Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Implodir o clubismo

Wladimyr Ungaretti (*)

"Com profissionais ideologicamente confiáveis nos postos de comando, o mecanismo de cooptação, aberta ou dissimulada, garante o recrutamento de pessoal capaz de impedir a entrada de raposas no galinheiro ou de hereges na missa. Esse mecanismo começa a funcionar já nos cursos de Jornalismo e prossegue continuamente, nas redações." [Alain Accardo, Le Monde Diplomatique]

No mundo acadêmico há algumas regras claras e definidas. Muitas subentendidas. Por isso mesmo, os textos produzidos por professores e alunos seguem determinadas normas. Uma delas, sem dúvida nenhuma, é a que indica que toda produção "acadêmico-científica" deve possibilitar a outros pesquisadores – e aos leitores de modo geral – a reprodução do caminho percorrido. Simplificando: todo trabalho de pesquisa deve indicar a metodologia utilizada e decorrentes procedimentos técnicos.

Como minha origem não é a academia descobri esse fato quando fui fazer mestrado. Assim como escutei, pela primeira vez, um professor dizer que grande parte de uma monografia, de uma dissertação de mestrado, de uma tese de doutorado se resolve por um bom projeto. A clareza de um projeto, dizia meu orientador, representa pelo menos 50% do trabalho. E que a clareza de um bom projeto que, por sua vez, vai se refletir no trabalho final, se expressa por um bom título. Dizia ainda: "Quanto mais claro, mais preciso e quanto maior o número de elementos incluídos nesse título, maiores serão as possibilidades de produção de algo relevante. A precisão será maior." Com estas noções e muitas outras que me foram passadas realizei minha dissertação de mestrado orientado pelo professor e ambientalista Héctor Leis

Resultado inexpressivo

Ao retornar à sala de aula, e ao ter que assumir a orientação das monografias dos alunos da Fabico, fiquei surpreso com a ausência de uma condução acadêmica. Verifiquei, por exemplo, que os títulos dos trabalhos não eram indicativos de absolutamente nada, verdadeiras generalidades. Passei a exigir títulos que apontassem, com o máximo de precisão, o que o leitor encontraria pela frente. Não priorizando, obsessivamente, a especialização. Meus orientandos (mesmo após reclamações dos que orientavam os projetos) passaram a apresentar títulos longos que incluíam objeto e recorte, metodologia, suporte, atores e até mesmo, em alguns casos, o principal conceito teórico que seria utilizado. É só verificarem na biblioteca.

Passei a apontar também para o fato de que monografias não observavam a estrutura de um texto acadêmico, sendo que em alguns casos mais pareciam ensaios. A absoluta ausência de referenciais metodológicos – e decorrentes procedimentos técnicos – mostrava, de forma clara, a inexistência de um direcionamento. Os trabalhos de conclusão de curso não acrescentavam nada, pois não tinham o sentido de uma pesquisa, de uma investigação produzida observando as regras. E não estamos falando em normas da ABNT.

Entre as muitas razões para que isso ocorresse é importante destacar pelo menos duas. A primeira delas, de âmbito mais geral é, sem dúvida nenhuma, a ausência de uma tradição de pesquisa. É só realizarmos um estudo comparativo com outras áreas, por exemplo, das Ciências Sociais para verificarmos ser esta uma das causas. O outro aspecto a ser considerado diz respeito ao fato de que são deficientes as cadeiras do curso de graduação que objetivam instrumentalizar os alunos. Os projetos, uma etapa da máxima importância, não são resultantes de discussão particularizada com cada aluno. Um professor orienta o projeto (orientação coletiva), um outro é responsável pelo trabalho final. Ninguém se entende. São raríssimos os alunos que chegam a essa etapa com clareza do que é e de como fazer o trabalho de conclusão. E, por conseguinte, é de pouca expressão o resultado final.

De Bourdieu ao tratamento

Durante muito tempo fui procurado por alunos em busca de orientação, os quais ficavam absolutamente desconcertados diante de algumas perguntas. Coisas do tipo que metodologia você pretende utilizar? Qual o recorte de seu objeto de investigação? Seu referencial teórico será construído a partir de que autores? Isso tudo sem falarmos em numerosas confusões entre tema e objeto de pesquisa; ou, ainda, entre objeto de pesquisa e suporte. Esse quadro é ainda o atual. É só verificarmos a linguagem dos alunos.

Não sou um pesquisador. Gosto mesmo da sala de aula. Leio muito. Continuo não tendo experiências mais expressivas (de pesquisa), além da obtida na elaboração da minha dissertação de mestrado, mas tenho plena convicção de que os alunos da Fabico chegam ao final do curso sem instrumentos para realização do trabalho de conclusão. Ainda recentemente, uma aluna que foi fazer um curso na área de Ciências Sociais na própria universidade me disse: "Agora é que eu estou aprendendo como é que é a vida acadêmica. Nós da Comunicação (alunos e professores) somos, literalmente, ridicularizados. Somos vistos com desconfiança". Segundo ela, talvez seja este o principal motivo para que pesquisas importantes na área da Comunicação acabem sendo realizadas por alunos e professores de outros cursos.

