Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Imprensa e literatura, temas e problemas

JORNALISMO CULTURAL

Deonísio da Silva (*)

Talvez a nossa grande paixão seja a do conhecimento. Na Bíblia, em episódio inserido com sabedoria num romance de Ana Miranda, O Retrato do Rei, está lembrado que Deus adverte Adão e Eva dos perigos do conhecimento, que pode trazer a morte: É célebre a citação do Gênesis: "Podeis comer de todas as árvores do jardim, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comereis, porque no dia em que dela comerdes, morrereis".

Contrariando a recomendação imemorial dos tempos bíblicos, a Humanidade segue bisbilhotando em tudo, da fissão do átomo, que nos deu as bombas nucleares capazes de exterminar a Humanidade com um único tiro, à réplica de nós mesmos, em clones. E uma das melhores definições de pesquisa encontra-se meio perdida num texto de Friedrich Engels (1820-1895): "A ciência é a eliminação progressiva do erro".

Uma das mais elevadas funções da imprensa é o lugar de destaque que cumpre nas democracias, fazendo jus ao quarto poder ? ainda que no Brasil, em certas temporadas, pareça, não apenas o primeiro, mas o único. Espelhando as complexas evoluções da sociedade rumo às utopias de cada um, expressas tanto na imprensa quanto nas urnas, a mídia incorre com freqüência num erro para o qual este Observatório chamou a atenção ainda no nascedouro: "A cidadania foi convertida num conjunto de consumidores, ficticiamente vocalizados por pesquisas de opinião pública que empregam metodologia quantitativa, necessariamente redutora, e com pautas alheias aos reais interesses e necessidades dos opinadores". Em vista do constatado, "o Observatório da Imprensa propõe-se a funcionar como um atento mediador entre a mídia e os mediados, preenchendo o nosso ?espaço social?, até agora praticamente vazio".

Pois foi à luz desses conceitos que li os jornais e revistas de sábado e domingo [16-17/3/02]. "O Sol nas bancas de revista / me enche de alegria e preguiça / quem lê tanta notícia?", indagou Caetano Veloso em famosa canção. Será impressão minha ou os grandes jornais e revistas ficaram todos mais ou menos iguais? Sim, há algumas diferenças essenciais aqui e ali, com a força dos detalhes, mas no conjunto não são semelhantes no essencial?

Um olhar rápido em O Estado de S.Paulo: longa matéria sobre o campus da USP em São Carlos, destacando as pesquisas do Instituto de Física. Um dos editoriais volta a ocupar-se das universidades públicas. Tomo a Folha de S.Paulo e folheio já sem muita esperança o suplemento Mais! A capa reproduz fotograma em que Grande Otelo personifica Macunaíma, herói homônimo do filme de Joaquim Pedro de Andrade.

Tema solar

O artigo é de Walnice Nogueira Galvão, pesquisadora, docente, autora, nome de relevo e de leitura indispensável para quem quer conhecer nossas letras. Mote de seu artigo: o "fundamentalismo do mercado"; a "derrocada de certa concepção de alta cultura ? e de alta literatura". É um texto para recortar e guardar, ainda que estranhe, sobretudo em homenagem ao percurso intelectual da autora, a ausência de nomes muito mais relevantes do que alguns dos citados, avultando-me as lembranças de Erico Verissimo, sobretudo por Incidente em Antares; Josué Guimarães, por Os Tambores Silenciosos; Benito Barreto, por Os Guaianãs, obras que ombreiam em qualidade com as de Antonio Callado. Aliás, principalmente se consideradas à luz do critério específico adotado pela autora ? "romances que discutiam a tirania e como derrubá-la".

Suas citações das obras pós-64 ("das sobras") indicam também que a professora talvez ignore (ou não teve tempo de incluir no artigo) vertentes novas em nossas letras. Por exemplo, nenhuma palavra sobre romances que espelharam a questão agrária e a luta do Movimento dos Sem-terra (MST), alguns dos quais já traduzidos, ou apenas comentados, no exterior, por pesquisadores mais atentos ao novo em nossas letras. É o caso de Ana Terra, de Alcyr Cheuíche.

