Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Informação inteligível em lugar dos tambores de guerra

GAVETA 11 DE SETEMBRO
Edição 139 # 19/9/2001

Ulisses Capozoli (*)

Ao contrário dos dias normais, que duram 24 horas, o 11 de setembro não terminará por muito tempo. A montanha de papel e os incontáveis tonéis de tinta com que a imprensa mundial noticiou e analisou o atentado nos Estados Unidos ? fora o tempo da televisão, do rádio e, claro, da internet ? fazem com que o assunto seja indispensável em qualquer texto que tenha relação com a mídia nos últimos dias.

E mesmo que se quisesse evitar a referência, seria impossível. A mídia ? a imprensa, como se generalizou ? por muitas razões está no epicentro dos acontecimentos. Daí transfere para a história as ondas de choque que farão desabar, primeiro, a bolsa, em seguida, os valores, crenças, dogmas e referências. Será necessário um tempo mínimo para que tudo se reacomode, o que não significa dizer que o sismo terá terminado. Ao contrário, para muitos analistas, pode ser apenas o anúncio de que o "big one" está por vir.

O assunto é inesgotável, e a melhor prova disso é o fato de o 11 de setembro não ter acabado no mesmo prazo dos outros dias. Mas algumas observações, particularmente, devem merecer a atenção de um espaço como este, dedicado ao jornalismo científico, especialidade do jornalismo que trata das relações entre ciência e sociedade.

O primeiro deles é a dependência dos jornais brasileiros dos grandes jornais da Europa ou dos Estados Unidos, cujo material reproduzem. Originalmente, estes textos de alguma forma estão voltados para uma sociedade específica. Não que não possam ser lidos por outra. Mas não é a mesma coisa. Há necessidade de ligações, conexões, exemplificações, relações, enfim, contextualizações, que um texto traduzido quase sempre não tem.

Jornalismo e história

Claro que os textos vindos desses jornais foram selecionados previamente, de acordo com a linha de edição de cada uma das publicações brasileiras. Interessante uma comparação rápida entre as edições de sábado [15/9] da Folha de S.Paulo e do Estado de S. Paulo. Neste dia, a manchete da Folha trouxe: "Bush tem aval para ataque e Taleban promete reagir". O Estado veio com uma manchete que seria a de um jornal americano: "Os terroristas vão nos ouvir logo". Enquanto a Folha manteve um equilíbrio e, ao mesmo tempo, uma tensão, referindo-se a dois interlocutores, o Estado simplesmente aderiu.

Os cadernos especiais do domingo refletiram a posição da véspera. Na Folha, de longe, Javier Valenzuela, do jornal espanhol El País, foi autor do melhor texto (Especial, pág.11). Valenzuela fez jornalismo interpretativo da melhor qualidade ao contextualizar acontecimentos e conferir-lhes inteligibilidade. Isso tem relação não só com o jornalismo científico, mas com uma "cientificidade" possível do jornalismo ? que é exatamente a interpretação, ou contextualização histórica dos acontecimentos.

Bin Laden, o homem apontado pelo governo americano como autor intelectual do atentado, mostrou Valenzuela, foi treinado pela CIA para combater os russos no Afeganistão, reeditando o que já ocorrera com Saddam Hussein, criação também dos Estados Unidos para controle do Irã. É o caso clássico do feitiço voltar-se contra o feiticeiro. Se a criação de personagens como Bin Laden não for devidamente estabelecida, tanto o atentado como os eventuais pretextos ? e, especialmente, as conseqüências ? terão pouca inteligibilidade. Aqui é preciso deixar claro que tudo isso não justifica a brutalidade que se abateu sobre o que se chamaria de gente comum: pessoas envolvidas com as tarefas do dia-a-dia.

