Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Horror à controvérsia – lá e aqui"

QUALIDADE NA TV

ASPAS

"Horror à controvérsia – lá e aqui", copyright Jornal do Brasil, 18/11/00

"O caso da recontagem dos votos no estado da Flórida e a celeuma em torno da telenovela Laços de Família têm um ponto em comum. E crucial. Nos Estados Unidos, o clã Bush e os republicanos não requerem reconhecer o princípio fundamental do direito e do estado democrático: recusam a discussão, querem barrar a contestação legal. Para eles, o sistema representativo e federalista é apenas um rito sem necessidade de ser testado através de todas as suas jurisdições. Querem a consumação imediata de um resultado.

Aqui, a mesma fobia à discussão, horror à controvérsia, o mesmo ‘cala a boca’ autoritário. Ligeiramente mais cínico porque enrolado na bandeira da luta contra a censura.

O Juiz da 1ª Vara da Infância e Juventude do Rio, Siro Darlan, proibiu a participação de menores na gravação de cenas chocantes da telenovela da Globo. Não foi uma decisão pessoal, impulsiva, aleatória. Partiu do Ministério Público Estadual, foi acolhida por um outro magistrado e insere-se numa cruzada nacional que alonga-se há alguns anos e na qual está envolvida a sociedade civil, sem distinções de partidos, contra os padrões imperantes nos espetáculos televisivos.

Se o Ministério Público tem o direito de investigar qualquer poder constituído – e o está fazendo agora com toda a liberdade num caso que respinga nos mais altos escalões da República – porque não pode ser acionado para coibir abusos numa concessão teoricamente comprometida com o bem-estar social? Uma empresa comercial de espetáculos pode considerar-se plenipotenciária, acima de qualquer desígnio ou argüição? Pode manipular as informações em benefício de seus interesses particulares, num claro desrespeito aos padrões mínimos de eqüidistância?

A democracia é um exercício de poder que se exerce às claras. Os discricionários preferem ritos sumários e subterrâneos. Nos tempos do quase esquecido Iluminismo, Emanuel Kant dizia que é dever e direito dos filósofos fazer uso público da razão. E este uso público da razão começa com o debate aberto. Percorre todas as instâncias do sistema político e legal até converter-se em juízo e discernimento.

Norberto Bobbio, em seu novo compêndio, admite que é próprio do poder ocultar-se mas, por outro lado, afirma que não se pode ignorar que grande parte da história política moderna resumiu-se ao esforço de tornar visível o que antes era armado em segredo. Para decidir, o cidadão precisa entender. Mas antes precisa saber. Se abortam uma discussão mal iniciada evidencia-se que não querem que se saiba. Nem que se entenda. Nem se decida (Teoria Geral de Política, pp 388-389).

Seqüestrar a controvérsia, como se pretende, é um convite ao secretismo. A barretada da OAB alegando a inconstitucionalidade da decisão da 1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio é impertinência jurídica. Convite à omissão. Pior: é um desvio das próprias finalidades da corporação, esquecida do seu compromisso com a promoção de ações, pleitos e demandas para produzir transparência e conhecimento.

O desempenho da mídia concerne à sociedade e não apenas aos mediadores. Autoregulamentação, nova bandeira dos liberalóides, é recurso sub-reptício, escamoteação, acerto entre amigos. O mesmo que entregar as chaves do cofre a Al Capone. Um bem público deve ser examinado pelo público ao qual se destina. Questão vital, basilar, na Era da Informação.

No caso Watergate, há 25 anos, a imprensa americana lavrou dois tentos simultâneos: fez as investigações que levaram à derrubada de Nixon e, em seguida, submeteu-se ao escrutínio da sociedade, discutindo abertamente seus procedimentos. Naquele exato momento, além do amadurecimento do regime, fortalecia-se o sistema de poder e contrapoder com a introdução de uma nova disciplina, o media criticism (crítica da mídia) e uma nova função social, o media watching (a observação da mídia).

No caso da Flórida, além do aberrante pool de todas as redes de TV eliminando qualquer possibilidade de previsões alternativas, revela-se agora escândalo maior: a errônea projeção da vitória republicana foi transmitida em primeira mão pelo Fox News Channel (do arqui-conservador Rupert Murdoch). Quem passou a notícia foi um alto executivo do canal, John Ellis que, por casualidade, é primo do candidato George W. Bush e com quem passou a noite trocando informações telefônicas. Esse executivo, John Ellis, fazia parte do grupo encarregado de tomar as decisões finais sobre o anúncio do vencedor.

Este caso nada tem a ver com a batalha judicial em torno da recontagem dos votos. Nem com eventuais fraudes no processo de votar. É outro departamento. Tem a ver com a tentativa por parte do cartel televisivo de impor fatos consumados à uma sociedade impaciente, condicionada pelo imediatismo mediático. Esta a razão da palavra de ordem dos advogados republicanos para abafar qualquer possibilidade de apelação ou litígio.

Conspiração? Parece apenas a velha vocação para trocar consenso por consentimento. Lá o pretexto é a estabilidade institucional tão cara aos conservadores. Medo de abalar o sistema, despertar dúvidas e semear suspeitas. Aqui, o fantasma que se tirou do armário é a volta da censura. Num caso que nada tem a ver com liberdade de informação (restrito à esfera específica do entretenimento, portanto, sujeita ao controle social), tenta-se acionar a máquina do tempo com solerte intimidação.

A questão da telenovela é secundária. Laços de Família é uma cortina mambembe atrás da qual esconde-se um poderoso sistema de anestesia e emasculação."

Volta ao índice

Qualidade na TV – próximo texto

Qualidade na TV – texto anterior

Mande-nos seu comentário