Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Imprensa e a cumplicidade silenciosa

ORIENTE MÉDIO

Ivo Lucchesi (*)

Mesmo diante do mais inaceitável dos conflitos, a exemplo do que está em curso no Oriente Médio (não menos horripilante que aquele ocorrido na Bósnia), a mídia brasileira parece não alterar seu padrão. Ela trabalha no ritmo compassado, na condição de eficiente "balcão de informações", digno de um disciplinado regime burocrático. Com esmerado cuidado técnico, o "produto jornalístico" oferece ao leitor conteúdo sofrível, para não classificá-lo de deplorável. A propósito, esse foi o tema focado na edição do programa Observatório da Imprensa na TV, exibido pela TVE em 2/4/02.

A julgar pela cobertura realizada pela imprensa oficial, fica a sensação de que os órgãos de comunicação diariamente estão a exibir capítulo de uma novela cuja estética deriva de um molde previamente determinado. Nele, espaço, tempo, enredo, personagens e ilustrações (equivalentes a figurino e cenários) parecem categorias bem comportadas e habilmente formatadas para a reprodução em série, ou seja, o típico "jornalismo industrial", independentemente de haver correspondentes internacionais próprios, fato decorrente de uma política de redução dos custos. Também a deficiência das abordagens não deriva de uma eventual censura em territórios palestinos ocupados imposta por dirigentes israelenses a profissionais de comunicação, exceção feita a alguns jornais europeus e, preferencialmente, franceses.

A ausência dos dois fatores acima pontuados, na realidade presente, geraria igual efeito. Na verdade, o tipo de cobertura diz respeito à definição de uma "estética ideologizada" que também se pôde constatar na "invasão invisível" que forças norte-americanas promoveram no Afeganistão. Tal observação quer dizer que aquele jornalismo atuante e incômodo, praticado na Guerra do Vietnam, não encontra mais lugar. Portas outrora abertas hoje estão lacradas, tanto pela orientação dos grandes donos quanto pela limitação intelectual, verificável na maioria dos profissionais contratados. A partir desse reconhecimento, não fica difícil deduzir o tipo de "estética" dominante. Quantificar mortos e feridos, identificar alvos atingidos, com temperos de fotos chocantes, arrematados com a inclusão de algumas declarações, ora de um arrogante Sharon, ora de um declinante Arafat, compõem a estrutura fixa de cada capítulo.

Fora dos contornos da "moldura narrativa", definida pela "estética", há o abnegado empenho de articulistas, devotados à causa de forçarem os leitores a pensar o sentido e o absurdo do "enredo da morte", traduzido dia-a-dia pela implacável marcha dos acontecimentos. São os articulistas que, na imprensa brasileira, habitam segundo e terceiro escalões, os agentes a conduzirem o leitor para além do efeito imobilizador gerado pelo simples registro dos fatos. Todavia, também é sabido que a quantidade de articulistas a irradiar focos de reflexão não é tão farta e igualmente vasto também não é o espectro de leitores em sintonia com tais artigos. Então, qual é a conclusão? Em parte, ela tão simples quanto melancólica: resta basicamente o jornalismo de informação factual, marcado pela sua inconsistência crônica que, exatamente por isso, pode vir a ter seus dias contados. Já há sinais de saturação em alguns segmentos jovens. Parafraseando uma sentença de Aníbal Machado, em relação aos "modernistas de 22", diria que os jovens talvez não saibam ainda o que querem, mas já sabem o que não querem. Em algum nível, eles haverão de forçar o rumo das coisas…

A razão e a desrazão

A crise aguda a que chegaram as tensões no Oriente Médio tem, no mínimo, duas matrizes: uma interna, outra externa. Para agravar a complexidade que envolve o embate entre o Estado de Israel e a Autoridade Palestina há a constatação de que, em ambas as matrizes, é detectável um desdobramento de cunho antitético em si mesmo, a que denominaremos "dialética da contradição interna". Em princípio, a dialética supõe sempre a tensão entre duas teses. O que se pretende apontar, no caso, é que, no enredo do conflito, em cada uma das teses há o contrário do que ela própria afirma, ou seja, tanto no lado israelense quanto no lado palestino se faz presente a "síntese contrastiva", ou "concomitância assimétrica", embaraçando conceitos de certo/errado, justo/injusto, defesa/violação.

Para dar maior visibilidade à questão:

1. É legítimo o princípio de autoproteção reivindicado por Israel; é inaceitável a política expansionista de Israel, ou seja, o segundo fato contradita o primeiro;

2. É justíssimo o direito de os palestinos terem um Estado constituído em território próprio; é abominável a recorrência ao terrorismo para a obtenção desse fim.

As duas faces (na verdade, quatro) da matriz interna ainda recebem mutuamente a sobrecarga de outro impasse: ambos os lados exigem o reconhecimento de seu próprio Estado, sem reconhecerem o "Estado" do "outro".

No âmbito da matriz externa, situa-se o modo como o Ocidente olha e relata o conflito. Nesse "modo de olhar", revelam-se também duas vertentes. No interior delas, aloja-se outro desdobramento potencializador de mais contradição. Procurarei descrevê-lo.

a) O confronto tende a ser visto como uma guerra entre judeus e fundamentalistas islâmicos, travestidos de palestinos. A observação tem tanto de verdadeira quanto de falsa. É verdadeira, se alguém entende que Israel é um Estado judaico. Por outro lado, é falsa para quem compreende ser Israel um Estado de maioria judaica que, por sua vez, abriga palestinos, estrangeiros de todas as partes, raças e crenças ? ou seja, o cidadão israelense (judeu e não exclusivamente judeu) é digno e vítima de outros (judeus e não unicamente judeus) tão indignos quanto perversos. Em Israel, como nos EUA, há seres humanos e terroristas que praticam atentados contra inocentes, bem como assassinos de seus próprios líderes e políticos.