Ainda a Folha publicou um texto de Robert Fisk, do jornal inglês The Independent, na mesma linha. Valenzuela mostra como e em que ambiente se criou Bin Laden. Fisk aponta, numa concisa incursão histórica, o que pode custar aos Estados Unidos, ou ao Ocidente (neste caso a Otan), uma eventual invasão do Afeganistão, país onde Bin Laden estaria refugiado. Essa gente rude das montanhas, com fervor religioso estranho aos ocidentais, mostra Fisk, relatando parte de uma experiência pessoal, já derrotou ingleses, russos e não estaria disposta a ser subjugada por uma outra potência, mesmo sendo a mais poderosa do planeta. Ou, talvez, por isso mesmo. É jornalismo com suporte em ciência, neste caso a história. Ciência, aqui, no sentido de método e inteligibilidade. A subjetividade da interpretação vale para qualquer área do conhecimento. Para Huygens, por exemplo, a luz era onda. Para Newton, partícula. E a luz, estranhamente, como se aceita hoje, tem natureza dupla, ou seja, é, ao mesmo tempo, onda e partícula.

Civilização solitária

O contraponto para o fervor religioso que incomoda o Ocidente não é novo e já havia surpreendido os espanhóis no México. Se tivessem se olhado no espelho da antropologia, no entanto, os espanhóis teriam visto que o fervor que eles próprios nutriam por ouro era ainda mais estranho aos maias.

A Folha publicou também um artigo interessante de Timothy Garton Ash, historiador de Oxford e Stanford, analisando três cenários possíveis para o futuro próximo sob impacto do atentado em Nova York. Suas previsões não são exatamente animadoras.

Jonathan Steel, do jornal inglês The Guardian, teve reproduzido pelo Estado um texto sobre a resistência do Afeganistão, mas sem o vigor do escrito de Fisk. Fora isso, o mérito do Estado foi um texto de Paul Kennedy, originalmente publicado pela Global Viewpoint. A certa altura, Kennedy, historiador de Yale e autor de Ascensão e queda das grandes potências, além de Preparando o século 21, diz, em relação à Segunda Guerra Mundial, que "derrotar o Japão foi como acertar um tiro num elefante. Derrotar esses terroristas vai ser como pisar em águas-vivas".

Essa, certamente, é uma reflexão que a imprensa de todo o mundo, incluindo a brasileira, deveria estar fazendo neste momento, em vez de apenas tomar partido incondicional como fez o Estado, no sábado, dia 15. A "retaliação" vai ser complexa, vai produzir tantas vítimas inocentes, ou mais, do que ocorreu em Nova York e só vai alimentar mais ódio ? e, assim, mais violência. Vai fortalecer, em todo o mundo, um complexo industrial-militar que deixa ainda menos espaço para a esperança de que o conhecimento, particularmente da ciência, seja empregado em benefício da humanidade.

Por trás deste cenário há um problema de natureza cosmológica, ainda que isso possa soar estranho para muitos. O problema, aqui, subentende a alienação da presença humana no Universo envolvendo justamente a maior potência espacial do planeta. Mais de 300 anos depois do início da ciência moderna, essa que dá poder aos Estados Unidos, ainda não se descobriu nenhuma evidência de uma outra civilização entre as estrelas. Por enquanto somos os únicos e, nesta condição, nos maltratamos em guerras, atentados, opressão e miséria como não ocorre com nenhuma outra criatura da natureza.

Poder, riqueza e ciência

Quando morreu, no final da década passada, Carl Sagan, astrônomo e divulgador americano, lamentava a impotência da ciência em dar à sociedade humana uma localização cósmica, mais precisamente uma cosmologia humana, uma localização de nossa civilização entre os 200 bilhões de estrelas da Galáxia. Se estivesse vivo, teria razões adicionais para lamentar nossa sorte como Homo Sapiens, não como nacionalidades à parte.

O Jornal do Brasil, edição de domingo, numa boa entrevista que Gabriela Máximo fez com o lingüista e pensador americano Noam Chomsky, mostrou que, se a situação está difícil, existem inteligências sensíveis a uma interpretação sóbria, responsável e com perspectiva de futuro ? seja lá o que isso signifique hoje. Chomsky, com seu estilo irreverente, contestador e humanista, poderia até ter saído na Folha, mas, especialmente nestes tempos, é daqueles que não têm espaço no Estado. Lamentável. Assim, os leitores do jornal ficam privados de reflexões lúcidas e, por isso mesmo, estratégicas. Chomsky é o que em outros tempos seria uma pomba em meio a falcões. Mas apenas uma frase do que falou dá o peso de sua análise e da inutilidade de se rufar os tambores de guerra: "Terroristas suicidas são incontroláveis".