Gostei e aprendi, como sempre, ao ler o ensaio de Walnice. Contudo, dublê de professor e romancista, me permito um outro olhar. E surgem algumas indagações. Por que nomes como os Ignácio de Loyola Brandão, Luiz Antônio de Assis Brasil, Miguel Jorge e Domingos Pellegrini Jr não aparecem nesses ensaios publicados na imprensa, nem mesmo com obras já reconhecidas também no exterior?

Roberto Schwarz alude a "artigo recente da autora sobre a qualidade duvidosa da arte de Rubem Fonseca". Conheço a obra de Rubem Fonseca, à qual dediquei uma dissertação e uma tese, além de vários livros, ensaios e artigos, e acho simplesmente duvidosa a qualidade de quem o critica sem ler. Talvez na paz dos cemitérios, esse e outros autores sejam um dia melhor entendidos, porque terão satisfeito a condição sine qua non para certos sistemas de pesquisa instaurados entre nós há décadas: o atestado de óbito.

"Um outro painel vem sendo montado, no que diz respeito às diferentes correntes imigratórias", diz a autora, com propriedade. Mas depois de Moacyr Scliar e Nélida Piñon, que estrearam nos anos 60, muitos outros escritores se dedicaram ao tema. É verdade que Nélida Piñon só vai publicar a República dos Sonhos na década de 80, e Salim Miguel (que não é citado) publica Nur na Escuridão, cujo tema solar é a imigração árabe, na passagem deste milênio.

Autor menor

Às vezes fico pensando com meus botões, inconformado com tantas ausências, vazios sempre reiterados: pode ser que estejamos levando por demais a sério a literatura brasileira, exuberante, diversificada em temas e problemas, modos de narrar, estilos novos, novas personagens. Por que tamanho silêncio sobre NOSSAS letras em NOSSA mídia? E a lição de Antonio Candido, sempre invocado, mas raramente numa citação primorosa, dando conta de que a literatura brasileira para nós é a mais importante do mundo por ser a única que nos expressa?

Buscando refletir sobre a questão, recebo notícia de que para o próximo Salão do Livro, em Paris, neste março, muitas editoras brasileiras de renome, que publicam autores já traduzidos na França, não enviaram os livros solicitados para o estande dedicado ao Brasil.

Atenção, escritores brasileiros que ainda não morreram e por isso ainda não atenderam ao requisito essencial para serem conhecidos! Ignorados na pátria de nascimento e ignorados na nação do livro, vocês (ou nós) estão esperando o que do Brasil? E por que continuam (continuamos) escrevendo?

Bem, quanto a mim, prezo muitos dois conselhos. Um me foi dado pessoalmente por Rubem Fonseca: "Ninguém tem a força de esconder para sempre um bom livro". Outro, de Erico Verissimo, lido ao mesmo tempo em que despontavam como autores novos aqueles hoje citados, que eu li no curso de Letras, concluído no longínquo 1976: a função do escritor pode ser a de acender uma vela, em vez de apenas imprecar contra a escuridão.

De tantas velas acesas, já podemos fazer o velório da Literatura Brasileira. Sugiro que nossos caixões sejam postos ao lado dos do Modernismo, para que nosso enterro demore alguns anos. Afinal, ainda hoje, 80 anos depois, o funeral ainda não foi feito! Já que não nos viram em vida, que nos vejam póstumos. Críticos que ignoram sistematicamente autores e obras, sobretudo quando pagos pelo dinheiro público para estudá-los, terão sua memória assombrada por nossos fantasmas. Já será tarde para todos, menos para os pósteros, como tantas vezes aconteceu em nossas letras. Afinal, Machado de Assis foi dado como um autor menor por ninguém menos que um historiador da literatura brasileira do porte de Sílvio Romero.

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, doutor em Letras pela USP; autor, entre mais de vinte livros, de Exposição de Motivos (transposto para a televisão por Antunes Filho, em 1976), Teresa (adaptado para teatro em 1993) e Avante, Soldados: Para Trás (Prêmio Casa de las Américas em 1992)