Mas existe também um outro fator, talvez de caráter mais estrutural. Os alunos da Fabico ingressam na faculdade com média de idade em torno dos 18 anos. Nos primeiros semestres são obrigados ao estudo de Pierre Bourdieu, Habermas, Hegel e muitos outros. Trata-se de parte da lógica (não explicitada) "professores-doutores-alunos-ignorantes". Tudo pelo poder. E, ao final do curso, quando necessitam de um razoável instrumental teórico para elaboração do trabalho de conclusão, são mergulhados em cadeiras práticas, sem nenhum atrativo, pois também já estão trabalhando em alguma empresa de comunicação. Se alguém me colocar em contato com um aluno de final do curso de Jornalismo que esteja satisfeito, otimista, com uma pulsação vibrante, em alto astral me restará a possibilidade (como professor) de sugerir que procure tratamento.

Curso de antijornalismo

Sob a alegação de uma melhor qualificação – conta pontos no MEC –, os alunos estão obrigados a se submeter a uma banca para defesa da monografia. Além disso, a PUC já tinha instituído este sistema, e nós ainda não. Com este mecanismo de defesa tem ficado evidente, mais do que nunca, as deficiências apontadas acima. Os alunos de Jornalismo deveriam ter a possibilidade de optar entre monografias rigorosamente acadêmicas e trabalhos de conclusão como um livro-reportagem, no sentido tradicional.

Fala-se muito, nas bancas, em análise de discurso. Ainda não li nenhuma monografia orientada com essa metodologia. Além disso, também fala-se muito na importância das análises qualitativas, com um certo desprezo por trabalhos que procuram realizar algumas quantificações, como se fossem coisas excludentes. Há dezenas de textos que demonstram ser esta uma discussão superada.

É claro que todas estas e muitas outras questões poderiam ser resolvidas por uma reformulação do currículo. Aqui também é preciso que se pensem algumas práticas. Desconheço qualquer processo de reformulação de algo que não passe pela crítica e a autocrítica do que está posto. A primeira etapa da reformulação de um programa partidário, governamental, empresarial, social e principalmente educacional – visando tanto a superação como a adequação – é a crítica das práticas decorrentes do programa em andamento. A não ser em cima de aspectos superficiais, ainda não presenciei qualquer professor, do curso de Jornalismo, exercendo a elementar e saudável prática da crítica. Autocrítica, nem pensar. Deuses não erram.

A questão da reformulação do currículo envolve a eliminação de cadeiras (onde colocar os amigos?), a criação de algumas outras, a discussão do conteúdo de todas elas, bem como a reformulação da estrutura de funcionamento, além da criação de mecanismos que permitam alterações conjunturais. Com a formatação atual é impossível, por exemplo, rapidamente, promover alterações que proporcionem a atualização. O curso é o antijornalismo. Falta um texto-guia da discussão.

Perdas da idade

É preciso que se crie uma estrutura que possibilite o convívio de uma mesma turma do início ao fim do curso, através de um contato quase que diário de todos os seus integrantes. Terminaria este esquema que não permite quaisquer atividades, com um mínimo de continuidade, em que as pessoas se encontram uma vez por semana em cada cadeira. A alteração desse quadro, montado pelos governos da ditadura, como forma de impedir o surgimento de lideranças (não é paranóia), entre outras coisas, implicaria a alteração das cargas horárias de cada disciplina.

É preciso mexer com hábitos arraigados. É preciso implodir com a estrutura atual. O conservadorismo é tanto que tem sido impossível qualquer mudança gradual. O clube sempre está atento para a criação de mecanismos e de ingresso de pessoal que garanta a não-mudança-manutenção-de-privilégios. Como romper com estes mecanismos?

Uma idéia interessante seria a realização de concursos com bancas integradas por profissionais e professores sorteados, mas todos de outros Estados. O clubismo diminuiria, pelo menos um pouco, num primeiro momento. O ar ficaria mais respirável.

Com uma melhor oxigenação, o curso de Jornalismo passaria a ter um sentido, efetivamente, jornalístico, de atualidade, de múltiplas relações efetivas com a realidade do país. Abaixo o Ustudei. Abaixo a maquiagem. Viva Lima Barreto e João do Rio.

Perdi, com a idade, um pouco do saudável estilo panfletário.

"A universidade ensina todos os nomes de todos os rios, mas anula nos alunos a capacidade de emocionar-se ao ver um deles." [Cristovam Buarque, em A aventura da universidade]

(*) Professor da UFRGS. Copyright PRESS, Porto Alegre, 2000

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