Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Guilherme Fiúza

COBERTURA DE GUERRA

“Videofone, pipoca e poltrona”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 9/4/03

“Outro dia, um desses professores de relações internacionais que têm explicado na TV como ficará o mundo depois de cada nova labareda que aparece em Bagdá, fez a pergunta crucial: ?Dá para imaginar uma guerra hoje sem recursos como o videofone, os blogs e o acompanhamento em tempo real?? A resposta pode ser um pouco estraga-prazeres, mas é simples: não só dá para imaginar, como dá para ter saudade dos tempos em que não havia nada disso.

O videofone virou um fetiche. A imagem péssima, entrecortada e desfocada, que impõe aquela desagradável disritmia entre caras, bocas e sons, virou sinônimo de conexão direta com o front. Só que 90% dessas aparições ao vivo via Internet são inócuas. O repórter Marcos Uchôa, da TV Globo, cansou de ser acionado por videofone para fazer resenhas repetitivas do bombardeio – os ataques sobre Bagdá estão um pouco mais intensos, ou um pouco menos, ou há duas horas e meia não cai nenhuma bomba, ou hoje de manhã a sirene de alerta soou pela trigésima vez na capital etc – ou então para fazer análises político-militares que, obviamente, poderiam ser gravadas decentemente e enviadas como matéria convencional.

Seja na CNN, na BBC, na Globo ou na Aljazeera, os emocionantes flashes em tempo real nada mais são, com algumas exceções, do que a mera repetição dos press releases dos comandos militares. E como esse terreno é dominado pela propaganda e pela mentira, dá-se o paradoxo: na guerra, acelerar a notícia quase sempre significa desinformar.

Ao longo do dia, nos sites, e-mails e blogs, as tropas de coalizão cercam uma cidade, para mais tarde aparecer ainda alguns quilômetros distantes dela; centenas de soldados iraquianos são mortos em confronto, para depois se saber que talvez fossem dezenas, e mais tarde publicar-se a versão do governo iraquiano de que, na verdade, eram civis. A imagem sacudida de uma câmera que tomba é narrada como o fuzilamento do cinegrafista que a portava. Algumas horas depois, a retificação: era uma câmera estática, e o fuzilado foi um tripé.

Algumas dessas informações jamais chegarão ao público de forma confiável. E as que chegarão, em geral precisam de tempo para consolidar-se sobre a guerra de versões. Em outras palavras, informação em tempo real durante a guerra é quase hipnose. Então, por que tanta pressa?

Só dá para compreender tamanho engajamento ?on line? entre as mídias e o público aceitando-se o inconfessável: a oferta e a procura não é por informação, mas por entretenimento. Consta que o mundo repudia a guerra, mas não há como negar que ele está entretendo-se com ela. Videofone, blogs, flashes em tempo real, analistas e palpiteiros de plantão. Veja o filme, leia o livro e compre o disco. Como espetáculo, a guerra é um sucesso. O antiamericanismo nunca foi tão hollywoodiano.

Estamos voltando à Idade Média com esta guerra, dizem os especialistas. Mas o que dizer, então, do degrau de civilização a que desceram israelenses e palestinos nos últimos três anos? Por que o Apocalipse deles nunca deu metade do ibope que dá o de Bush e Saddam? Se o problema é opor Ocidente e Oriente, espalhando ódio por embaixadas e lanchonetes muito além da zona de conflito, é preciso reconhecer que os selvagens da Faixa de Gaza estão ganhando longe. Mas as pedradas e os homens-bomba de lá não estão conseguindo ultimamente nem sair nos jornais.

Não adianta, o mundo está sentado na poltrona, com um saco de pipocas, consumindo a ópera de Bagdá. Se interromperem os videofones trêmulos para informar que fim levou a quase-guerra civil na Venezuela (Hugo Chávez ainda está lá?), a bancarrota argentina (Buenos Aires ainda está lá?) ou a guerrilha sanguinária dos chechenos, o mundo troca de canal.

A humanidade é louca por um folhetim, o mais simples possível, que lhe permita caracterizar o bem e o mal com nome e sobrenome, sem nuances, relativizações e outras coisas chatas da vida real. Ainda mais se for um folhetim que lhe permita imaginar-se à beira do Juízo Final, podendo flertar com o fim do mundo, e exercitar todos os seus sentimentos extremos. No Brasil, por exemplo, a guerra seria o tiro de misericórdia nos mercados emergentes. Não sobraria Palocci sobre Palocci. De repente, no auge da investida contra Bagdá, os títulos brasileiros se valorizam, o risco-país e o dólar desabam, os créditos reaparecem. O consumidor tem todo o direito de sair às ruas e exigir o Apocalipse que lhe venderam.

Há os que fazem por menos. Ainda não é o fim do mundo, apenas o início do tombo da superpotência. Mas e se Bush não conseguir deter o déficit fiscal e, assim como seu pai, for mandado de volta ao Texas pelos americanos? Bom, aí talvez o império sobreviva, mas a Europa vai se esfacelar. Por causa das bravatas do Chirac e dos arreganhos do Blair? Mas os dois não estavam outro dia já trocando piscadelas no debate sobre a reconstrução do Iraque? Bom, os entendidos garantem que, de qualquer forma, o mundo jamais será o mesmo.