Recomendar reflexão e atitudes sóbrias, neste momento, talvez seja pedir demais para muita gente. Entre elas, pessoas que tiveram perdas afetivas com os ataques que, como qualquer outro ato de violência, devem merecer o repúdio de todos quantos têm um mínimo do que, em outros tempos, se chamava de compaixão. Uma imprensa responsável tem a obrigação não só de informar corretamente, mas de convocar intelectuais das mais variadas áreas do conhecimento para uma reflexão sobre as possíveis saídas, analisando o passado e tirando deles as lições.

É Paul Kennedy, no Estado, quem dá a referência entre poder militar, concentração de riqueza e produção de ciência, como parte de uma explicação para se compreender os acontecimentos. Os Estados Unidos, diz, participam com 40% do uso de internet em todo o mundo, no ano passado arcaram com 36% dos gastos militares do planeta e, entre 1975 e o ano passado, tiveram 70% dos laureados com o Prêmio Nobel.

Pode-se acrescentar que os Estados Unidos têm menos de 5% da população do mundo, ao mesmo tempo em que consomem metade da energia do planeta. E, nesta condição, se recusam a aderir a acordos internacionais como o Protocolo de Kyoto, para controle das emissões de gás carbônico, principal responsável pelo efeito-estufa.

A vida em risco

Muitos outros argumentos, como um descompasso entre o aumento da riqueza, especialmente nos Estados Unidos, nos últimos anos, e um crescimento da pobreza em todo o seu entorno, poderiam ser invocados para os ataques. Nenhum deles, é bom enfatizar, capaz de justificá-los. Mas o caso não é de justificativa, e sim de compreensão dos acontecimentos.

Se a concentração de poder, tanto militar quanto econômico (o que significa dizer político), nos Estados Unidos deu-se a partir de uma base científico-tecnológica, o que a imprensa conservadora deveria estar fazendo agora, em vez de bater os tambores de guerra, é buscar uma explicação e oferecê-la à apreciação de seus leitores.

Um recuo nos últimos 300 anos mostra que a Revolução Científica e a Revolução Industrial foram dois movimentos simultâneos e inseparáveis de uma transformação que está na base do poder dos Estados Unidos e de todas as outras nações desenvolvidas, o grupo definido como Primeiro Mundo. Como se o mundo, a Terra, não fosse um planeta só orbitando um pequeno sol dos 200 bilhões de outras estrelas da Via Láctea, que é apenas uma dos bilhões de galáxias que dançam no Universo ao ritmo da gravidade. Essa é a grande alienação cosmológica. As razões ditas objetivas, invocadas pelo raciocínio sumário, são meramente circunstanciais e efêmeras. A vida é o que importa, e é justamente a vida que está em risco por causa de um punhado de dólares a mais.

Justificativa em vez de análise

John Bernal, historiador e filósofo da ciência, é um dos muitos a identificar o financiamento da Revolução Industrial com a prata, o ouro e os diamantes, entre outras riquezas (a batata que alimentou os primeiros operários, por exemplo) retirados da América por Espanha e Portugal. O que os espanhóis fizeram no México e Peru, atrás destas riquezas, não é nada tranqüilizador para as consciências. E os portugueses, com o tráfico escravo, não ficaram atrás. O que se deve considerar é que houve violência durante todo esse tempo. Mas do centro, crescentemente hegemônico, para a periferia. No momento em que a hegemonia é completa, como hoje, sem possibilidade de acordos razoáveis, mesmo em relação a drásticas mudanças climáticas, o que se pode esperar de interlocutores com muito pouco a perder senão terrorismo, especialmente o terrorismo suicida? Em outros tempos, a mulher de um arcebispo inglês que desqualificava Darwin, num debate memorável, disse entre os dentes: "Ora essa, descender de macacos! Mas se for verdade, oremos para que ninguém saiba disso". Darwin nunca disse que os homens descendem de macacos, mas parte da imprensa se comporta hoje como a mulher do arcebispo.

