Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Isabel Lustosa

JORNALISMO & HISTÓRIA

"Ofício de jornalista", copyright Jornal do Brasil, 24/11/2003

"O jornalista, seu ambiente de trabalho e sua atitude diante do mundo representaram um rico filão para a literatura universal do século XIX. Desde Luciano de Rubempré, nas Ilusões Perdidas, de Balzac, passando pelo Bel Amie de Guy de Maupassant, até alcançar aquele grupo patusco que cerca o protagonista otário de A Capital, de Eça de Queiroz, o mundo da imprensa vem sendo representado sob uma roupagem mefistofélica, atraente e perigosa, sinônimo das tentações e dos riscos da vida na metrópole.

O charme do ofício, me parece, está tanto no ambiente da redação quanto na própria maneira de exercê-lo. A busca da notícia é coisa de gente curiosa, bisbilhoteira, mas é também coisa de quem está na rua, de quem circula. O clima informal das redações também tem um apelo muito sedutor. Não é à toa que Artur Corvelo, em A Capital, sonhava em mudar para Lisboa e se tornar jornalista. Ele imaginava ?o ruído incessante de máquinas de impressão, salas de redações resplandecentes de penas que correm sobre o papel derrubando ministérios ou edificando glórias e ditos de folhetinistas que têm a profundidade de uma filosofia, na precisão de um aforismo!… E via-se lá, revendo provas, lendo o seu nome em cada jornal, fazendo civilização!?

Ser talhado para o ofício de jornalista é ter uma capacidade tremenda de adaptação, disponibilidade e desprendimento para deixar de lado o que está fazendo e mudar radicalmente de assunto. Pois caiu o avião, morreu a princesa, explodiram o World Trade Center, o time de Camarões ganhou… Por isso, dentro das redações a gente encontra gente variada, gente muito interessante, gente que é confrontada todos os dias com um dilema: se é ético ou não é o que vai dizer.

Nos últimos tempos, a história da imprensa vem sendo objeto de interesse do meio acadêmico. Desde os que, como a autora destas linhas, se dedicam aos episódios e aos estilos que marcaram a imprensa brasileira no seu nascedouro até os que analisam seus novos desafios na era da informática. Jornais e revistas são objetos de estudo de grande complexidade, pois são multifacetados, possíveis de serem analisados a partir de vários pontos de vista. Eles podem, por exemplo, ser estudados a partir de cada um dos vários campos sobre os quais trabalham: político, cultural, esportivo, econômico, mundano, social etc. Também podem provocar reflexões sobre a capacidade que têm ou tiveram de mudar o mundo com a literatura e a arte criada para as suas páginas ou, ainda, em virtude dos artigos de fundo de caráter doutrinário ou analítico, formadores de consciências e opiniões. A imprensa como campo de estudos é o mundo.

Parte, ainda que modesta, desse mundo vai estar sendo contemplada no seminário Imprensa, História e Literatura que se realiza na Casa de Rui Barbosa entre os dias 26 e 28 de novembro: desde Hipólito da Costa até a imprensa dos dias atuais, passando pelos folhetins de Joaquim Manuel de Macedo, a poesia de Drummond e por algumas das polêmicas mais importantes que ocuparam as folhas. O seminário também se propõe a debater qual é o lugar da literatura na imprensa. Pois talvez o momento seja bom para repensar a importância desse casamento que escreveu algumas páginas fundamentais de nossa história literária nos suplementos de antigamente que funcionavam não apenas como espaço da crítica mas também da criação.

Ao lado dos jornais, as revistas. Desde as literárias, passando pelas mais sisudas e importantes para a história de nossas idéias, como a Revista do Brasil, até chegar à mais amena imprensa de humor que sempre mereceu espaço privilegiado na nossa cena impressa. Também serão contempladas algumas das transformações da imprensa brasileira do final do século XX: o impacto do fotojornalismo; a modernização dos jornais entre as décadas de 50 e 70 e sua outra face, a vigorosa e ousada imprensa alternativa dos anos 70.

Na letra de Balzaquiana, Nássara diz que Balzac tirou na pinta, quando recomendou: mulher, só depois dos 30. É possível que um leitor mais dedicado não ache essa passagem nas tantas páginas da Comédia Humana. Mas em Fisiologia do Casamento Papai Balzac dá outro inspirado conselho. Trata-se de conselho de personagem maduro a outro jovem que se inicia na vida: não tenha nunca jornal, amante manteúda ou casa de campo; só servem para os outros se divertirem e para você se aborrecer. Se não fossem alguns sonhadores que desdenharam dessa razoável recomendação – pelo menos a primeira parte dela – eu não estaria aqui publicando estas linhas. Um pouco de loucura, aliada a uma certa dose de vaidade, a um tanto de determinação e a muito desprendimento levam alguém a se aventurar na difícil tarefa de publicar um jornal, de lançar uma revista. Essas qualidades reúnem num mesmo panteão gente como Hipólito da Costa, José da Silva Lisboa, Cipriano Barata, Angelo Agostini, Ferreira de Araújo, José do Patrocínio, Olavo Bilac, Pereira Carneiro, Edmundo Bittencourt, Mário Rodrigues, Assis Chateaubriand, Samuel Wainer, Nascimento Brito, Roberto Marinho e tantos outros. A eles a nossa saudação."

 

LÍNGUA PORTUGUESA

"What língua is esta?", copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 20/11/2003

"- Hello?

– Hello, não. Alô!

– Ah, mané, é você? É que eu tô esperando Wall Street.

– Quer que eu ligue later?

– Não precisa. Qualquer coisa, o bichinho hi-tech aqui bipa e eu ponho você on hold.

– Beleza. Mas e aí, a commodity performou?

– Below. Bem below.

– Below quanto?

– Below legal. Cinqüentinha.

– Shit.

– Pois é. Ali pelo lunch time de London London até que ameaçou um take off, mas agora tá no chão. Tremendo ground zero, sorry.

– Sorry não resolve. O quê que eu digo pro big boss?

– O que você diz?! Hello-o? O big boss não é problema meu, esqueceu? O negócio agora é keep cool. Cair, a casa não cai. Pelo menos hoje não, porque a gente tá bem escorado no hedge. Enrola o big boss aí.

– Easy to say. O homem tá com cara de Halloween: se eu não tiver um doce pra mostrar…

– Vamos fazer o seguinte, então, mas vê se não acostuma porque isso é contra as regulations, out of line total. Eu vou dar um recover aqui no file do peak da curva, o tal de hoje de manhã. Dou um recover, deleto o horário e mando o gráfico atachado pra você, tá certo? Com isso, já dá pra ir enrolando o Mr Pumpkin.

– Sei.

– Mas isso é porque tu é brother, realizou? O meu papel não é ficar aqui interfaceando com os players…

– Of course.

– Vê se inputa isso na sua cabeça, tá legal? Nos vemos hoje na happy hour?

– Absolutely. Vou te introduzir aquela loura hot-hot-hot, lembra? A que parece a Sam do Sex and the City?

– Yesss! I love you, asshole.

– Me too. Bye then.

– Inté, meu camarada."

 


"A cara dos caras", copyright Jornal do Brasil, 24/11/2003

"Algumas coisas estão na cara. Sinônimo de rosto, a cara é invocada, entretanto, em situações que afastam o rosto e a face.

A cara fez uma longa viagem até chegar ao Brasil. Veio do grego kára, com escala no latim cara. Sua penúltima estação foi o português de Portugal.

Soa estranho escrever ?português de Portugal?, mas todos sabemos que sutis complexidades impregnam a cor local de nossa língua, dependendo de onde fincou raízes.

Na Europa, onde nasceu e se consolidou com estruturas que lhe deram identificações que a permitiram separar-se do latim, a língua portuguesa apresenta-se de um modo. Na Ásia e na África, de outros.

O Brasil reina absoluto em números de falantes e escreventes do português. Somos uma das maiores nações do mundo e a única, da primeira à quinta em tamanho, a ter seu território integralmente coberto pela língua portuguesa. As variações dialetais não impedem que o gaúcho entenda o nortista e vice-versa.

A cara invadiu a imprensa. E em tempos de tantas acusações, freqüentemente a cara dá as caras na palavra acareação, procedimento que consiste em pôr cara a cara testemunhas cujos relatos são conflitantes.

A cara, que usualmente é feminina, submete-se a intervenção que muda o seu gênero, transformando-se em substantivo masculino. Aparece transfigurada no cara, um indivíduo. Apenas um. E com uma cara apenas. Se tiver duas, eis que se mete em confusão.

Esperidião Amin era governador de Santa Catarina e, revestido de coragem, apareceu numa assembléia de professores em greve por melhores salários. Os professores, todos de cara amarrada, estavam com cara de poucos amigos. Ou com cara de quem comeu e não gostou. E o governador estava com cara de tacho. De cara tinha percebido que o propósito dos grevistas era deixá-lo com a cara no chão.

Alguns grevistas, sabendo que chegavam à assembléia apenas com a cara e a coragem, tinham bebido umas e outras antes, mas uns poucos dentre eles tinham enchido a cara. E entre esses últimos estavam aqueles que queriam que o governador quebrasse a cara. De cara fechada, muitos estavam dispostos a não permitir que ele livrasse a cara. Uns, mais comedidos, que iam com a cara do governador, apreciavam secretamente a coragem que o governador tivera de ali comparecer e dar a cara a tapa.

Tendo pedido a palavra, o governador ouviu da líder dos sublevados mais ou menos o seguinte: ?como é que o senhor tem a coragem de dar as caras por aqui??

O governador não lhe questionou o tom coloquial do diálogo. E teve a humildade de justificar-se. Viera até ali para saber, sem intermediários, o que é que os grevistas queriam.

Seguiu-se grave acusação: ?na campanha o senhor prometeu uma coisa; no poder está fazendo outra; o senhor é um homem de duas caras?. E o governador: ?minha filha, se eu tivesse duas caras, a senhora acha que eu viria justamente com esta aqui??

Esperidião Amin, em conseqüência de maus bocados pelos quais passou na vida, já não tinha pêlo algum no rosto. Nem barba na cara, nem cabelos na cabeça. Fazendo blague com a própria aparência, retomou o diálogo. E até a liderança do movimento acompanhou a assembléia em sonora gargalhada.

Desde então outros caras, mostrando outras caras, exercem seus respectivos poderes na República. Prefeitos, vereadores, deputados, senadores, governadores, embaixadores e ministros, entre outras autoridades, estão mudando a face do poder no Brasil.

A barba, os cabelos e o bigode dão outra cara ao Brasil, a começar pelo atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, imitado por dois barbudos recentes: o ministro Ciro Gomes e o embaixador Itamar Franco.

A cara é tão importante que Capistrano de Abreu disse que nossa Constituição, tão prolixa, deveria prescrever apenas que todo brasileiro deve ter vergonha na cara, revogadas as disposições em contrário."