Numa dessas entrevistas que por algum motivo não repercutem muito, o consagrado historiador Eric Hobsbawn respondeu assim a uma dessas perguntas sobre o que acontecerá com a geopolítica mundial após os confrontos de Bush com Bin Laden e Saddam: ?Basicamente, nada.? Bem, nesse caso, o mundo continuaria sendo o mesmo. Só que com videofone.”

“Cobertura Intensa Causa ?Stress”, copyright Público / Reuters (www.publico.pt), 13/4/03

“Seguir as emissões ?24 horas? da cobertura televisiva da guerra contra o Iraque pode danificar a saúde física e mental de alguns telespectadores, causando ‘stress’, insónias, dores de estômago e sentimento de culpa, em casos extremos.

O alerta foi feito por psicólogos entrevistados em diversos países, para quem as crianças podem ficar especialmente afectadas se o seu visionamento do conflito na TV não for monitorizado ou se as imagens não forem explicadas por adultos.

A cobertura da guerra contra o Iraque tem sido a mais extensa de todos os conflitos registados para a TV, com reportagens ?ao vivo? de jornalistas viajando com as tropas ou baseados em cidades iraquianas.

O psicólogo Michael Nuccitelli, director de uma clínica em Nova Iorque, disse que a cobertura contínua era viciante, como assistir a desportos em directo na televisão. ?Temos tido um relato explosão a explosão. É quase como assistir a um jogo de futebol. Faz com que o telespectador queira ver ainda mais. Isso aumenta a imagística visual e vai naturalmente acelerar o ‘stress’ e a ansiedade?, diz o médico. A psicóloga alemã Hildegard Adler disse ter tido pacientes perturbardos pelas imagens, sentindo medo ou culpa, e insistiu que mesmo as pessoas aparentemente estáveis ou destemidas não estavam imunes a esta perturbação. ?Em maior ou menor grau, somos todos sensíveis?, comentou.

Patricia Saunders, psicóloga e directora do centro de saúde mental de Manhattan, lembrou que muitas pessoas não se dão conta de estarem sob uma maior pressão. ?Os nossos corpos também exprimem emoções. As pessoas têm tido mais dores de cabeça, de estômago. E penso que há um aumento de pequenas infecções. O ‘stress’ prejudica o sistema imunitário.? As crianças, por seu lado, podem ser tão susceptíveis à reacção dos adultos que lhes são próximos como ao que elas próprias vêem, dizem os peritos.

?Não sabemos se vamos de repente ver uma imagem de mulheres e crianças mortas e não sabemos qual será o impacto disso sobre uma criança?, salientou Friedhelm Lamprecht, director de psicossomática e psicoterapia na escola médica de Hanover. Este especialista recomenda que não se deixe as crianças com menos de sete anos ver a guerra em qualquer circunstância, e que as menores de 14 anos não assistam sozinhas, sendo em vez disso acompanhados por alguém adulto que procure perceber o que pensam e tranquilizá-las.

Uma especialista em psicologia infantil de Casablanca, Rita El-Khayat, conta que se lembra da sua própria infância, quando Marrocos queria a independência de França. ?Eu sentia que os adultos estavam muito assustados, e isso é muito assustador para uma criança, porque supõe-se que os adultos sejam os seus protectores?, disse.

Rita El-Khayat preocupa-se agora com a perspectiva de que nem todos os país façam o suficiente para explicar os acontecimentos aos filhos, e acredita que as imagens podem produzir um reforço do sentimento anti-americano e anti-ocidental. ?O que as pessoas não percebem nos Estados Unidos é que esta guerra… está a criar uma geração de potenciais terroristas?, disse.

Tony Flint, coordenador regional da Associação Britânica das Famílias dos Veteranos do Golfo, disse que a cobertura da ocupação em curso trouxe de volta muitas memórias desconfortáveis e deprimiu muitos veteranos. ?Quando ouvi soldados gritarem ‘Gás!’, a minha reacção imediata foi paralisar ou baixar a mão para procurar uma máscara.?

Alguns estudiosos de saúde mental acreditam que imagens vividas da guerra podem desencadear os nossos instintos violentos ou levar a uma crescente ambivalência quanto ao sofrimento dos outros. ?Podem incitar os instintos brutais e agressivos embutidos na natureza humana… Quanto mais frequentemente as pessoas são expostas à violência, mais insensíveis se tornam?, diz Min Sung-gil, um psiquiatra do Hospital Shinchon Severance, de Seul (Coreia do Sul).

Os peritos são unânimes quanto ao conselho para contrariar a tensão – deixar de ver as imagens da guerra. ?As pessoas precisam mesmo de limitar a sua exposição aos ‘media’, especialmente à televisão. Cinjam-se a uma ou duas espreitadelas durante o dia. Não deixem a televisão ligada durante longos períodos?, diz Saunders.”