Sob o apropriado título de "Marcha insensata", a Folha, no domingo, chama a atenção para os riscos crescentes de xenofobia, algo que para historiadores portugueses não seria novidade a uma certa altura do processo de "globalização", que começou precisamente em Portugal, no século 15, com as Viagens de Descobrimento. Denuncia políticos e jornalistas, nos Estados Unidos e fora dele, defendendo uma "relativização" dos direitos civis, sob argumentos aparentemente razoáveis, além do discurso sumário de Bush, reeditando Reagan na briga do "Bem contra o Mal".

O Estado, com seus editoriais na página 2, em vez de análises traz justificativas para o que Bush já anunciou como "retaliação" ? embora, como já aconteceu antes, não se saiba exatamente a quem retaliar. Que crianças, jovens, adultos e velhos, nos Estados Unidos, tenham sido vítimas de uma violência enorme é profundamente lamentável. Mas é lamentável que crianças, jovens, adultos e velhos em qualquer parte do mundo sofram qualquer tipo de violência, como será um bombardeio indiscriminado do Afeganistão. Aqui a ciência está presente sob a forma de história, antropologia, sociologia, além de ética e estética, na alçada da filosofia e da moral. Que atos de ofensa uma criança afegã teria cometido para receber um castigo tão grande sobre sua cabeça, além de ter nascido no Afeganistão? Mais que nunca é preciso um mínimo de racionalidade para não se compensar, por irracionalidade e truculência, qualidades que o principal jornal americano, o New York Times, não enxergou em Bush no dia da tragédia.

Verdades a recuperar

Como resultado de um impacto tecnológico recente, a mídia, especialmente impressa, passa por uma crise de qualidade, refletindo dificuldades de identidade. A complexidade dos problemas neste pequeno mundo orbitando um dos braços alados da Galáxia já não é pouca. O terrorismo só veio aumentar essas dificuldades, o que, para muitos pensadores, era apenas uma questão de tempo. De qualquer forma, este tempo chegou e, ainda que parcialmente previsto, trouxe o desconcerto, a desolação e a estupefação que, inevitavelmente, acompanham a morte. Por tudo isso, e se quiser continuar desempenhando o papel que teve desde que Gutenberg sistematizou os tipos móveis e assim ajudou a demolir a Idade Média, a imprensa deve mudar. Aos menos os segmentos mais atrasados, do ponto de vista da capacidade de interpretar contemporaneamente os acontecimentos.

Mais que nunca, como sugerem intelectuais do porte de Chomsky, é preciso analisar os fatos buscando o novo, e não justificativas para a memória. Mesmo que o novo soe como um paradoxo, para repetir as palavras dele: "A Europa passou por guerras sangrentas, mas foram internas. O Sul ? que hoje chamamos de Terceiro Mundo, as ex-colônias ? nunca atacou a Europa, mas foi atacado por ela por centenas de anos. Esta é, portanto, a primeira vez que a história toma uma outra direção: as grandes potências guerreiras são vítimas, e não os perpetradores. É uma mudança gigantesca".

Quanto à xenofobia que corre o risco de alastrar-se, especialmente entre árabes, é preciso dizer que a base de reconstrução do mundo, com apoio na racionalidade, deu-se pela recuperação do conhecimento clássico grego, cultuado pelos árabes, enquanto o Ocidente cristão mergulhou na barbárie e no obscurantismo teológico que prevaleceram durante toda a Idade Média. E, para recuperar este tesouro cuidado e ampliado pelos árabes, foi fundamental o trabalho de tradutores judeus. A imagem recente de árabes como brutos e primitivos foi legada ao Ocidente pelas Cruzadas. Mas as estrelas, inúmeras com nomes árabes, como Altair e Aldebarã, as mais brilhantes das constelações da Águia e do Touro, mostram que a história não se deu como está sendo contada. Recuperar a verdade e a capacidade de pensar é o primeiro passo para se resolver uma questão. Mesmo que, às vezes, ela pareça insolúvel.

(*) Jornalista especializado em divulgação científica, historiador da ciência e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC)