Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Imprensa viu só um lado do jogo

LULA E BUSH NA ONU

Manuel Muñiz (*)

Toda vez que um líder nacional discursa no exterior a imprensa brasileira demonstra seu costumeiro ufanismo, com páginas e páginas dedicadas à diplomacia do país. Como não poderia deixar de ser, o presidente Lula foi tema de matérias, antes e depois de seu discurso na abertura da assembléia da ONU, na terça-feira 23 de setembro.

A diplomacia nacional, ao longo dos anos, é tida como exemplo de trabalho bem-sucedido, independentemente do líder do governo. Tão boa que a impressão que passa é que todas as nossas mazelas são fruto da posição dos países mais ricos. FHC mesmo parecia um presidente no Brasil e um diplomata no exterior. Firmava boa imagem porque a imprensa não colocava um contra o outro, como seria de esperar.

Agora, na ONU, o discurso de Lula procurou caminhar, de novo, para este lado. O presidente lembrou a justiça social, o flagelo da fome e a guerra. Reiterou o papel da ONU na busca da paz, deixando clara a discordância com a política externa norte-americana, principalmente no Oriente Médio.

Os discursos nacionais no exterior passam a idéia de uma natural fragilidade do país, vítima da política do mais forte, quer seja do homem frente à natureza ou a do bem contra o mal. Neste aspecto, fica marcada a idéia de que só o combate no exterior bastaria para que nossos problemas fossem dirimidos. O que não é verdade.

Quer seja por ter o Brasil assumido posição de liderança no grupo dos 22 países mais pobres na Organização Mundial do Comércio ou por Lula ganhar aura de pacifista, seria de esperar que o tema do discurso do presidente brasileiro viesse, de novo, a atacar a posição dos Estados Unidos.

Performance ignorada

Bem-assessorado, Bush, que falou logo em seguida a Lula na ONU, preferiu o improviso, sobretudo estando bem-informado sobre questões que pegaram em cheio o calcanhar de Aquiles do Brasil. Foi um contra-golpe à altura do discurso brasileiro.

Entre outras coisas, Bush cutucou o Brasil, retornando as críticas que Lula havia feito momentos antes. Lembrou que os Estados Unidos estão disponibilizando mais de US$ 1 bilhão para o combate à fome no mundo. Afirmou que seu país tem leis severas contra o turismo sexual e que as leis protegem as vítimas de abusos do poder econômico ? referindo-se ao trabalho escravo e infantil, que não param de acontecer no Brasil. "Protegemos nosso país de quem procura lucrar sobre a miséria de outros", fuzilou Bush, querendo aludir, quem sabe, à capacidade brasileira de produzir escândalos de corrupção como nenhum outro grande país no mundo, por conta de políticos inescrupulosos. O líder norte-americano também não deixou por menos ao fustigar uma das maiores chagas do nosso país, lembrando o crime organizado, que também tem alto índice de crescimento e denota a incapacidade do governo em resolver o problema.

Resumo da ópera: se Lula quis se valer das escorregadelas de Bush no campo da política externa, Bush fez o mesmo ao explicitar os problemas do Brasil, que ajudam (e muito) a fazer dos brasileiros campeões da injustiça social, da corrupção, da péssima distribuição de renda, da fome, da violência…

O curioso é que a performance do presidente norte-americano não foi levada em conta e nem mesmo apareceu na imprensa tupiniquim. Por quê? Por complexo de inferioridade ou por falta de capacidade de refletir a realidade? Não creio na falta de reflexão, já que toda a imprensa noticiou que Lula declinou do convite de Bush para a recepção que o governo norte-americano ofereceu aos líderes de governo das nações presentes em Nova York. Aliás, Lula foi o único a não comparecer, conforme informou o Jornal da Globo.

Fortalecimento da cidadania

Poucas vezes um líder de Estado percebeu com tanta clareza e realidade os problemas brasileiros como Bush em seu discurso, que falou pouco mas foi de precisão cirúrgica, apontando com discrição, tanto quanto a fala de Lula, os pontos nevrálgicos de nossas questões internas.

Com certeza, as palavras do presidente norte-americano merecem reflexão da mídia nacional, que perde uma abertura e tanto ao não dar o tratamento adequado às nossas feridas sociais, analisando os dois Brasis: um que se impõe diante do mundo como liderança e outro que se omite, quer seja no Congresso Nacional, nos estados e municípios ou nos tribunais, por uma série de motivos, como a corrupção.

E neste aspecto a mídia está pisando na bola faz tempo. Está aí o caso do Banestado, o maior episódio de corrupção do Brasil, que passa em branco pela maioria dos veículos de imprensa.

Se é com postura de liderança que o Brasil vai se firmando no mercado internacional e na ONU, acredito também que o grau de comprometimento do país só poderá acontecer à medida que sua sociedade participe do crescimento social e da produção de riquezas. Tenho certeza de que o brasileiro está pronto para esta luta, desde que a sociedade possa contribuir para seu aproveitamento, não como massa de manobra, mas como aliada nesse processo de fortalecimento da cidadania.

A insensibilidade prevalece

Para isso, no entanto, é preciso que a elite, como a que se instala confortavelmente na direção da mídia, acorde e dê uma chance para este despertar, promovendo a verdade que está clara para alguns, mas não para todos. Nesse aspecto, precisamos ouvir dos jornalistas respostas em forma de trabalho: A quem estamos servindo, à sociedade ou aos nossos patrões?

O episódio da ONU mostra que se o Brasil continuar exercendo liderança na OMC deve ser vítima de críticas, como as que Bush perpetrou na terça-feira. Em vez de estilingue passaremos ao papel de vidraça.

Não acredito que esconder a sujeira debaixo do tapete nos leve a posição melhor do que esta em que nos encontramos. Ao contrário, precisamos resolver nossas mazelas o quanto antes. À imprensa cabe o trabalho de investigar e esclarecer os problemas que os políticos, habitualmente, fazem força para não ver revelados.

Se Bush nos fez o favor de frisar nossas faltas seria natural que a imprensa utilizasse esse gancho para realizar seu serviço. Mas, infelizmente, a insensibilidade das elites continua prevalecendo. No jogo Lula x Bush, a imprensa só viu um lado.

(*) Jornalista e professor da Faculdade Integrada da Bahia