Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Imprensa palaciana

Orlando Tambosi(*), de Florianópolis

 

A

imprensa brasileira nasceu de parto palaciano, em 1808, com a fuga de D. João e sua corte das tropas de Napoleão. Foi da censura que a régia criatura recebeu o primeiro embalo: à junta que dela cuidava cabia “examinar os papéis e livros que se mandassem publicar e fiscalizar que nada se imprimisse contra a religião , o governo e os bons costumes”. Desde o berço, portanto, a cicatriz palaciana – nada de críticas ao governo. Do monarca português a Fernando Henrique muita coisa mudou, mas a marca de nascença permanece.

Já não existe censura oficial, felizmente. Mas a censura foi, para usar um termo da moda, privatizada. Os próprios grupos de comunicação a exercem, de acordo com seu grau de adesão aos governos e segundo sua historicamente débil capacidade de resistência às pressões. Dossiês que comprometem poderes e autoridades jazem nas gavetas das melhores redações. Certos temas são tacitamente proibidos (quando não o são expressamente). E os próprios jornalistas, mesmo os menos dóceis, acabam interiorizando a censura ou a ela se acomodando. Sempre inconveniente a todas as formas de poder, a crítica torna-se cada vez mais marginal, quando não relegada a colunistas e colaboradores.

Folheie-se qualquer jornal atentando para suas editorias e a conclusão será uma só: em termos de política a imprensa é passiva e palaciana (notícias a partir de governos, ministérios, políticos, etc.); em termos de economia, reduz-se a porta-voz de empresários, banqueiros e grandes grupos (o trabalho só aparece – e raro – quando organizando sindicalmente ou faz barulho); em termos de cultura, é mera divulgadora de serviços, futilidades e entretenimento (cinema em dose maciça); em termos de polícia, cultiva piamente o “Boletim de Ocorrências” das delegacias, com seus míseros ladrões; em termos de cidades, a orgia de buracos e túneis e as ladainhas de reclamações; e em termos de esporte, finalmente, páginas e páginas para o futebol, embora os fanáticos dessa modalidade pouco leiam jornais.

Mas o que ressalta mais é, justamente, o “estatismo”, tanto do jornal impresso quanto do telejornal (Boris Casoy, por exemplo, parece tomar o cargo do impassível porta-voz da presidência). O que levou Mino Carta a dizer, com razão, que a imprensa tem se colocado sistematicamente contra os movimentos e manifestações populares. O caso das Diretas Já, nesse sentido, permanece um símbolo: com raras exceções, a imprensa chegou tarde.

E tarde reconheceu a importância de organizações como o MST, não sem antes demonizá-lo. Agora mesmo, parte dela ignora a paralisação que atinge todas as universidades federais, envolvendo diretamente milhares de professores e funcionários e quase meio milhão de alunos, e, indiretamente, a própria sociedade brasileira. é o caso, para ficar em poucos exemplos, da cronológica revista Veja e da mística IstoÉ – perderam até para a Rede Globo, que tem pedigree em governismo.

Em seu “Projeto Editorial 1997”, a Folha de S. Paulo, que figura entre os jornais levemente mais críticos, reconhece a necessidade de “desestatizar” o noticiário, marca de um jornalismo “ainda fortemente atrelado a agendas, fontes e declarações oficiais”. Basta consultar qualquer jornal norte-americano ou europeu para verificar que a cicatriz estatista não é universal. Nos EUA, Clinton não aparece todos os dias em fotos e matérias de jornais, muito menos na primeira página.

É que lá, assim como nos países europeus, a imprensa não nasceu em palácio nem foi acalentada pela censura. Ao contrário, surgiu como contraposição ao poder dos monarcas e como expressão da esfera pública, isto é, da cidadania. Livrar-se dessa cicatriz é condição necessária à sobrevivência do jornalismo como defensor do interesse público. Sob pena de reduzir-se a mera assessoria de imprensa.

(*) Professor de Filosofia e Ética do Curso de Jornalismo da UFSC.