma
trincheira, uma resistência solitária ao consenso ?neoliberal?.
Se ninguém queria enxergar que Éfe Agá vendera
sua alma ao diabo, ao PFL e a Wall Street, tudo bem, mas ele é
que não cairia nessa. Era quase uma velhinha de Taubaté
ao contrário. Comoveu muita gente e, ante a catatonia da
esquerda, sua coluna tornou-se o último reduto da oposição.
Repercutia tanto que, a certa altura, Fernando Henrique teve que
passar recibo, dizendo que em matéria de Verissimo só
lia o pai (Erico Verissimo).
Passaram-se oito anos e a Era FH, que Sérgio Motta tinha
programado para durar 20 anos, chegou ao fim. Lula, que em 98 tinha
sido um coadjuvante melancólico (não empolgou nem
o Chico Buarque), agora sobe o Planalto nos braços do povo.
Após longa pregação no deserto, Luís
Fernando Verissimo venceu. Mas quem esperava que ele finalmente
saltaria de sua trincheira para brindar aos ventos da nova ordem,
enganou-se. Pelo que tem escrito, o cronista está prestes
a acionar o Procon para reclamar que o Lula que encomendou não
é o mesmo que lhe foi entregue.
Verissimo está desconfiado, não consegue sentir-se
vencedor. Não deixariam o Lula tomar o poder assim tão
limpidamente. Será que Lula ganhou, mas não levou?
Pode ser isso. Os donos do poder, mais sutis do que nunca, arranjaram
um jeito de ajustar Lula aos códigos do seu controle remoto.
O cronista passou a buscar sinais subliminares dessa operação,
e deu de cara com a expressão ?superávit primário?
(recentemente incluída no vocabulário petista). Aí
estava uma prova incontestável. Se uma pérola do economês
de Pedro Malan, enfiada goela abaixo dos brasileiros por devoção
ao FMI, tinha ido parar no discurso de Lula, boa coisa não
era.
Mais uma vez, Verissimo enxergou o que ninguém estava vendo.
E não perdeu tempo: lançou sua campanha contra o superávit.
Entre todos os vilões a enfrentar, esse seria o supervilão.
Criou a alegoria do Super Lula contra o Superávit Primário.
O recado do cronista é claro: para um presidente operário,
de esquerda, que dedicou sua vida a princípios como liberdade,
igualdade, fraternidade, comida na mesa etc, não fica nada
bem tomar para si um conceito que é a cara do Pedro Parente.
O que terá acontecido com Lula? Será que uma quadrilha
de burocratas do Banco Central seqüestrou um companheiro do
PT e está chantageando o presidente eleito, obrigando-o a
comprometer-se em público com o tal do superávit?
Vamos esperar as próximas colunas do Verissimo para ver se
ele dá alguma pista.
Nos últimos anos, o Brasil descobriu que esse negócio
de governo bonzinho, que gasta mais do que tem, cria uma sensação
de prosperidade hoje e aumenta a pobreza geral amanhã. Quer
dizer, achou-se que era isso. Porque agora Verissimo vem explicar
que é o contrário: num país pobre, fazer superávit
primário é roubar pensões das velhinhas e tirar
o pão da boca das criancinhas.
Pensando bem, talvez seja melhor mesmo voltar ao tempo do Banerj,
do Banespa, do Quércia e do Brizola, quando o Estado emitia
dinheiro à vontade e superávit era palavrão.
Era uma época feliz, em que se produzia dívidas sem
culpa – dívidas que não tinham o péssimo hábito
de ir para as manchetes assustar as pessoas, até porque ninguém
sabia direito onde estavam e de quanto eram. É bem verdade
que esses saudosos déficits primários (secundários
e terciários) comeram pelas beiradas a moeda, o valor da
pensão da velhinha e o pão da criancinha. Mas pelo
menos tínhamos o orgulho de não fazer nada do que
o FMI mandava – o que, convenhamos, é muito mais importante.

Luís Fernando Verissimo é um dos mais férteis
autores brasileiros da atualidade. Como se não bastasse,
é uma simpatia, gosta e entende de futebol, e ainda toca
sax. Na TV, teatro, literatura e jornal, seu texto arrebata qualquer
público, com aquela erudição moleque – cada
frase, densa e leve, parecendo se bastar. Por tudo isso, implicar
com o Verissimo é mau negócio (e este signatário
já deveria saber disso).
Mas é doloroso ver que, após tantos anos vendendo
Lula como a única solução não-entreguista
para o Brasil, o cronista não consegue saborear a vitória
do PT. Dizem que, como há os que não sabem perder,
existem os que não sabem ganhar. No fundo, Verissimo não
se conforma com a vitória de Lula. Talvez o ex-metalúrgico
devesse fazer como Jango, o presidente que nunca desceu do palanque,
e gritou palavras de ordem até o dia em que o arrancaram
do poder.
Mas Lula, suprema traição, parece disposto a governar
para valer. Decepcionado, Verissimo já começa a chamar
Éfe Agá novamente de Fernando Henrique. Vendo o atual
presidente deixar o poder assim magnânimo, sem espernear,
não é que ele até parece mais humano? Ainda
não dá para afirmar, mas não será surpresa
se o cronista acabar nos braços do sociólogo neoliberal.
Na oposição."

