Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Informática, arma e panacéia

MUNDO DIGITAL

Pedro Antonio Dourado de Rezende (*)

Parte I ? O painel do Senado

Panakeia era filha de Asklepiós, deus da medicina na mitologia grega. Daquela ciência herdamos a nossa, e o termo "panacéia" que hoje significa "beberagem, simpatia ou qualquer coisa que se acredite possa remediar vários ou todos os males" (Houaiss). Vivemos com muita empáfia o mito do homem moderno, aquele que não mais acredita em mitos, mas nutrimos e disseminamos, obstinadamente, a crença de que tecnologia, em especial a da informação, é uma panacéia. Tal crença impregna a marcha pela informatização de processos essenciais à vida democrática e ao Estado de Direito, heranças cuja preservação se tem por desejada. Informatizam-se os mecanismos de votação da Justiça Eleitoral, os do Congresso Nacional, e os de sorteio para distribuição de processos judiciais. Com que propósito?

O primeiro seria o da eficiência, que a mídia repassa sem refletir. Um mito é sempre um ponto cego na consciência, cujo reflexo inquieta. Pois inquietemo-nos. Onde se ganha eficiência? Só onde a escala permite. Ganhos em tempo de apuração e economia com papel são nulos nesses sorteios e irrisórios nas votações parlamentares, se comparados aos dos discursos que as acompanham. E nas eleições para cargos políticos, com efeito, meses depois, a quem poderia interessar a pressa e a ausência do papel?

Mesmo reprimidas, tais inquietudes demandam mais propósitos. O da segurança contra fraudes é o próximo. Inquietudes perduram. Segurança de quem? Da sociedade contra os efeitos, ou do fraudador contra o risco de descoberta e punição? Afinal, a palavra grega farmakós designa, a um só tempo, remédio e veneno. A resposta isenta diz: depende. De uma conjunção de fatores na lógica e nas condições de operação e de auditabilidade do sistema informatizado. Mas respostas isentas são raras, e mais ainda sua compreensão. Começa então a beberagem de crendices inebriantes, oferecidas pela mídia em horário e espaço nobres.

Da mesma mitologia Ícaro alerta: também a tecnologia é arma de dois gumes. As da informação podem proteger tanto a integridade de premissas quanto a invisibilidade de embustes. Até uma pela outra, como ensina a ciência do ilusionismo, que os bits só enriquecem. Na marcha que os consagra como panacéia para mediar a inteligência alheia, os softwares podem ocultar, da transparência antes necessária aos mecanismos sociais onde penetram, a sua lógica embusteira. Vírus o fazem sob anonimato; softwares monopolistas sob sua outra face, a de propriedade intelectual. Aos guardiões da realidade que promovem tal marcha, a dupla face do software oferece o poder do secreto ilusionismo, cuja cumplicidade goebelliana pode induzir negócios com incríveis lucros e ínfimos riscos, onde abusada a ponderação jurídica em favor do progresso e do direito industrial, fazendo-o indevassável e inimputável. A desculpa preferida é a globalização.

Espaço nobre

Não cabe aqui especular como uma cultura assim se vicia, tornando-se presa fácil do crime organizado em colarinhos brancos, que distrai suas vítimas com uma enorme grita contra "os hackers". Cabe observar. O sistema de votação do Senado era tido como seguro e inviolável, pois informatizado e opaco. Dentre seus vícios há um "botão macetoso", encomendado e acobertado por quem poderia dele se locupletar, registrando jetons e votos de senadores ausentes. E das 18 formas de nele se violar o sigilo de votações, caciques que por isso renunciaram escolheram a mais complexa, numa véspera e com inúmeros rastros. Por que não escolheram a mais simples, posterior e sem rastros?

A mais racional das respostas é que estavam empenhados não só na quebra do sigilo, mas numa corrida pela fraude definitiva. Por que Luiz Estêvão, conhecendo as intenções dos pares, levou seu script até o fim, e então ironizou o placar da votação, prometendo levar consigo seus algozes? O ilusionismo do sistema só poderia aflorar numa disputa interna por seu controle. Daí o teatro confessional quando aflorou, para minimizar danos à crença na panacéia digital. A sociedade foi ingênua, manipulada nesta sua crença? Certamente. Continuria sendo? Talvez, a julgar pelas palavras oferecidas em espaço nobre, por quem vem atraindo sobre si suspeições semelhantes.

(*) Professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Nacional de Brasilia