Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Imprensa reprimida


 

O julgamento do angolano Rafael Marques, jornalista acusado de difamar o presidente da Angola José Eduardo dos Santos, foi adiado sine die, conforme informou Reginaldo Silva em matéria para o jornal Público (16/12/99). No dia previsto para o julgamento, mais de 50 deputados do parlamento angolano anunciaram documento no qual condenam abertamente a repressão do governo contra a imprensa do país.

A protelação do julgamento de Rafael Marques, que estava marcado para 15 de novembro, foi oficialmente justificada como acato a requerimento da defesa dirigido ao Tribunal Supremo. Entretanto, segundo o repórter Reginaldo Silva, esta foi a primeira vez em que um órgão soberano do Estado questiona de forma tão frontal a atuação do governo na questão da liberdade de expressão. A carta, encabeçada por deputados da oposição Unita, discrimina também a ação da polícia em repreender jornalistas e empresas privadas de comunicação. "É com redobrada apreensão que vimos assistindo a constantes atropelos à liberdade de expressão, consubstanciados na intimidação a jornalistas e a órgãos da comunicação social privada", diz o documento. O problema é que, vindo da Unita, que nasceu na direita mais sanguinária e hoje posa de liberal, esta declaração de princípios também não pode ser levada muito a sério.

Coincidência ou não, o adiamento do julgamento aconteceu no dia da visita-relâmpago de Thomas Pickering ao país. Ele é subsecretário de Estado norte-amerciano para assuntos políticos. O Departamento de Estado dos Estados Unidos condenou o governo angolano por ter encarcerado Rafael Marques.

A igreja católica angolana promove campanhas para a promulgação de uma lei de anistia de todos os processos que foram instaurados contra jornalistas. Observadores acreditam que, devido à força da igreja, Rafael Marques poderá não ser julgado, beneficiando-se de uma possível anistia.

 

Três jornais independentes de Luanda, capital da Angola, tiveram suas gráficas invadidas por policiais no sábado (11/12) e foram proibidos de veicular informações sobre relatório produzido pela organização britânica Global Witness, o qual faz duras críticas ao governo angolano. Os jornais Folha-8, Agora e Actual tiveram que substituir, ou simplesmente apagar, as páginas que tratavam do relatório depois que oficiais da Direção Nacional de Investigação Criminal (DNIC), órgão da polícia do Estado, invadiram a tipografia onde os três jornais são impressos.

Segundo matéria de Reginaldo Silva para o jornal português Público (14/12/99), Folha-8 circulou no domingo (12/12/99) com quatro páginas totalmente em branco. O jornal Agora, por sua vez, remanejou a edição e só circulou na segunda, com vários artigos "tapando buraco". Actual também circulou com uma página em branco.

O relatório da Global Witness acusa as companhias de petróleo e as instituições financeiras de Angola de assegurarem ao governo recursos para as guerras. De acordo com matéria publicada pelo canal de notícias Comunidade Lusófonas (13/12/99), o relatório aborda também a questão da corrupção, falta de transparência e existência de uma oligarquia em torno da presidência da República. "Este grupo controla grande parte dos acordos obscuros do Estado, incluindo a transferência de montantes significativos das receitas (…). Na verdade, um sistema paralelo de transferência de receitas", diz o documento.

Os diretores dos jornais censurados afirmam que entrarão na justiça para serem indenizados pelos prejuízos que sofreram com a intervenção policial.

 

 

Rafael Marques

Meu julgamento começa hoje. As autoridades me proibiram de falar em público. Ainda assim, eu sinto que devo.

Meu crime? Em um artigo para um semanário independente no último verão eu chamei o presidente da Angola, José Eduardo dos Santos, de o mais "astuto e discreto dos comandantes autoritários da memória recente da África". Em outras palavras, um ditador politicamente hábil.

Próximo a 16 de outubro, eu fui preso sob a mira de uma arma em minha casa e levado para uma prisão onde fiquei sem comunicação para fora por 10 dias. No meio da noite, eu era despertado, tirado de minha minúscula cela e levado para assinar folhas de papel em branco (aparentemente a serem usadas na minha confissão). Eu recusei assiná-las. Depois de cinco semanas, fui solto, sem nunca ter sido informado do motivo de minha prisão.

Agora eu estou sendo acusado de "difamação criminosa agravada". Em meu artigo, eu questionei o patriotismo de um líder que durante 20 anos falhou em fazer qualquer investimento significativo em saúde, educação ou outras necessidades públicas. Ao invés disso, ele permitiu que os lucros obtidos com o petróleo de Angola – que abastece 7% do consumo diário dos Estados Unidos – fosse para cofres de militares ou para os bolsos de camaradas do governo.

Apesar da imensa riqueza de Angola em petróleo e diamantes, nossa capital, Luanda, não tem catadores de lixo nem água potável. Os preços de comida e diferentes bens são os mesmos aqui, em Tóquio ou Londres; o salário médio em Angola, entretanto, é de apenas 25 dólares por mês. O governo gasta centenas de milhões de dólares por ano em sua guerra civil com a Unita, o grupo rebelde liderado por Jonas Savimbi. Desde 1974, quatro acordos de paz internacionais já falharam. O presidente Santos e Savimbi só conhecem uma maneira para governar: por meio da guerra e de lideranças autoritárias.

Agora o presidente Santos decidiu que a imprensa independente é, depois de Savimbi, a ameaça mais séria ao seu regime. Este ano, 20 jornalistas foram detidos. Conforme um observador em missão da ONU notou em agosto, "tais atos de intimidação encorajam censura própria e restringem o debate público".

A visita a Angola neste mês de Richard Holbrooke, representante norte-americano das Nações Unidas, e sua garantia de que janeiro de 2000, quando os Estados Unidos assumirem a presidência do Conselho de Segurança, será "o mês da África", foi encorajadora. Também foi encorajador o governo britânico, que se posicionou contra meu encarceramento.

Como o oeste pode ajudar? Os governos e grupos privados poderiam dar mais ajuda a uma recuperação pós-guerra duradoura: mídia independente, uniões, grupos religiosos, micro-empreendimentos e reformadores educacionais.

Os angolanos não podem, claro, esperar que resto do mundo os salvem. Não haverá nenhuma mudança aqui a menos que nós falemos. Hoje, talvez, eu terei minha chance.

(*) Copyright The New York Times, 15/12/99. Rafael Marques, poeta e jornalista, é coordenador dos programas do Open Society Institute de Angola.