 

"A onda vermelha vai terminar na mesa",
copyright Folha de S. Paulo, 8/11/02
"Para continuar sendo do contra, dotado do excelente
espírito de porco que a natureza me deu e que os anos tornaram
maior e geral, vou botar um pouquinho de areia na euforia, quase
no assanhamento, da esquerda nacional que se considera chegada ao
poder.
Nada a ver com Lula, excelente sujeito e na certa bom presidente,
conforme todos esperamos. A areia fica por conta da estupidez humana,
da qual somos reféns, querendo ou não, tendo ou não
consciência do sequestro de nossos sonhos e esperanças.
São dois momentos da história, um bem antigo, de 1935,
outro mais recente, com a vitória de um socialista (derrotado
diversas vezes na França) que chegou ao poder e nele ficou
14 anos.
Cheguei cedo naquela segunda-feira à Redação
de ?Manchete? e o Justino Martins me pediu um artigo sobre a vitória
de François Mitterrand na véspera. Tratava-se de um
homem de esquerda, historicamente de esquerda, que, após
algumas tentativas frustradas, chegava finalmente à Presidência
da República.
O próprio Justino, amante da França, das coisas francesas
e das francesas principalmente, deu-me o título: ?Paris,
la vie en rouge?. Era a onda vermelha de lá, cantada por
uns e temida por outros. Desovei as quatro laudas (não havia
computador naquela época) imaginando como seria Paris em
vermelho, a Paris de Offenbach e de Toulouse-Lautrec, a Paris de
Hemingway e de Henri Miller, de Maurice Chevalier e de Mistinguett,
terra do bidê, do michê e do minete.
Nem lembro mais as asneiras que escrevi, mas duvidei da onda vermelha
que ameaçava as lojas do Faubourg Saint-Honoré, o
show de travestis do Madame Arthur e a escuridão cheirando
a esperma dos sexshops de Pigalle. Paris resistiria como uma Verdun
dos prazeres burgueses -como parece que resistiu.
Outro fato que lembrarei foi o do movimento de 1935, que levou o
nome de ?Intentona Comunista? -uma classificação pejorativa
que os militares deram à rebelião. Em Natal, quando
correu a notícia de que os comunistas haviam deposto o governo
de Vargas, o povão tomou de assalto os ônibus e bondes
da cidade; ninguém pagava passagem, pois os serviços
públicos agora eram comuns, de todos, não havia donos
e servos, patrões e empregados, eram todos camaradas.
Demorou dois dias para ali chegar a notícia de que a rebelião
na Praia Vermelha fora dominada pelas tropas legalistas, que o 3RI
fora bombardeado, que os revoltosos, liderados por Agildo Barata,
estavam presos. Mas, durante dois dias, em Natal, os oprimidos de
sempre, se não chegaram ao Paraíso, andaram de graça
nos bondes e ônibus da cidade.
Não sei por que estou lembrando isso. A onda vermelha que
tivemos não chegou a ser vermelha, como a outra, a que tinha
uma foice e um martelo lembrando os instrumentos de trabalho dos
camponeses e operários, as duas ferramentas básicas
do proletariado universal. Pelo contrário, tem agora uma
baita estrela, que não chega a ser símbolo de trabalho,
mas de sonho, de luz, estrela dos reis Magos, da fada de Pinóquio,
do sucesso e de uma fábrica de brinquedos.
Para o meu gosto pessoal, seria bom se realmente uma nova classe
tomasse o poder de forma pacífica, democrática, sem
apelar para a violência da revolução dentro
do organismo social. Uma utopia, sem dúvida, mas que permanece
entranhada na esperança da humanidade.
Alguns dos nomes em evidência para a formação
do novo governo, a começar pelo próprio Lula, por
Mercadante, Dirceu, Suplicy, Genoíno e tantos outros, são
fatores positivos, combinam com a tal estrela do partido, símbolo
de esperança.
Mas eles chegam ao poder preocupados com a governabilidade. Durante
a campanha eleitoral, a preocupação do PT foi com
a elegibilidade. Empacado nos 30%, 35% do eleitorado, o partido
só chegaria ao poder por meio da elegibilidade, conseguida,
afinal, pelos acordos que dobraram limpamente o cacife original
para mais de 60%.
Vencida a etapa da elegibilidade de forma brilhante até,
surge agora o desafio da governabilidade. Em 1994, para chegar ao
poder, o PSDB das vestais paulistas teve de se aliar às lideranças
nordestinas e oligarcas do PFL, que eram chamadas de ?hienas? pelos
varões do Olimpo paulistano.
Deu no que deu. Adquiriu a tal governabilidade, dilapidou o patrimônio
nacional, sucateou grande parte de nosso parque industrial, criou
a maior taxa de desemprego e de concentração de renda
da nossa história e deixa um Estado menor e mais fraco para
os desafios de um século que começa desfavoravelmente
para as nações que pretendem crescer no campo econômico
e social.
Na semana passada, um líder classista entregou a uma autoridade
do PT, que certamente será governo ou mais do que isso, um
memorial pedindo aumento de 83% nos vencimentos da categoria -uma
das mais castigadas pelo governo de FHC. Recebendo o memorial, a
futura autoridade sugeriu uma conversa, com o tradicional convite:
?Vamos sentar à mesa e discutir o assunto?. A resposta do
líder classista foi rude: ?Há oito anos, estamos conversando
e acho que chega?."