Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Imprensa papa-defunto

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COBERTURA

José Antonio Palhano (*)

O (bom) editorial da Folha de S. Paulo "Dezessete meses" (domingo, 13/05) dava bem o tom da coisa: por mais que o governo Fernando Henrique insista em cevar crises e cavar abismos, até quando a imprensa, de um modo geral, se contentará em digitar seu obituário e entoar seu réquiem?

Lá pelas tantas, lê-se que "é forçoso dar mais razão aos que apontam nesta fase do governo FHC um processo semelhante ao ocorrido nos estertores das gestões Sarney, no Brasil, e Carlos Menem, na Argentina". E, no fecho, "…o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso caminha melancolicamente para a sua etapa final".

Sem prejuízo para a criatividade daqueles habituados a comparar governos presentes ? e portanto, dinâmicos por definição ? com seus equivalentes passados e extintos, talvez conviesse se ater a uma certa característica destes últimos que os reduz a objetos da história. Esta, ainda que se faça mais atraente, rica e valiosa, jamais deverá ser invocada na intenção de patrocinar a extrema-unção de mandatos vigentes, por mais que se torça ardorosamente pela possibilidade. Quando menos, deve-se prestar um pouco de atenção às gerações dos que hoje andam ali pela casa dos 40. Uma certa inapetência pela nossa trajetória republicana (se isto é exagero, o desprezo pela memória, mania nacional, serve) bem pode estar induzindo essas galeras a construir uma contrafação: de Getúlio Vargas, por exemplo, até imediatamente antes de FHC, a barra teria sido mais leve.

Jamais foi leve e nisto reside um nosso monumental e espinhento engasgo: quanto mais situamos o epicentro da crise de sempre na figura do presidente da República, mais nos afastamos da possibilidade de encarar o processo à altura da sua real gravidade. Em linguagem futebolística, é aquele negócio de trocar o técnico sempre que o time não vai bem.

Só não vê quem não quer: tanto faz se é operação Abafa-CPI ou déficit de energia, a fúria fundamentalista com que "interpretamos" o governo nos leva, mesmo que inconscientemente, a "pedir" sua abreviação. Como seria de extremo mau gosto escancarar com derrubadas e quarteladas, partimos para essa pauta de coveiro, para posturas e comportamentos típicos de rodinhas de médicos de UTIs, que, na sua sacrossanta intimidade, apontam para o doente dando-o como caso perdido.

A questão é a seguinte: em termos estritamente jornalísticos, temos realmente condições (e argumentos) de assinar o atestado de óbito do atual governo, ou tudo não passa de um "distúrbio reativo de conduta" (a expressão diz de um diagnóstico relativamente comum em pediatria; afinal, somos uma democracia que apenas floresce) frente a sonhos não realizados, à brutal incompetência oficial, às gigantescas marés de corrupção e que tais?

Rigorosamente todo dia se lê por aí que o governo acabou, que ora rola uma tal sarneyzação, que o fim do governo Figueiredo jamais foi tão atual ? e aqui é bom registrar que a citação ao editorial da Folha foi apenas ilustrativa. Ora, se tudo isso aí é parâmetro para definir a agonia final de um governo que ainda tem 17 meses pela frente, lícito supor também que ainda carregamos no lombo (ou no inconsciente) teores e motivações conspirativos em níveis bem mais altos do que ousaríamos imaginar.

Se não for assim, cabe perguntar: que graça tem ficar cobrindo um defunto institucional por mais 17 longos meses? O que dizer ao distinto leitor, se nós, os fazedores de jornal, nos encarregamos de anunciar que tudo não passa de matéria morta e que o negócio é "bater em morto"? E aí rodaremos cadernos especiais nos quais se discorrerá sobre a tanatologia política do atual contexto? Vem por aí um irresistível surto de tanatomania?

Paralelamente a este estilo macabro e funéreo, não faltam textos, principalmente de colunistas especializados, dos quais emanam terríveis e bíblicas advertências, admoestações e pitos a mais não poder, uma catilinária sermonária que aponta para um futuro no qual Fernando Henrique & Cia vão se ver em acerto de contas com uma população que, na certa turbinada por descargas e energias celestiais, deu um jeito de se reciclar em frente à Bastilha de antanho. Semelhante sede de justiça, mais afeita à rotina dos conventos e às crenças de beatas cujo apelo a teledramaturgia já desidratou, pode até revelar certos pendores patrióticos. Mas jornalismo é que não é, de jeito nenhum.

Ou não nos acostumamos a ouvir a eterna abobrinha segundo a qual o Brasil ainda não tomou jeito apenas e tão-somente porque não mergulhou em nenhuma guerra sangrenta, civil e fratricida, não padeceu os horrores de alguma peste devastadora e virulentíssima ou não balançou ao sabor de terremotos asiáticos? Pois é. Vida que segue, governo morto, só falta enterrá-lo, e já irrompe coisa nova por aí. A escalada de incompetência do governo na crise de energia provou ser diretamente proporcional à fantástica e imprevisível mobilização popular pelo racionamento, bem antes de acesa a primeira e mísera vela.

E agora? Chamar o presidente de "teflon" não vale. Isso é coisa de ministro da ditadura, ora curtindo a preguiça e colocando sua criatividade no papel. Tem que ir mais fundo. Espernear de ódio porque "o povo é burro" também não vale. Talvez o melhor a fazer seja mesmo deixar de lado essa asnice de que o governo já acabou e ir à luta. Isto inclui fazer jornal de forma a passar ao leitor, sem medo de ser feliz e de passar por chapa-branca, que em 17 meses muita água ainda vai rolar e que é infinitamente melhor para todo mundo que o governo permaneça vivo até lá. Quer a gente queira ou não, continue o governo a errar exponencialmente ou não. O jornal que embrulha o peixe (morto), vale lembrar, é o de ontem.

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