Na Autoridade Palestina, de igual modo, habitam seres íntegros e decentes, em meio a mentes deformadas por crenças homicidas e planos terroristas. Milhares de seres olham a vida para celebrá-la, enquanto outras estão prontas para banalizá-la com um cinto de explosivos. Cidadãos palestinos cujas ancestralidades tão bem viveram em meio a judeus, bem como estes em relação àqueles, estão pelas ruas a querer o direito a passar por elas livre e descontraidamente. Por outro lado, coterrâneos estão prontos para o flagelo e a destruição.

O Ocidente tem de se esforçar em noticiar os acontecimentos, sem o cômodo e o irresponsável reducionismo tendencioso, sem satanizar e estigmatizar raças nem credos. Nada de mais diabólico existe no Oriente Médio que não habite a paisagem não menos tenebrosa do Ocidente, com suas faces a exporem terrorismo, narcotráfico, rede de prostituição, comércio ilegal de armas, violência urbana, massacres sociais pelo desemprego, pela fome, por extermínios, etc.

b) O confronto é visto por certos segmentos do Ocidente como o palco ideal para grandes negócios, ou seja, entra na questão um dado novo, sob a forma de pergunta: "Quem lucra com o acirramento e prolongamento do conflito?" 

O cenário do lucro

Até mesmo uma leitura ingênua dá conta de que dois setores industriais multiplicam seu lucro, à medida que se intensifica o confronto, em nome dos inadministráveis impasses: a indústria bélica e a indústria extrativista, ou seja, armas e petróleo. Um terceiro tentáculo pega carona na prosperidade gerada pelo horror: o mercado de capitais. Oscilações no preço do barril alteram quadro das ações e das aplicações nas principais bolsas do mundo. Somente neste ano, em função do rumo dramático presente na região do Golfo, o preço do petróleo foi majorado em 35%. Muitos ganharam (e ganham). Quem são eles? Corporações industriais especializadas em tecnologia de ponta (para fins bélicos ou não) se valem de "guerras administradas" para campo de teste de seus inventos. Quais são elas? O que leva, portanto, a mídia oficial (nacional e estrangeira) a não tematizar tais questões? Que cumplicidade silenciosa é essa?

Também a mídia faz a sua fatura com o atual quadro. As grandes redes e agências de notícia vendem a "informação-produto" para inúmeras parte do mundo. O conflito do Oriente Médio, por conseguinte, é objeto de manipulação da razão perversa e da razão cínica. Há, na origem e no desdobramento do conflito, a manipulação regida por "atravessadores" e "intermediários" no engendramento de intrigas (e por que não no financiamento direto e/ou indireto de atentados?).

No centro das tramas, populações são empurradas ao corpo-a-corpo, sob o incentivo de grupos que clamam por vingança (em nome da justiça) e disseminam o ódio (em nome da verdade divina). Nesse embate, entram também políticos com suas carreiras e vaidades. Está corretíssimo Alberto Dines, em seu artigo "A voz da diáspora", quando, em seu parágrafo final, afirma:


"Sharon, como seus antecessores da direita israelense, brande uma história distorcida e enferma. Tão perniciosa e caricata como aquela brandida por seus detratores". (Jornal do Brasil, 6/4/02)


No jogo sujo dos interesses econômico-financeiros, não foram poucos os que suspiraram aliviadamente quando um tiro à queima-roupa matou o primeiro-ministro Rabin. Muitos haverão esfregado as mãos de prazer, ante o promissor horizonte de lucros. É estranho que a imprensa não problematize esses ângulos oblíquos nos quais a "verdade" por vezes fica soterrada…

A imprensa brasileira

Jornalistas de plantão dirão que especular ou formular matérias calcadas em hipóteses e interpretações é trair o próprio fundamente que rege o ideário jornalístico. Menos ainda, irão fazer ilações em torno de um problema do qual a realidade brasileira até se orgulha em não ter. Afinal, somos um povo tolerante com todas as diferenças, e até reconhecidos como boníssimos anfitriões. No Brasil, não há lugar para sectarismos, continuarão alegando os jornalistas de plantão. Se assim pensam, então é urgente que vozes comecem a prevenir o contrário. Nenhum povo é mais ou menos conciliador ou beligerante e discriminador. Isto sim é falso. A sociedade brasileira facilmente ? como qualquer outra ? sai (ou pode sair) de um modo de ser para outro, desde que aqui também se instalem "atravessadores", "intermediários" ou "agentes do ódio". Em pouco tempo, grande parte da população brasileira, tradicionalmente "cordata" e "hospitaleira" pode ser guindada a comportamentos hediondos.

É prudente termos, na linha imaginária de nossas expectativas históricas, a possibilidade de disjunções cujo perfil pode ser variado. Se a situação de conflito se mostrar interessante (ou necessária), ela será criada. Nesse momento cruel, nenhum "jornalista de plantão" aparecerá para dar explicações a respeito de sua tímida e limitada percepção no passado. Terá sido tarde demais para evitar a irradiação do mal. Em nome de se fortalecer uma cultura pluralista em todos os aspectos, é que a cobertura jornalística de conflitos como o do Oriente Médio deveria ser orientada não pela mera reprodução de dados, fatos e marketing de políticos ou organizações, e sim voltada para fornecer elementos com os quais as pessoas efetivamente pudessem elaborar pensamentos e relativizar possíveis tendências preconceituosas ou estigmatizantes. Fica o apelo… enquanto ainda se pode fazê-lo.

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.